PREFÁCIO

Entre os trinta e seis criados que, no 10 de Junho de 1834, embarcaram em Sines com o proscrito infante D. Miguel de Bragança

Note:

D. Miguel de Bragança, ou D. Miguel I, de cognome “O Usurpador”, foi rei de Portugal entre 1828 e 1843, após ter roubado o trono à sua sobrinha, D. Maria II. Tal ação resultou numa guerra civil que duraria seis anos (o período do seu reinado). A 1 de junho de 1834, depois de uma pesada derrota militar, D. Miguel foi obrigado a exilar-se do país, indo primeiro para Itália, depois para Inglaterra e, finalmente, para a Alemanha. Nunca mais voltou a Portugal. A validade do seu reinado é controversa, não só por se tratar de uma usurpação, como por D. Maria II, tecnicamente, nunca ter deixado de ser Rainha, apesar do seu tio ter tomado para si próprio o comando do país. Por essa razão algumas listas monárquicas não o comtemplam como Rei, mas apenas como um príncipe que tentou roubar o trono. Ironicamente, a linha sucessória de D. Maria acabaria por se extinguir, sendo, atualmente o bisneto de D. Miguel I — D. Duarte, Duque de Bragança — o descendente mais direto da antiga linha monárquica portuguesa.

, distinguia-se por nascimento e educação literária o jovem da real câmara, Fernando Luís, sobrinho do tristemente famigerado desembargador António José Guião.

O dedicado rapaz acompanhou o seu rei até à prova da indigência, naqueles dias angustiosos em que o irmão de D. Pedro IV não tinha em Roma, 10 réis para comprar leite.

Quando o infante, apertado pela pobreza, despediu o maior número de criados e dependentes, Fernando Luís de Guião dirigiu-se à Alemanha, ao passo que os seus compatriotas voltaram a Portugal.

O sobrinho do desembargador Guião tivera na Pátria o melhor tirocínio literário daquele tempo, cursando humanidades com os padres do Oratório, e completando os estudos preparatórios no Colégio dos Nobres.

Em Roma estudara as línguas italiana e francesa. O tão faccioso quanto inteligente arcebispo de Évora, D. Fr. Fortunato de S. Boaventura, também emigrado, fizera-o seu amanuense. Da convivência com este douto português, ganhou Fernando farta ciência, e mais que tudo o desprendimento e afoita confiança com que o homem, desvalido dos bens de fortuna, se aventura a julgar que toda a terra é pátria, porque o saber é universal.

Animado, pois, pelos conselhos do sábio prosélito de D. Miguel, foi Fernando Luís procurar a sua vida na Alemanha, como professor das línguas francesa, espanhola, italiana e portuguesa. Dizia-lhe o arcebispo que o estudo das línguas era prezado naquelas pensadoras nações em que as ciências se alimentavam de fundas raízes, e os sábios timbravam em ser cosmopolitas, colhendo a história de todos os países no seu próprio idioma.

Em 1837 anunciara-se Fernando Luís Guião como professor de línguas em Berlim. Um dos seus primeiros discípulos, no idioma português, sucedeu ser um dos notáveis sábios daquela cidade. Chamava-se Leonardo Leopoldo Frisch, ministro protestante, e contava, ao tempo, idade superior aos cinquenta anos.

Maravilhou-se o mestre de aluno tão respeitável por idade quanto pela hierarquia no sacerdócio, e perguntou-lhe como tão tarde se dedicava ao estudo de um idioma difícil.

Respondeu o clérigo que nunca tivera ocasião de instruir-se com professor idóneo, nem lhe constava que algum português professasse na Alemanha a sua língua. Acrescentou que desde tenros anos anelara ardentemente estudá-la, não tanto pelo prazer de decifrar a famosa epopeia de Camões, que os seus conterrâneos, desde Meinhard até Wilhelm von Thery, pareciam deslustrar, como principalmente para decifrar um segredo de família.

Apesar da indefessa aplicação do discípulo e do engenhoso método do professor, as longas e imprevistas dificuldades impacientavam Leonardo Frisch.

Poderia ele dispensar-se de conhecer o idioma e esclarecer o chamado «segredo de família», confiando ao português a tradução do volumoso manuscrito que dizia ter, mas não mostrava, num cofre de pau santo; porém, o prussiano coibia-se de expor os papéis, receando que o mistério envolvesse desonra para os seus antepassados. Fernando conheceu o melindre, e sofreou a natural mas descortês curiosidade.

Prosseguiu o clérigo desveladamente no estudo; e, no termo de dois anos, conseguira traduzir, com exultações imagináveis, o essencial do manuscrito. E crescia o seu contentamento à medida que a probidade do seu avô saia imaculada por entre as confusas peças de um processo criminal.

Convencido, portanto, da inculpabilidade do seu antepassado, chamou o mestre à confidência do segredo de família, dando-lhe o manuscrito para que ele o vertesse, tão literalmente quanto pudesse, para francês.

Antes, porém, da entrega, Leonardo Frisch abriu um cofre de tartaruga com ornatos de metal, tirou uma caveira, e disse:

— Aqui tem o segredo, que, neste ano corrente faz justamente um século que entrou na minha família. Foi meu avô, Josse Leopoldo Frisch que fechou esta caveira neste cofre há cem anos, contados desde 1739. Aqui tem a data, escrita neste osso que chamam temporal.

— E foi escrita em Lisboa?! — atalhou o português, admirado.

— Em Lisboa, certamente.

— Noto aqui outra inscrição no temporal esquerdo... — observou Fernando, querendo decifrá-la.

— Sim, senhor: esta inscrição alemã diz:

“A Caveira da Mártir”

O clérigo continuou:

— Dos papéis que o meu querido mestre vai traduzir não se inferem algumas miudezas que vou referir-lhe como proémio à tristíssima tragédia. O meu bisavô, João Leonardo Frisch, ministro da Reforma luterana, foi um dos homens instruídos do seu século, na Alemanha. Nasceu em 1666, e aqui morreu, em Berlim, em 1743. Até aos quarenta e quatro anos viajou por França, Suíça, Turquia, Itália, Holanda, Espanha e Portugal. Casou aos cinquenta e três, e teve um filho chamado Josse Frisch, que no vigor da juventude foi a Portugal, movido por interesses das ciências naturais que cultivava distintamente. Cheio de honestos brios me honro em lhe apresentar neste raio das minhas estantes, os livros que estes meus ascendentes publicaram. O meu avô, Josse Frisch, que provavelmente lavou com as suas lágrimas esta caveira, consta da tradição que fora novo, alegre e feliz para Lisboa, em 1730, e voltara à pátria em 1739, encanecido, desfeito e envenenado pela paixão de uma saudade que nunca mais o deixou sorrir à esposa que lhe deram nem ao filho, que era meu pai, e muitas vezes me disse: «Eu nunca vi um lampejo de alegria no rosto do teu avô». A minha avó, esposa deste homem inconsolável, morreu sem saber o que este cofre continha. Imaginava-se que o melancólico sonhador, por demasiada cautela, fechara aqui alguns exemplares raros das suas investigações mineralógicas. Quanto aos papéis, só meu pai lhes deu valor, quando tentou por fim compreendê-los, e acaso encontrou o apelido da nossa família encravado nestas páginas indecifráveis.

Não sei se ele teve modo de penetrar o segredo dos papéis e da caveira; a mim nunca mo revelou, mas é mais de crer que a Berlim não viesse português que o esclarecesse, nem ele solicitasse da ciência alheia um esclarecimento, desairoso talvez, para seu pai.

Fernando Luís traduziu literalmente para francês um longo processo-crime; e, ao mesmo tempo, com permissão do discípulo, extraiu um traslado na sua língua.

O emigrado português, favorecido pelas liberalidades do sacerdote Leonardo Frisch, e pelo estipêndio do incansável professorado, conseguiu doutorar-se em Medicina na Universidade de Berlim. Habilitado a granjear na Pátria o pão independente da renúncia das suas crenças políticas, voltou a Lisboa em 1844. Por espaço de vinte e cinco anos exercitou a ciência com tamanho desinteresse que morreu pobre. Como a sua confiança nos aforismos da arte era duvidosa, barateava os serviços, escrupulizando em encarecer-se além de um simples observador das forças da natureza. E porque não tinha família, não deixou filhos que chorasse, nem que o chorassem. Que suave morte!

A sua livraria foi leiloada a benefício de criados. Fui parte na pequena concorrência de licitantes. Apregoou o leiloeiro um pacotilho de manuscritos, cartonados e intitulados: “A Caveira”.

Um dos licitantes, mais atento ao título, observou aos outros que, provavelmente, aquela papelada era uma descrição osteológica da caveira, visto que o defunto era médico. Esta observação depreciou em tanta maneira o lote que mo adjudicaram por pouco mais do peso.

Este Prefácio é o resumo das vinte laudas em que Fernando Luís Guião relatava por miúdo as tristezas do desterro e as alegrias do trabalho.

INTRODUÇÃO

A viúva de Domingos Leite e de João da Veiga Cabral já não tinha alma sensível às felicidades convencionais desta vida. Recordações que lhe eram afronta, e saudades atormentadoras — a imagem terrível do primeiro marido, e a imagem amada e deplorativa do segundo — fechavam-lhe em nuvem negra qualquer aurora de esperançoso contentamento. Nem as carícias de Ângela, nem os amoráveis rogos de Francisco Mendes a demoveram de seguir o destino que a norteara a Portugal. O ermo, a soledade, a dor sem distração, morrer, enfim, alheia de amparos que suavizam o transe, era para Maria Isabel uma necessidade do coração, um sacrifício voluntário à redenção das suas culpas para com Domingos Leite, e ao seu imenso amor a João da Veiga Cabral. No entanto, se algum desafogo sentia ao pensar que as suas lágrimas eram vistas desde o seio de eternidade, com certeza não eram os olhos do primeiro marido os que lhe davam a recompensa da imolação.

Adorava a memória do segundo esposo. Santa saudade! Homem mais digno desse culto não poderia dar-lhe o outro mundo. Ele tinha os segredos da sua vida maculada, desde que ela lhos revelou, lembrando-se que uma vez, cega de paixão, não vira em si o labéu que a tornara infame aos olhos do seu primeiro marido. Tudo lhe desvendou, como se os dois cadáveres, que ela fizera, a estivessem acusando para envilecê-la. Pintou-se ignóbil e desprezível no deslumbramento em que a fascinara o rei; arguia-se menos, infamava-se menos por ter sido a cega vítima do padre. João da Veiga Cabral explicava indulgentemente as duas cegueiras: primeiro a da inocência, depois a da alucinação. Defendia-a das suas mesmas severidades. E, quando ela chorava remida pelo amor ardente das almas castigadas, o amante pedia-lhe de joelhos que o aceitasse como marido, não por amor da honra, mas por amor dele.

Nunca vira a ruga do arrependimento na cara do esposo, nem os tédios intermitentes da vida positiva, serena, sem os sustos que refinam o amor. Se ruins lembranças do passado a sobressaltavam, João da Veiga escutava-lhe o gemido recôndito do coração; e, arrancando-a de si mesma, parece que a alma se lhe abria em novo manancial de ternuras. E por isso, a mulher impura, considerando-se depurada das suas nódoas na frágua daquele amor generoso de todas as misericórdias de um Deus, também se considerou digna de morrer na tristeza das mais honradas viúvas.

Ângela, atribuindo a capricho de génio especial a insistência da mãe, doeu-se da separação resistente a súplicas e carícias. O hebreu definiu mais psicologicamente a misantropia da sua sogra. Até certo ponto, desde que viu frustrarem-se as meiguices da esposa no alívio de Maria Isabel, compreendeu que as saudades de João da Veiga não bastava a mitigá-las o amor da filha de Domingos Leite. E notou ainda que a sua sogra parecia ter remorsos de haver procurado nas doçuras maternais impossível distração às angústias de viúva.

Entrou, pois, no Recolhimento da nossa Senhora da Encarnação, e, ocultando as passagens crimináveis da sua existência, logrou estar seis anos desconhecida numa congregação de mulheres conventuais, onde por via de regra a curiosidade das coisas mundanas raro cede o passo à indagação das divinas.

Malogravam-se os tratos da filha em rodeá-la de todas as regalias compatíveis com o seu retiro. Maria Isabel aceitava apenas a satisfação de não ser desprezada. Quanto a recursos, as joias da sua mãe asseguravam-lhe alguns anos de parca subsistência, e dizia ela que, para o final da vida, reservava umas poucas moedas do soldo do seu marido.

Porém, não há fiar-se a gente nos lutos perpétuos, nos heroísmos do lento suicídio, quando são trinta e cinco os anos e as cinzas de um cadáver afrouxam mas não apagam as faúlas que subitamente ressaltam e nos entreluzem horizontes imprevistos.

Quem diria que uma criancinha, ao balbuciar a palavra avó, descondensaria de sobre o coração de Maria Isabel o mais espesso da sua escuridade? Como pôde o contacto de uma vida em começo com o peito glacial da viúva aquecer lá dentro uns embriões de afetos desconhecidos? Não se explica plenamente o estremecido amor dos avós. Sabe-se que renasce a ternura que os pais tiveram aos filhos na infância — ternura que esmorecera a par e passo que os filhos se emanciparam das blandícias paternais.

O certo é que a mãe de Ângela, quando Jorge, seu neto, perfez três anos, saiu do Recolhimento porque os Estatutos vedavam a entrada de crianças; e a regente, já cansada de quebrar a Regra a rogos da extremosa avó, lhe declarara não mais excetuá-la dos estilos da casa.

Voltou, portanto, D. Maria para a companhia da sua filha, mantendo os hábitos adquiridos no claustro — o luto, a oração, a tristeza exterior; mas lá do peito adentro brincavam-lhe as santas alegrias de embalar no seio o seu neto, guardá-lo no berço, e ganhar-lhe o amor com ciúmes até da própria filha.

Jorge nascera em 1660.

Quinze anos depois, frequentava jurisprudência na Universidade de Coimbra.

A sua avó acompanhou-o durante a formatura.

Aos vinte e seis anos, Jorge Mendes Nobre era um dos mais famosos jurisconsultos do reino, já nobilitado, como seu pai, com o hábito de Cristo.

Eis aqui a descendência do regicida em 1686, quarenta anos depois da sua morte. Maria Isabel ainda vivia quase septuagenária, com a memória das suas desgraças atrofiada, pautando o regulamento higiénico do seu passadio como quem deseja e tenciona durar muito.

Triste e estúpido egoísmo da velhice! Os infortúnios são comoventes, ainda quando os grandes delitos se descontam nas paixões desatinadas. Com as mulheres caídas desce às vezes ao fundo da voragem uma luz, que lhes dá aurelas de mártires da sociedade que as abisma. Há delas, ai mesmo, perdidas e admiradas, e, quantas vezes, amadas! Porém, se os anos — triste regeneração! — restauraram-nas para o respeito do mundo e amor dos netos, a memória das suas desgraças é serôdia alegria que nos dá um involuntário sorriso irónico.

Percebo isto e não explico bem.

O leitor, se o quer perceber melhor, contemple o retrato da George Sand de 1835 e o da George Sand de 1875. Depois leia o romance de há quarenta anos, a Lélia, e o romance de ontem, Monte-Revêche. Aquela mulher de olhar sobranceiro, que transluz na pupila acesa o doce inferno do seu amor, que matava Mussets, e atirava as tranças negras e os escândalos da vida e os escândalos dos livros à cara da sociedade — assombra-me. Sinto que era forçoso saudá-la na morte como os lutadores ao César, no circo. A outra, a Sand dos setenta anos, filtrada do iodo do mar, azotada da sadia cozinha da província, com a touca de despenseira e os bandós espalmados nas fontes, esta, que faria rir a sã moral vingada, a mim faz-me chorar. Ah! As mulheres, que deram vida e morte a muitos corações, deviam morrer cedo! — Que incalculável expiação, ó Deus, se a velhice, que não tem esperança, tivesse saudade! O que seria a antecâmara da morte, se aí deixasses, ó benigna Providência, uma janela aberta para o passado!

O esquecimento é o primeiro benefício da aniquilação. Maria Isabel, a mulher de Domingos Leite, a amada de D. João IV, a viúva do enforcado, a amante e esposa do gentil fidalgo de Bragança, aos sessenta e cinco anos, devia de estar esquecida... pois queria viver! Prelibava as realizadas delícias de um bisneto. Não enxugava uma Lágrima, não respondia a uma frase, a uma reminiscência das cinzas de há trinta anos!

Não seria mais bela aquela mulher lavrada a vulto na tampa de um túmulo? A leitora de fino sentir não quisera antes que a poesia da morte lhe tirasse perante os olhos o espetáculo da velhice, que se resguarda dos nevoeiros e estofa de flanelas o peito, escadeado pela ressicação dos tecidos? Verdade é que a decrepidez da mulher, que triunfou a, vida com as magias da formosura, com os filtros da perfídia, insinuando o amor como quem injeta mortais venenos, é uma profunda lição que refreia os ímpetos da juventude, — quando os não desenfreia e lhes dá de espora no curto estádio dos prazeres.

Como quer que seja, a celebrada beleza da Traga-malhas, e a sua história, na volta dos sessenta e nove anos, se não fossem uma desgraça inconsciente, seriam suplício de sobra às suas culpas.

Não nos deteremos a descrever-lhe a última fase da decomposição. Ali já não podia dar-se o morrer que espanta. Morta já ela estava, na mais viva faculdade do vitalismo: a memória. Seriam consternadores os seus paroxismos, se ela prolongasse um lanço de olhos pelo passado, e revelasse, nas lágrimas derradeiras, saudades ou remorsos. A filha e o hebreu é que choravam, recordando-se da vida daquela mulher, e entrevendo-lhe no rosto morto a formosura, a apagada estrela que tantas fatalidades influíra.

Quando Maria Isabel morreu (1694), já seu neto Jorge Mendes Nobre era letrado insigne na corte; excedia os trinta anos, e havia casado afortunadamente com a filha de outro rico letrado, João Xavier Gomes, de família israelita.

Jorge e o seu pai eram suspeitos ao espírito da intolerância católica, bem que ouvissem missa quase quotidiana na capela da casa. Verdade é que o advogado Mendes Nobre não imitava a cristandade dos seus pais, alegando negócios que lhe reduziam as práticas devotas, com muito grande mágoa sua. E, posto que não faltasse no templo em dias santificados, esta satisfação era diminuta para a crítica, e principalmente para o Santo Ofício, a quem constava que Francisco Mendes, três anos depois da morte do rei, repusera em Amesterdão os cabedais que dali mandara vir para Portugal, quando calculou segura a sorte das famílias israelitas protegidas pela corte, em recompensa dos serviços feitos à independência da pátria e conservação da dinastia. Porém, assim que viu a Inquisição excomungar D. João IV morto, porque ele restituíra aos filhos de alguns condenados pela Inquisição os bens dos seus pais, Francisco Mendes transferiu os seus haveres a Holanda, auferindo dos rendimentos o custeio da sua invejada abastança.

Menos cauto que o seu pai, o eminente jurisconsulto era espiado, desde que ao Santo Oficio chegou o vago boato de que ele tinha e lia livros proibidos no Index auctorum damnatae memoriae, composto pelo jesuíta Baltasar Álvares, e mandado imprimir em 1624 pelo inquisidor-geral D. Fernando Martins Mascarenhas. Agravava esta denúncia o crime de ter peregrinado terras de hereges, nomeadamente Flandres, convivendo com heresiarcas, comendo com eles, e praticando livremente acerca dos dogmas da fé católica.

Infelizmente, Jorge Mendes Nobre usava encarecer a sua fé cristã, despendendo-se em argumentos contra os incrédulos; mas a tibieza com que atacava as razões dos huguenotes, parecia um propósito hostil à sua mesma opinião, se não era antes uma perigosa ironia.

Para bem averiguar o que fosse, o promotor do Santo Ofício requereu contra o doutor Jorge Mendes, alcunhando-o de heresiarca e dogmatista. Em seguida, o alcaide recebeu o mandado de prisão, que se cumpriu no mês de Fevereiro de 1701, quando o letrado estava festejando o décimo quarto aniversário do seu primogénito Paulo Xavier.

O preso orçava então pelos quarenta anos; Ângela era ainda vigorosa; mas seu pai perfazia os setenta. Alanceado pelo terror da sorte do seu filho, Francisco Mendes socorreu-se das pessoas poderosas na corte; expondo os favores que prestara ao rei e reino; mas concluindo pouco ou nada quanto à ortodoxia do réu. Pelo que, a sua aflição de pai extremoso, oferecendo grosso dinheiro pela liberdade do filho, lhe enredava mais o processo e dificultava o perdão. O Santo Ofício não costumava fazer transações de tal natureza. Se os presos eram ricos, a Inquisição não carecia de os absolver para os espoliar.

Desde a hora em que lhe arrancaram dos braços o seu único filho, o marido de Ângela não teve mais o reparador descanso de uma noite. Nem a esposa nem o neto o distraíam da letargia em que se atrofiou desde que as portas dos amigos se fecharam às inúteis súplicas. Enquanto pôde chorar, viu a esperança ao através das lágrimas; porém, as lágrimas secaram e a luz apagou-se-lhe nos olhos ao mesmo tempo. O infeliz expirou, pensando que ouvia os gemidos do seu Jorge na tortura!... Que morte a daquele ancião cheio de virtudes.

Jorge Mendes ignorava ainda, dois anos depois, que o seu pai era falecido e sepultado no seu carneiro de família que mandara construir na igreja de Camarate, onde possuía uma quinta. O Regimento da Inquisição castigaria com grande rigor o guarda que noticiasse ao preso que o seu pai estava morto.

Entretanto, a situação de Jorge Mendes era decerto menos horrível do que se afigurara ao seu pai. Logo que foi preso e levado ao tribunal, confessou que tivera dúvidas sobre certos dogmas da religião cristã, depois que lera alguns livros condenados, os quais estavam na mesa dos inquisidores. Nomeou as pessoas com quem no estrangeiro praticara, e os apertos em que se vira, para refutar a teólogos luteranos, atribuindo estas dificuldades à sua ignorância dele, e não ao racionalismo dos contendores. Esta confissão, acompanhada de lágrimas e outros sinais de íntimo arrependimento, favorecia o preso com este artigo do Regimento, título 3° intitulado dos Confitentes:

Porém, quando algum réu depois de preso e acusado pela justiça, antes de lhe serem publicados as testemunhas dela, confessar suas culpas e a confissão for muito satisfatória pelos sinais que mostrar da sua conversão e arrependimento, e pela declaração das culpas e dos cúmplices, que deu e descobriu; poderão os inquisidores não votar em pena de cárcere e hábito perpétuo, senão a arbítrio; e isto mesmo poderá ter lugar no réu que posto que não mereça tanto favor pelo tempo, em que fez a confissão, contudo o merecer pelo modo com que a fizer e pelos sinais que der do seu arrependimento e declarações que fizer das culpas e culpados do mesmo crime.

Os requeridos sinais de conversão não podiam ser mais persuasivos. O réu, chorando pela esposa, pelo filho e pelos seus velhos pais, revelava angústias que os inquisidores poderiam supor intenso pesar de haver duvidado da unidade das três pessoas da Trindade santíssima; e, convencidos e compadecidos, poderiam, em conformidade com a lei, mandá-lo estudar melhor as santas teologias, e soltá-lo do cárcere sem penitência grave; porém, o artigo 10 do mesmo título 3° do Regimento, dizia:

Os heresiarcas e dogmatistas, posto que confessem antes de ser acusados pela justiça, sempre devem ser examinadas suas confissões (que gramática a desta santa gente!) com maior advertência, para que se veja se são verdadeiras, e os sinais que dão da sua conversão mostram estarem de todo apartados dos erros em que criam e que ensinavam; e concorrendo estas circunstâncias, serão recebidos com cárcere e hábito perpétuo, sem remissão e com reclusão, pelo tempo que parecer que convém para a sua instrução na Fé... e com o hábito penitencial levarão ao auto-de-Fé carocha com título de heresiarca ou dogmatista.

Este artigo, portanto, frustrou as lágrimas compungentes do advogado: e muitas deviam ser as que ele chorou, desde Fevereiro de 1701 até Setembro de 1703.

E, ao cabo de dois anos e sete meses de cárcere em que lhe era permitida a leitura dos Evangelhos e a prática semana! Com algum frade dominicano, e, melhor que tudo, a confissão mensal, com reserva da comunhão, saiu enfim Jorge Mendes Nobre com sambenito, no auto-de-fé, em 9 de Setembro, a fim de abjurar em público os seus erros, e ver queimar os livros que o derrancaram. A sua contrição era notória. Já por entre a multidão circulava um piedoso soneto que Jorge Mendes escrevera em resposta de outro recheado de sandias injúrias. O público, a corte e o tribunal mostravam-se compadecidos do réu confitente, do sábio jurisconsulto, do filho do cristão-novo que tão liberalmente remira a honra de D. João IV infamada pelos credores holandeses. Aumentava a condolência geral saber-se que Francisco Mendes perecera de paixão, e que a sua viúva era um raro espetáculo de desgraça e força. Pois não obstante este conjunto de circunstâncias, a sentença lida ao réu penitenciado, antes que o inquisidor o absolvesse e tocasse com a vara, continha estas duríssimas penas:

- Proibição de advogar;

- Proibição de insígnias de qualquer dignidade;

- Confiscação de todos os bens;

- Degredo por seis anos para a cidade de Miranda.

A aspereza desta sentença amacia-se bastantemente, se meditarmos que os inquisidores podiam queimá-lo, se quisessem. Ao favor de o não queimarem, acresce a extraordinária benquerença de o aliviarem da pena de hábito penitencial, podendo assim Jorge Mendes Nobre, desbalizado não só dos bens, mas até do ofício por onde podia readquiri-los, pobre e desterrado, com mãe, esposa e filhos, implorar em Miranda uma véstia de burel, visto que não poderia mendigar o hábito de penitente, que a Santa Inquisição costumava vender caro aos que forçadamente se tinham de fornecer dos seus armazéns.

A maior parte dos haveres de Jorge Mendes Nobre, como se disse, girava em Holanda no tráfego mercantil, mediante o rico banqueiro de Lisboa, Manuel de Castro Guimarães. Portanto, o neto de Domingos Leite Pereira era rico, a salvo da inquisição.

Aconselharam-no em Miranda que fugisse para Amesterdão: era fácil iludir ou comprar a vigilância dos familiares do Santo Oficio a quem incumbia espiar-lhe o degredo e a observância do ritual católico. Repeliu o conselho, receando perfídia, e, mais que tudo, os trabalhos de uma viagem sobressaltada para sua mãe, que orçava por cinquenta e seis anos, e para sua mulher, que ensandecera quando ouviu tanger os sinos de S. Domingos a auto-de-fé, oito dias antes do espetáculo, um tanger compassado e lúgubre como as badaladas da agonia.

Além disso, os seus dois filhos Paulo e Francisco estudavam humanidades em Lisboa, no colégio da Cotovia, que era casa de Provação. Os padres da Companhia de Jesus predispunham os dois jovens, consoante a sua usual discrição, para vestirem o hábito. Eram ambos bons alunos, humildes e de muito devotos exteriores. O afeto dos jesuítas aos filhos do herege absolto prometia que a pena de degredo fosse comutada, mormente se eles fizessem os três votos. Jorge Mendes confiava também na influência da Companhia, e não impugnava a propensão dos filhos. A prisão de dois anos, as calamidades domésticas, o terror do futuro e as tristezas do desterro aniquilaram-lhe a energia. Ângela era-lhe amparo forte, como se a dor a empedrasse. Alentava-o com as esperanças da sua religião; guardava escondida no coração a ideia pura do Cristo divino. Escutava, chorando, os murmúrios incrédulos do filho, e pedia a Deus que lhe perdoasse pelo muito que ele padecera quando seu marido expirara traspassado da paixão do filho único.

Quando menos o esperava, Jorge Mendes, no quarto ano de degredo, recebeu perdão da sentença, e a livre escolha de domicílio, com a restituição dos seus direitos civis. O portador da nova foi um poderoso amigo que pusera o infante D. Francisco, irmão de D. João V, aclamado no ano anterior, em luta com a Inquisição. Era Pedro José Supico de Morais, que o leitor talvez conheça de uma Coleção política de vários apotegmas, publicada em 1720. Não pense, porém, que Supico, segundo a obra indica, fosse um grave e conspícuo escritor de máximas e sentenças. Era pontualmente o reverso do homem que se rege por bons axiomas próprios ou alheios. Este sujeito, àquele tempo, jovem da câmara e valido do perverso infante D. Francisco, havia matado, em 1698, uma mulher por ciúmes. Acoitara-se num mosteiro, e fizera-se defender no tribunal por Jorge Mendes Nobre. Não sei se foi a eloquência do causídico, se a influência de Pedro II que lavraram a sentença absolutória. Supico afrontava, em 1707, o ódio de Lisboa, cavalgando o seu ginete arrogante ao lado do Grão-prior do Crato, neto de D. João IV.

Quando o bacharel foi preso, Supico de Morais andava viajando com as largas posses do seu património. Voltando à pátria, e insinuando-se na estima do infante, precocemente facinoroso aos dezasseis anos, vingou ingerir a vontade do rei nos decretos do Santo Ofício, e indultar as maiores cruezas da sentença que degredara o seu advogado, e lhe matara as poderosas faculdades de orador, fechando-lhe a tribuna.

O amigo de D. Francisco de Bragança descontara nas suas culpas a virtude acrisolada da gratidão. Jorge Mendes era livre, podia repatriar-se à capital, abrir o seu escritório e revestir a beca de primeiro advogado da corte.

Mas não voltou a Lisboa, nem advogou mais.

D. Ângela tinha-lhe perguntado um dia:

— Se sobrevivermos ao nosso degredo, para onde iremos, meu filho?

— Para onde minha mãe quiser.

— Eu to direi... e, se tiveres morrido, irei dizer-te para onde vou, à sepultura.

— Diga-mo agora, minha mãe, que eu receio não poder ouvi-la na sepultura. Os ouvidos dos mortos estão cheios de vermes... A podridão é surda. Para onde iremos? Eu não quero morrer, mãe! Tenho dois filhos: tenho minha mulher, que nos está ouvindo, posto que esteja morta, e tenho minha mãe que me dá exemplo de coragem. Hei de sobreviver ao degredo. Diga-me para onde iremos...

— Para a casa onde nasceu teu avô, se a casa ainda existir.

— Para Guimarães? Sei que o meu pai tinha comprado esse pardieiro aos oficiais do meu bisavô cuteleiro...

— Comprou... Vaticinava-me o coração que eu iria acabar na casinha da rua de Infesta onde começara a sentir a felicidade. Pedi ao teu pai que a comprasse aos mesmos a quem a déramos, quando meu avô morreu... Bem sei que me hão de traspassar cruéis angústias quando entrar naquela casa... Não importa... Se me queres acompanhar, Jorge, vem comigo; depois, irás para Lisboa, melhorar a tua vida, que ainda pode ter algum contentamento, e vai ver-me uma vez por outra.

— Não nos separaremos — volveu o filho. — Desde que saí do sepulcro da Inquisição ainda não vi o sol da alegria que dá o sentimento íntimo da vida. Que me faz Lisboa? Que me importam os triunfos de advogado, se já os não posso repetir? Não tornarei a ser o que fui... E que fiz eu?... A desgraça apagou-me a memória. De todos os meus estudos e triunfos apenas colhi um amigo, um homem de quem o povo pedia a cabeça, quando eu o arrancava às mãos do algoz. Salvei-o, e... desprezava-o!... mas Pedro Supico de Morais, dando-me a liberdade e o direito ao trabalho, faria de mim o antigo homem, se eu pudesse recompor o cérebro que me fizeram pedaços e mo arrancaram nas lágrimas. Tenho obrigação de viver, porque sou filho, esposo e pai. Privaram-me dos meus filhos; levaram-mos como reféns da minha fé; serão jesuítas, serão padres, se eu quiser alguma vez, na minha vida, estreitá-los ao peito e dizer-lhes que sejam hipócritas para que o seu pai não volte ao cárcere. A condição para que eu viva é que eles sejam imolados... a Deus! Seja assim... Vamos, minha mãe, vamos para o pobre casebre donde saiu seu pai a implantar na terra uma árvore de vergônteas malditas regadas com o seu sangue... Esperemos lá os meus filhos; não nos resta esperar outra alegria antes do último sono do sepulcro.

Nos últimos meses de 1707, Jorge Mendes e a sua família residiam em Guimarães, na casa onde nascera Domingos Leite Pereira, setenta e oito anos antes. Ângela, se antevisse a cerrada tristeza que a esperava naquele recinto onde volteavam as sombras do avô e do marido, teria o egoísmo de se arredar de um suplício de nenhum modo compensado. No engano de Ângela há exemplos de muitos iludidos. Figura-se-nos que no sítio onde nos bafejou a felicidade ainda poderemos aquecer ao calor das recordações a alma retransida das glaciais desgraças. Pinta-se-nos na fantasia alucinada por saudades que as pessoas mortas, que lá nos floriram a vida, deixaram toques de suave melancolia impressos na tela desluzida da nossa juventude. Prelibamos o agro das lágrimas que vamos chorar; mas julgamos que, depois das primeiras angústias, se nos há de a alma ir serenando em doces quebrantos daquela melancolia cismadora que é o remanso, onde a vaga tormentosa quebra e adormece. Funesta miragem! Os repulsos das alegrias do presente que aí vão buscá-las onde lhes ficou o túmulo delas, encontram a desolação, as ruínas das coisas reais sobre as ruínas das imagens redivivas na saudade. Os mortos amados erguem-se perante nós; mas hirtos, taciturnos, com as pálpebras roxas da tabidez dos vermes, e outra vez se reclinam no seio da sua podridão. Tudo aniquilado e perdido! Se aí há desafogo algum, é para aqueles que se compenetraram da bem-aventurança da morte — o grande abismo de tudo, a eterna serenidade do nada.

O diadema de Santo Inácio de Loiola parecia perpetuar-se na ciência da sua progenitura espiritual. Os filhos de Jorge Mendes, António e Francisco Xavier, fadara-os o vaticínio dos mestres para os elevados postos da Companhia. Em 1709 eram eles os mais distintos alunos do colégio em Coimbra; mas o braço poderoso de Pedro Supico de Morais ousou chegar aí e arrancar do tesouro da próvida Companhia aqueles dois preconizados sucessores da dinastia do talento.

Jorge Mendes confidenciara-lhe a mágoa de se ver afastado dos filhos, sendo essa uma cruel pena a que o Santo Ofício expressamente o não sentenciara. Queixava-se de que os jesuítas desatassem os vínculos da família, degenerando em quase indiferença o amor que os seus filhos tiveram aos pais, até à hora em que a Companhia os avassalara. Carpia-se por se ver obrigado a dissimular e transigir com essa ímpia tirania, receoso de recair nas masmorras do Santo Ofício e enredar os filhos na sua irremediável perdição se o acusassem de reincidência. Mostrava ter informações de que os seus inimigos se confederavam para reagir à influência do infante D. Francisco, suspeitando-o insidiosamente à Inquisição, que o trazia espiado pelos seus familiares em Guimarães, que eram os mais fidalgos e os mais devassos moradores da terra, Finalmente, pedia ao valido do infante prior do Crato que por algum modo fizesse saber aos seus filhos que se não esquecessem dele, nem aceitassem como divino o sevo preceito que impõe aos filhos a barbaria de desprezarem seus pais por amor de Deus.

Pedro Supico não se considerava ainda bastante desobrigado com o defensor que o salvou do patíbulo ou do degredo perpétuo. Por mediação direta de D. Francisco de Bragança, os filhos do bacharel Mendes Nobre foram transferidos do colégio das Artes a fim de serem empregados no serviço do infante. Impugnou a Companhia alegando o primeiro voto e a vocação dos jovens devotados liberrimamente ao instituto. Por secreta via, receberam os noviços conselhos do pai e do subsecretário de D. Francisco. Os rapazes, desoprimidos do temor de exporem o pai às insídias de inimigos, despiram o hábito com desafogo, e respiraram a haustos o primeiro ar de liberdade na juventude.

Paulo tinha vinte anos, e dezoito Francisco Xavier. O primeiro estudou jurisprudência; o segundo continuou teologia. Nenhum estorvo lhes dificultou a carreira. Os padres da Companhia doeram-se da perda, mas não se vingaram dos trânsfugas, conforme os ardis da Monita secreta, delatados ao ódio público pelos atrabiliários amanuenses do marquês de Pombal, meio século depois.

Os filhos de Jorge Mendes alegraram a precoce velhice do seu pai, e assistiram aos paroxismos da sua avó. Ângela finou-se em 1712, à volta dos sessenta e oito anos. Dado que cortadas de dores, as fibras desta raça de gente resistiam com rara tenacidade de vida. Dir-se-ia que as molas orgânicas da matéria se desgastam menos quando sobre a alma é que as dores atuam.

Vai terminar a longa necrologia. Era forçoso que a introdução se expusesse a enfastiar o leitor que assiste à rápida passagem de duas gerações. Não é meu costume inquirir a última moda, o moderníssimo paladar da opinião pública em iguarias desta espécie. Não sei se aprazem as delongas de Dickens, se as nudezas de Flaubert, se as tramoias de Ponson. Ouço dizer que a sentimentalidade é hoje uma vergonhosa miséria. Comover o leitor pelo coração é coisa pouco menos nefanda que anavalhá-lo pelas costas. No realismo há tudo, tirante a verdade das lágrimas. Foliar com a desgraça, arregaçar em hilaridade burlesca as feições retraídas pela agonia, é a escola novíssima — dizem eles que é novíssima. Eu, há vinte e quatro anos, remedava essa novidade nos romances de Voltaire. Escrevia a Filha do Arcediago e as Cenas da Foz. Onde isto vai! Como as novidades de agora são antigas!

Hoje estou na verdade da dor humana. Parece-me impiedade vesti-la de farsa e pô-la na praça, a escambo de risadas. O histrião não está perfeitamente acentuado no escritor. Sendo a escola, alcunhada de realista, a perversão do natural, os sectários desse desvario já se vão gozando do direito indiscutível de me refugarem da sua camaradagem de novelistas. Escrevo à antiga, porque tento comover — dizem, e é verdade.

Os personagens, extintos no decurso destas trinta páginas, tinham de morrer, pelas duas fatalidades, a da vida e a da história. Um artista mais atento às proeminências de gosto público, rescindiria a precisão de ligar Maria Isabel Traga-malhas à sua trineta, infausta personagem deste livro; eu, porém, que vi o berço dos meus personagens, segui-os até à sepultura, com muita fadiga na averiguação de miudezas dignas das insónias de uma academia, e de mim.

Está cerrada a Introdução, no momento em que a sepultura de Jorge Mendes Nobre se fecha.

CAPÍTULO I

Paulo Xavier e o seu irmão, levados a Queluz, à presença do infante D. Francisco, por Supico de Morais, acharam-se rodeados de grande parte de cortesãos que antepunham a libertina prodigalidade do duque de Beja à gravidade régia de D. João V. Paulo, que se licenciara em leis, foi logo despachado juiz de fora para Chão de coice, uma das vilas do infante; e Francisco Xavier, que se doutorara em teologia, como agradasse à corte de D. Francisco pela singularidade do talento e da eloquência, ficou na comitiva do infante, e muito querido de Lopo Furtado de Mendonça, conde do Rio Grande. Este fidalgo, divorciado das bacanais de Queluz, teve artes de subtrair Francisco Xavier ao influxo corruptor do irmão do rei, e particularmente à convivência de Pedro Supico de Morais, que os fidalgos festejavam em público e detestavam em segredo, ciosos da privança do infante. Tamanho rancor ao amigo de Jorge Mendes Nobre, e protetor dos seus filhos, rompeu, volvidos anos, na perfídia do homicídio a punhal. Seria longa, mas estranha deste livro, a notícia da morte do autor dos Apotegmas.

Os netos de Ângela tinham renunciado aos apelidos do bisavô e aos do pai. Não se assinavam Leites Pereiras, por causa da forca, nem Mendes Nobres por causa das fogueiras do campo da Lã, nem ainda Gomes pela sua mãe, pois que neste apelido exsudava sangue de hebreus, muitas vezes derramado nas Inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora.

Ora, os Xavieres da sua avó materna eram sangue puro, sem glóbulo de mouro ou judeu.

Francisco, o doutor teólogo, não se prendera a ordens que lhe desonestassem o gozo dos anos da força e das paixões sobravam-lhe bens da fortuna. Eram ricos do seu património, posto a lucro em Holanda. Paulo acrescera as rendas do seu irmão, cedendo-lhe parte grande das suas. No seu lugar de juiz, e estado de solteiro, despendia-se moderadamente, e folgava que Francisco, acamaradado com os nobres, os igualasse nas pompas.

O doutor Francisco Xavier era esbelto jovem. Aprimoravam-se nele os traços peculiares de raça, aformoseados pela semelhança dos seus bisavôs Domingos Leite Pereira e Maria Isabel. Muitas vezes, em menino, ouvira dizer a Ângela, sua avó «Como esta criança me desenha as feições do meu pai, quando eu nem sequer penso nele!»

A moda e o coração sedento nortearam-no para o mosteiro de Odivelas. Ia no rasto do rei e dos potentados do reino. A corrupção ali era fidalga e realenga. Soror Paula

Note:

“Soror” tanto era um título eclesiástico como uma forma de tratamento entre freiras e outros membros da igreja. “Irmã” seria a forma mais aproximada do seu significado.

, a trigueirinha, que ainda assim não pudera quebrar os feitiços de D. João V com a cigana Margarida do Monte, professara por aquele tempo.

O rei disputou-a ao conde de Vimioso, tirou-lha, e cedeu-lhe duas à escolha. Uma, a preferida, rejeitou o conde, e deixou-se requebrar da candura de Francisco Xavier. Era D. Catarina Luísa de Miranda e Castro, alcunhada a Muleirinha, e assim conhecida na roda dos condes, que tiniam as esporas de ouro no pátio das eróticas Bernardas.

Aquela D. Catarina era deveras e singularmente amada e linda, com vinte e um anos. Mas Francisco Xavier era amado de duas. A outra passava dos trinta anos, tinha a experiência que lhe cancerara e calejara o coração, a estratégia que dão as cicatrizes. Chamava-se D. Francisca Inácia de Meio, por alcunha a Pimentinha. Quase todas eram alcunhadas. Esta derivaram-lhe o apelido do temperamento cálido, da irascibilidade no amor, nos zelos, na petulância com que fazia do hábito um dominó do carnaval. Qualquer das duas figurava sempre na Lista das pessoas que saiam condenadas... O leitor moderno e descurioso de velharias decerto ignora o que eram estas Listas anuais. Vou dar-lhe um modelo, trasladando parte do rol manuscrito de 1716. Veja como era divertido aquele tempo! Com tais elementos, a imprensa de hoje, se os tivesse, não estagnaria neste mar morto de enxabidez em que a pusemos. A Lista era o periódico satírico manuscrito, enviado ao mosteiro, em tantos exemplares quantas eram as cabeças mais belas e doidas. Os redatores eram clandestinos; e por isso, o rei e os próceres de maior tomo nem sempre eram respeitados, e bem assim as freiras que tinham cá fora os lacaios dos amantes armados do tagante vingador.

Era assim a Lista das pessoas que saíram condenadas por ordem da sua Majestade e do Geral de Alcobaça, pelas devassas secular e regular que tiraram no convento de Odivelas o corregedor do bairro dos Romulares e os visitadores da mesma religião. Primeira abjuração de leve por culpas de presunção amante, alcovitice e outros erros.

Números — Nomes — Idades — Penas

1º O padre Pantaleão Rodrigues de Sã, 38 anos, presbítero do hábito de S. Pedro, natural de Odivelas, e na mesma parte morador, por dar palestra a vários freiráticos na sua casa, dando os escritos e recebendo respostas de muitos tratamentos ilícitos. Termo que assinou no Aljube com promessa de não consentir em casa semelhante gente, e 40 léguas degredado para fora da corte.

2º O padre Roque Francisco, 42 anos clérigo do hábito de S. Pedro, por tratamento ilícito com certa religiosa que vai na lista. Termo na mesma prisão e 80 léguas para fora da corte.

3º Francisco Xavier Curvo Semedo, 41 anos, natural de Lisboa, onde é morador. Por presunção das mesmas culpas. Termo em casa do corregedor.

4º Henrique Xavier de Pina Coutinho, 30 anos. O mesmo. Termo em casa do corregedor.

5º O doutor Francisco Xavier, 22 anos natural de Lisboa, e aí morador, por se entreter em correspondências ilícitas com certas religiosas que vão à lista, etc. Termo no Aljube e degredo.

SENHORAS

Abjuração de leve por culpas de amantes e outros erros

N.ºs — NOMES — IDADES — PENAS

1º D. Úrsula Francisca de Morais, 26 anos, a Caramelo, natural de Lisboa, religiosa em Odivelas, por culpas de correspondências ilícitas. Quinze dias de comer em terra e 6 meses privada das grades e lugares públicos.

2º D. Francisca Inácia de Melo, a Pimentinha, 30 anos, pelas mesmas culpas. O mesmo.

3º D. Ana Joaquina Bandume, do reino de Angola, 30 anos de idade, pelas mesmas culpas. O mesmo.

4º D. Clara de Almeida e Vasconcelos, 40 anos de idade, idem, etc. O mesmo.

5º D. Catarina Luísa de Miranda e Castro, a Muleirinha, 21 anos de idade, por as mesmas culpas, com agravo de outra que vai na lista. O mesmo.

São condenadas a cárcere e longos jejuns D. Mariana Perpétua, relaça e pertinaz e impertinente.

D. Leonor de Meneses, chamada a das Finezas, que tem 40 anos.

D. Catarina Isabel, a Caçarola, que tem 18 anos.

D. Jacinta Micaela de Castro, a contratadora, 28 anos.

D. Teresa de Melo, a Vigairinha, 23 anos.

E por não guardar lealdade ao seu amante é condenada a um mês de cárcere a Sra. D. Maurícia Rangel de Macedo, que tem 82 anos, idade, naquele tempo, incompatível com menos de dois amantes, ao que parece.

Enfim, diz-nos a lista que a inspiradora do poeta António Sanches de Noronha, por amor de quem ele se desbaratava em odres de vinho, era D. Maurícia de Pina Rebelo Freire, a quem D. João V chamara Márcia bela.

Aí estão os nomes das mais celebradas formosuras de Odivelas.

Por onde se vê que D. Catarina, a Muleirinha, era condenada por amores, com agravo da outra; e Francisco Xavier, também arrolado na lista, é o único incurso no crime de correspondência plural com certas religiosas.

Isto que parecera brinquedo cá fora, lá no interior do mosteiro ia lavrando em guerra de intrigas, agoureira de funesto desenlace. Catarina de Castro era aborrecida das freiras contemporâneas de Francisca Melo na profissão. Os doze anos e a beleza que as distanciavam abalizavam a arena da encarniçada luta. As parciais da mais velha diziam que a primazia era da Pimentinha por ter sido esta a que primeiro ouvira os requebros do doutor Xavier. As poucas do bando da Muleirinha pleiteavam os direitos da sua amiga, rindo e galhofando da outra, a quem chamavam velhota. É o costume. As mulheres de vinte anos datam a velhice aos trinta, e dos quarenta em diante confundem todas as senhoras na respeitabilidade das suas mães e avós.

Francisca Melo sabia que lhe ridicularizavam os serôdios ciúmes; contorcia-se beliscada na fibra mais sensível; digeria a afronta, esperando a ocasião de a revessar em fel à cara da rival.

Mas, verdadeiramente a culpa não era de Francisco Xavier. Se uma vez galanteara Francisca, induzido pelos desonestos pensamentos que o apelido da freira e as informações lhe esporearam, este galanteio não o obrigara às austeras fidelidades costumadas nos amores monásticos. O filho de Jorge Mendes estava ainda longe da idade e do uso em que o paladar cansado carece de perrixis estimulantes. A mulher ideal que o seu coração almejava devia ser modesta, pudibunda, arminho sem nódoa, meiga sem arte, infantilmente assustadiça, propensa às lágrimas, singela no dizer, ignorante das grandes frases que tornam o amor pretexto de retórica; enfim, ele andava a cismar com um composto de carne e espírito, que não era de modo algum aquela filha de S. Bernardo, e esposa do Senhor, chamada ardentemente a Pimentinha.

Quando viu Catarina, além de linda e serena como a inocência, aureolada com a distinção de ter sido alguns dias requestada pelo monarca, adorou-a, posto que do seu prospeto não constasse que o arminho dos seus sonhos fosse mais cândido, se o hálito do rei o bafejasse. Adorou-a apesar disso, ou talvez por isso.

E pode ser que o despeito dela aferventasse a paixão. O rei deixou-a por causa de Paula Perestrelo. O conde de Vimioso apareceu-lhe no lugar do rei, que lhe fazia mercê de uma das duas odaliscas. E Catarina, desprezando o substituído na pessoa do substituto, retemperou e aqueceu o coração no fogo do capricho, e entregou-o com sincera e honesta dedicação a um jovem que lhe falava tímido, que a contemplava silencioso, e era de si gentilíssimo, e, entre os mais fidalgos, o que parecia mestre na cortesia, e superior na educação.

CAPÍTULO II

Medrou o amor de Catarina de Castro na proporção do ódio que lhe votava Francisca Melo. Os amorios de Odivelas, uma vez por outra, eram mais escandalosos que impuros. Paixões sérias e elevadas à extrema consequência do assalto ou da fuga eram raras. Em mosteiros menos apontados à vingança do céu repetiam-se mais frequentes as transgressões do voto virginal. Brincava-se ali, em Odivelas, com o amor. Supurava muito abcesso de ternura em poesia má — verdadeira peste. Sarjados uns tumores, bojavam outros. Em cada primavera, trinava pássaro novo no coração da freira, e pululava no terreiro florescência nova de condes, de cónegos, de poetas que, por via de regra, eram os línguas dos fidalgaços.

Amavam-se doidamente o doutor e a freira, porque eram felizes, zombando assim das ironias mordazes e das intrigas impudentes da Pimentinha. Quem primeiramente farejou intenções impuras nos colóquios da grade, e propósitos impudicos, foi D. Francisca, avisando a prelada, e citando-lhe o recente exemplo da fuga de soror Laureana, abadessa de Sant'Ana, com um frade capucho.

A prelada era discreta e conhecia a intrigante, já provada em outros enredos. Ainda assim, admoestou a freira em termos severos. Catarina, respeitando-a, coibiu-se de lhe perguntar se o seu perigo não seria maior amando o rei; e, se os conselhos que lhe dava agora, não seriam mais oportunos quando D. João V, assim como a mandava ir à grade, a podia mandar ir à sua alcova. A abadessa responderia a isto, pondo os olhos no céu, e murmurando: «Bem sabeis, Senhor, que eu não posso obstar a estas poucas vergonhas!»

Muito fizera ela, obrigando indiretamente o monarca a edificar casa para Paula Perestrelo, de modo que ela se passasse do mosteiro para lá. Porque até então o rei entrava pela portaria, demorava-se na cela da religiosa, e, ao sair, dava a mão a beijar à prelada, que o seguia com as freiras mais autorizadas até à porta. Perguntou-lhes o rei numa dessas retiradas o que ia fazer.

— Vamos rogar a Deus, pela vida da vossa majestade — respondeu a monja com solenidade.

Estremeceu D. João; entrou-se de escrúpulos, e nunca mais se serviu daquela porta. Mandou construir o passadiço, e adornar com os sonhados esplendores de um sultão os aposentos de Paula e da sua irmã Maria da Luz.

As reflexões da abadessa apertaram mais os vínculos. A ideia da fuga, ao princípio, deslumbrou-os em exultações misturadas de terror; depois, a treva medonha rarefez-se, e ficou apenas uma sombra que não resistia às torrentes luminosas daqueles dois corações alucinados. Pactuavam fugir para Amesterdão, e de lá perlustrar o mundo, gastar a vida e o ouro, envelhecer em delícias. Catarina iria para Montemor, onde tinha mãe, por motivo, de doença. A fuga seria de lá. Estava decidido.

No entanto Francisco Xavier, que amava e respeitava seu irmão Paulo, revelou-lhe o segredo. Paulo foi a Lisboa pressurosamente, e com boas razões, com súplicas, com lágrimas e até com desesperadas ameaças conseguiu demover o irmão.

— Não fujas! — disse ele, quando Francisco parecia vacilante. — Não te percas, perdendo essa pobre menina! Ela que vá para Montemor, e vai tu também com o recato que pode fazer durar o encanto do amor. Não a faças absolutamente tua, se a queres amar, não sujeites à tua dependência do pão e do vestido, se queres que ela te ame. Três meses de amor te dirão o que tu serias aos seis, e os fastios que te esperam aos doze.

Estas e outras melhores razões, que denotavam experiência no juiz de fora, fermentavam lentamente no ânimo do galã. Enfim, vieram a um acordo razoável: se Francisco Xavier, seis meses depois da saída da freira, carecesse de expatriar-se para ser feliz, Paulo coadjuvaria a fuga, e liberalizaria ao seu irmão dobrados meios para lá fora aliar à sua fortuna de amante as opulências de rico.

Não havia precisão de comunicar à freira estas cláusulas desairosas. Francisco Xavier, para além do mais, tencionava provar ao irmão que, sendo eterno o seu amor, a fuga, a posse infinita do objeto amado, era necessária.

A licença da saída foi solicitada em segredo. O dom abade de Alcobaça, Fr. Bernardo de Castelo Branco, não costumava devassar dos intuitos das religiosas que requeriam ares pátrios. Dizia ele que os ares de Odivelas eram pestilenciais como os do serralho de Ibraíme. Se alguma queria sair, dizia ele: «é porque quer ser mulher honesta.»

Quando se anunciou no convento a saída da Muleirinha, D. Francisca Melo esvurmou as cóleras que espumavam no vocabulário da ralé. Disse de Catarina impudicícias que, repartidas pela comunidade, ainda haveria excedente de injúria para todas.

Saiu D. Catarina para Montemor-o-Velho em companhia da sua mãe e do seu primo Francisco de Pina e Meio, o poeta e fecundíssimo prosista, que hoje ninguém digere. A notícia deste parente de Catarina seria despropositada aqui, se ao diante não adviessem infortúnios procedentes dessa consanguinidade. A mãe da religiosa era da família dos Meios e Pinas, suspeitos hebreus que deram muita carne para as festas da Inquisição de Coimbra durante o século XVII, como vamos recordar de passagem.

Quando Catarina chegou a casa fazia-se na terra uma fúnebre cerimónia. Os ossos da sua tia-avó D. Margarida de Meio, dezassete anos presa nos cárceres do Santo Ofício em Coimbra, e aí falecida, eram exumados da vala dos condenados e sepultos no carneiro da família, no mosteiro dos Anjos. A Inquisição proclamou-a cristã-velha no acto particular que se celebrou em 13 de Março de 1683; mas já estava morta, depois de dezassete anos de trevas, nudez, fome e torturas. Esta senhora, quando foi presa, era casada com Manuel da Fonseca Pinto, da casa de Balsemão. O marido morreu de dor, e ela expirou sem saber que era viúva.

Tangiam os sinos a finados, quando Catarina entrou em Montemor. Soava-lhe no coração aquela toada plangente. A alegria com que saíra do mosteiro agourentavam-lha agora sinistros vaticínios. O seu primo, o festivo autor de Epitalâmios e Espelhos nupciais, também ia triste, meditando talvez nas longas agonias dos seus ascendentes. E tinha que meditar. Se o leitor está de pachorra, meditemos também.

Em 17 de Setembro de 1598 morreu Álvaro de Pina Cardoso, fidalgo da casa d’el-rei, e morador em Montemor. Este homem havia casado com Andresa de Andrade, cristã-nova. Deixou quatro filhos. O primogénito, Rui de Pina, foi queimado no auto-de-fé de Coimbra, em 4 de Maio de 1623. No mesmo auto foi queimada sua mulher Luísa Comes, de 59 anos. Paulo de Pina, o segundo filho, foi queimado no mesmo auto. Salvou-se sua mulher e também o sogro, o doutor Manuel Rodrigues Navarro, lente da Universidade. Amaro de Pina, terceiro filho, de 44 anos, foi penitenciado com cinco anos de galés. Sebastiana de Pina, freira no mosteiro de Campos, foi presa e morreu recolhida nas convertidas de Coimbra. No auto de 1625 saíram penitenciados dois sacerdotes da mesma família, que voluntariamente se acusaram ao Santo Ofício, com o fim de enredarem no judaísmo seu cunhado Bento da Cunha Perestrelo, que morava em Coimbra na sua casa de Sub-Ripas que os fabulistas chamam o «palácio de Maria Teles.» Estes padres — diz um genealogista coevo — sobre péssimos homens foram muito bêbados. Acreditamos. A Inquisição ouviu-os, e mandou-os em paz, depois de lhes vestir e despir o hábito penitencial. Um dos padres, Baltasar de Pina, querendo entrar no convento da sua ordem franciscana, foi expulso pelos frades com pragas e paus e assobios.

O último varão representante dos Pinas de Montemor-o-Velho era o poeta Francisco Caetano de Pina e Meio, que estas memórias tristes ia pensando, ao lado da melancólica prima. Se ele antevira então o quinhão de desventuras que guardava o destino! Todos os seus biógrafos, Barbosa, Costa e Silva e o Sr. Inocêncio desconheceram os transes esquisitos desta existência tão luxuriante de versalhada e prosa importuna. Casara ele com uma D. Maria Teresa Coelho de Faria, de Coimbra, contra vontade do pai, que vendeu e destruiu quantos bens possuía para empobrecer o filho. O poeta, privado de meios, deixou a mulher, e passou para Castela. Aí, com reverendas falsas, fez-se clérigo. Voltando a Portugal, foi preso em Coimbra. A sua mulher, que ainda vivia, meteu-se freira em Santa Iria de Tomar. Restituído ao uso das musas, recolheu-se a Montemor, onde escreveu muito como penitência, sem edificação nem proveito da posteridade. E, morrendo em 1767, extinguiu-se esta raça de Pinas que em letras e armas lustraram grandemente desde Fernão de Pina, cavaleiro de Afonso IV.

Com toda a certeza, a freira cisterciense não pensava nos seus preclaros avoengos, nem sabia que um desses estroncara mouros, e outro escrevera crónicas de réis. Se contemplava o Sol, que se atofava em froixéis de arminho e púrpura, não era isso a poesia do crepúsculo, como o seu primo julgava, recitando-lhe sonetos ao rubente Febo e à casta Latona que surgia no horizonte com o seu toucado de ingentes rubis. O que ela queria era a noite, a noite alta, e muito escura, o cantar do galo às horas mortas; porque se sentia desfalecer de saudade, de tristeza, de mórbidos pressentimentos, e queria chorar nos braços de Francisco Xavier. São assim quase todos os introitos da falsa felicidade. Ao longe a miragem. Quando nos separam dois passos do ansiado gozo, cava-se um abismo. A fatalidade abre-nos os braços, e transporta-nos. Depois, a voragem alarga-se, cinge-nos, corta-nos as avenidas. Não há fugir-lhe.

Não era ainda isto o que ela cismava, quando Francisco Xavier, passando ao longo das paredes negras da casa solarenga dos Pinas, se cingiu com uma porta baixa de arco, na base de uma torre ameiada, e esperou.

A porta abriu-se com tanta subtileza que mais se ouvia a respiração arquejante da freira que o ringir dos gonzos.

CAPÍTULO III

Francisco Xavier residia em Coimbra. Ao descair do Sol, cavalgava o seu ginete; e, galopando as quatro léguas que o separavam de Montemor, pela calada da noite, dava o cavalo ao lacaio, e sumia-se na porta arqueada da casa manuelina. Ao repontar da aurora, voltava a Coimbra e emboscava-se nuns arvoredos da Arregaça a cismar na sua ventura, ou talvez a dormir, — o que é mais natural: sejamos um pouquinho realistas.

Quer poetasse, quer dormisse, a poesia ou sonho, volvidos cinco meses, inquietavam-no, confrangiam-lhe o ânimo com mordentes desgostos. Não era o fastio. A felicidade serena, quieta e sem reveses é que descamba no tédio. Se ensanguentamos os dedos nos espinhos das rosas, então nos é mais cara, mais preciosa a flor colhida.

A sua inquietação davam-lha as incessantes lástimas de Catarina, logo que no seio lhe avultara o querido e implacável testemunho do seu delito. Ele queria agora com mais forte causa, mas menos entusiasta, realizar o plano da fuga; mas a monja de Cister, desde os primeiros sinais da maternidade, alquebrada por estranhos terrores, caiu na cama, sem energia, sem arbítrio, desafogando as enchentes de amargura no coração da sua mãe, louca de dor e vergonha. Depois, quando readquiriu vigor morai, era tarde para fugir. A sua mãe perdoara-lhe com a condição de que ela não faria pública a desonra de ambas, fugindo com o amante. E o amante condescendeu prudentemente. Acautelou-se Catarina de vistas suspeitosas; a mãe encerrou-se com ela na sua quinta de Verride, e permitiu que Francisco Xavier deliberasse o destino da criança.

O juiz de fora de Chão de coice, consultado no grande aperto do irmão, combateu o intento da fugida para a Holanda, alegando que uma parvoíce não remediava a outra. Encarregou-se de receber a criança, e mandá-la criar. Acrescentou que, se a criança, no futuro, não devesse conhecer seu pai, ficaria sendo filha do seu tio; e concluiu, sorrindo:

— Não te dê preocupação o filho. Cede-mo a mim, visto que tens a dita de ser fecundo, e é de esperar que continues a dar-me provas de que possuía o dom e a graça dos patriarcas abençoados. Os filhos que sobrevierem di-lo-emos repartindo entre nós. Peço-te, porém, que mudes de rumo quanto às mães da tua futura prole. As freiras acirram bastantemente o pecado, têm amavios e feitiçarias de arte diabólica; mas não servem para mães. Persuadem-se que a esterilidade é uma prerrogativa dos seus amores platónicos; mas, se se esquecem de Platão, por se lembrarem de mais de Epicuro, apavoram-se, como Catarina, quando se acham o mais corporalmente que é possível mulheres etc.

E ficaram pactuados. Assim que a criança nascesse, perto de Verride estaria pessoa confidente de Paulo Xavier para recebê-la. Seria criada em casa do seu tio, o qual deixar-se-ia pacientemente caluniar de pai, visto que, depois de reiterados esforços, não lograra a invejada felicidade de ter um filho.

Catarina de Castro aceitou resignadamente a convenção; mas repeliu o alvitre da sua mãe, que lhe instava pela entrada em Odivelas. Matar-se-ia, se a violência da mãe e o desamor do amante a quisessem repor entre mulheres odiosas, agora que já não tinha coração que desse a Deus, ou que desbaratasse em novos afetos. Francisco Xavier mitigava estes acessos de rebelde desesperação, prometendo-lhe resgatá-la para todo sempre da clausura; mas nestas promessas não havia a intimativa da verdade nem a veemência do amor.

Nasceu uma menina numa noite de Outubro de 1714. À volta do ermo e desconversável aldeia de Verride rangiam as árvores, varejadas por pegões de vento. Se houve gritos, abafou-os o retroar da trovoada. Francisco Xavier viu o rosto da sua filha à luz sulfúrea de um relâmpago, quando a passava às mãos de uma mulher enviada por Paulo. Fitou-a na escuridão alguns segundos, esperando o fosforear de outro relâmpago. Sentiu-a fria, e assustou-se com os vagidos. Bafejou-lhe calor às faces, e depô-la no seio da mulher, que se agasalhou numa casa da quinta, onde Francisco Xavier passara os últimos dias escondido.

A criança, no dia seguinte, foi para Chão de coice, e o pai voltou para Coimbra, carecido de repouso, de solidão e silêncio; porque se sentia cansado, aborrecido de lances tristes, e saudoso dos desprendimentos da sua vida de outro tempo.

Catarina, entretanto, dizia-lhe que o último prazo de licença estava a terminar; que a mãe não cessava de lhe pedir que voltasse para o convento; enfim, que uma sua amiga leal de Odivelas lhe escrevera assustada por saber que Francisca Melo, e outras, alguma maldade teciam contra ela, fosse o que fosse, porque, lá no convento, andavam uns zunzuns a dizerem que ela era de raça judia.

Nem Catarina nem Francisco Xavier deram valor ao dito de cristã-nova; mas a mãe alvoroçou-se e, pálida de susto, referiu à filha a história dos seus ascendentes. Traspassada de medo, a freira acelerou os preparativos da fuga, dispondo-se a procurar, sem antecipado aviso, o amante em Coimbra. Já a mãe propriamente a induzia a sair do reino e censurava a frouxa diligência do perdedor da sua filha pela sua parte, Francisco Xavier, colhendo em Coimbra com autorizados informadores, nos arquivos do Santo Ofício, notícias da família Pinas de Montemor, soube os nomes de vinte e tantos réus daquela família, uns queimados, outros nas galés, e muitos penitenciados com hábito perpétuo. Atemorizou-se como quem era filho de Jorge Mendes e sobrinho do bacharel Afonso Nobre, queimado em 1664. Foi ter com o irmão. Referiu-lhe aflitivamente os seus receios. Paulo não sorriu dos sustos do irmão nem dissimulou os próprios; antes pelo contrário o incitou a partirem sem demora.

Voltou Francisco Xavier a Coimbra. Partiu na mesma noite para Verride, com o propósito de se abalarem dali ao Porto, e negociarem a passagem por mar. A meio caminho encontrou um camponês que o chamou pelo seu nome. Era o quinteiro da aldeia de Verride que ia a Coimbra avisar Francisco Xavier de que as suas amas tinham sido naquele (lia presas por dois familiares do Santo Ofício, e conduzidas a Montemor.

A estupefação nublou-lhe o juízo e a inteligência clara da sua situação. Seguiram-se quinze minutos de agonia que nenhum homem os trocara pelo amor e pelas virginais carícias da formosa freira.

— Eu fui infame em não ter fugido com a desgraçada! — dizia ele de si para consigo, exacerbando a dor da saudade com condenação de ter mentido à vítima que pusera nas mãos dos inquisidores.

CAPÍTULO IV

O doutor Xavier lançou-se nos braços do irmão. Lastimava-se perdido. A cada rumor nas escadas do juiz espavoriam-se-lhe os olhos contra a porta. Todo o homem inocente e inofensivo se lhe afigurava esbirro do Santo Ofício.

Aconselhado prudentemente, partiu aforrado para Lisboa, onde tinha um sincero amigo, o conde de Rio Grande. O conde escondeu-o na sua casa, e indagou os intuitos da Inquisição de Coimbra no Conselho Geral. Soube que a freira e a sua mãe respondiam por culpas de fé e impureza de sangue; que a denúncia partira de uma casa religiosa; que Francisco Xavier não fora implicado na denúncia. Só um fidalgo tão poderoso, e aparentado com o inquisidor-geral, poderia arrancar tal segredo da secretaria do tribunal.

Qual tivesse de ser a sentença das encarceradas, isso não estava na astúcia humana calculá-lo. Favorecê-las, empenhar na absolvição os validos potentados da corte, é o mais que o conde do Rio podia vencer.

Mas as semanas e os meses arrastavam-se lentos sem que Francisco Xavier tivesse notícias de Catarina. O protetor podia apenas asseverar-lhe que elas viviam aferrolhadas no seu ergástulo de quinze palmos de comprimento e doze de largura, com a escassa luz de uma fresta do tamanho da mão travessa e três palmos de altura, mas tão elevada que as presas só de pé recebiam no rosto claridade. À noite, davam-lhes uma candeia. A mobília era um estrado que apodrecia logo na humidade do chão, e umas vasilhas de barro.

Amolgou-lhe o débil ânimo uma tristeza sem intercadências de esperança. Tudo negro, e o passado irreparável! Convenceu-se de que a pobre menina e a santa mãe pereceriam antes do julgamento. Acusava-se de matador da formosa criatura, cujo amor ele não soubera avaliar. Amaldiçoava-se por haver vilmente faltado à palavra que dera de fugir para Holanda. Era desgraçadíssimo — e devia sê-lo.

Quando a razão ia apagar-se-lhe, iluminou-o o clarão da fé, com todas as suas fulgurações sinistras, reverberadas das penas do fogo eterno. Não viu ponto intermédio entre a vida ascética e o suicídio. Pensava nas duas saídas da sua angústia, ao mesmo tempo. Matar-se de um golpe e cair no inferno, ou dilacerar-se devagar, fibra a fibra, e ganhar a graça de Deus deleitando a divina justiça com o espetáculo da carnificina própria.

Acudiram-lhe à demência o conde e o irmão, pedindo-lhe coragem viril em nome da filha. Ele respondia que a criancinha era a expressão providencial das cóleras divinas.

Naquele ano, falava-se muito da conversão de Baltasar Casqueiro, um homem de humilde sorte, valente facinoroso, espancador professo, que pouco antes pertencera ao bando do arruador noturno Sebastião de Carvalho, que entrou na imortalidade com o título de marquês de Pombal. Casqueiro, que então contava trinta anos, embrenhara-se em fraguedos aspérrimos nas vizinhanças de Évora, chamados Monte furado ou Covas infernais. Havia ali um núcleo de conversos, atraídos pelas rudes penitências de um caldeireiro de Lisboa. Daquele alfobre de ermitões saiu, volvidos anos, Baltasar Casqueiro, o fundador do convento do Senhor Jesus da Boa-Morte, de monges descalços de S. Paulo, primeiro eremita. Lisboa ajoelhava-lhe à saída dos templos. Fr. Baltasar da Encarnação se chamava ele, e não cessava de dizer quando escrevia untuosos sermões que na sua mão assentava melhor a sovela que a pena. Havia sido sapateiro, ou artista confecionador de calçado, como diz na tabuleta um seu atual colega do Porto, menos santo, e infinitamente mais tolo. Já não há sapateiros… nem santos daquela massa.

O doutor Francisco Xavier queria ir para as Covas infernais. Não havia razões e rogos que o demovessem quando o seu condiscípulo e amigo, o irmão do marquês de Gouveia, D. Gaspar de Moscoso e Silva, reitor da Universidade de Coimbra, vestiu o hábito humilde da ordem dos menores observantes de S. Francisco de Assis, ou missionários apostólicos do Varatojo. Assim que lhe chegou a estrondosa nova do sucesso, Francisco Xavier foi lançar-se aos pés do frade varatojano, rogando-lhe que o levasse consigo. Fr. Gaspar da Encarnação, reconhecendo o condiscípulo, cujos devaneios por Odivelas deplorara no âmago do seu peito, levantou-o nos braços; e orvalhado de seráficas lágrimas, entoou vários versículos da Bíblia muito apropositados. Choravam ambos copiosamente.

O doutor Xavier, passados dois meses, era frei Francisco da Luz, macerado, envelhecido, estúpido, fanático, bestial à força de se degenerar, de se amputar, de se infamar de assassino das duas encarceradas. O único acto louvável da sua mortificação claustral era celebrar missa quotidiana por alma de Catarina, com licença do seu diretor espiritual, posto que ninguém lhe dissesse que Catarina estava morta. Na filha não falava, quando respondia às cartas do irmão. Verdade é que Paulo, falando da menina, escrevia sempre: «A minha Antoninha, a minha querida criança, a minha doce filha, o meu pequenino anjo, etc.».

Por onde se depreende que a filha de Catarina fora batizada com o nome de Antónia, e vivia na companhia de... O seu pai. Pai é que diziam todos, e a ama que a criava, ao fim de dezoito meses, conseguiu que a menina articulasse a palavra papá.

Deixemos o frade, e vamos à Inquisição de Coimbra.

As duas presas, passados os primeiros meses, sentiram a influência das valiosas proteções. O conde do Rio Grande movera à comiseração da religiosa o real coração que pulsara por ela uns dias. D. João V foi, também, rogado por D. Paula a favor de Catarina. Esta generosidade da amante do rei denotava a compaixão pela mulher que D. João lhe sacrificara. Duas tinham sido as vítimas imoladas a Paula. Catarina resignara-se e continuara boas aparências de amizade com a ditosa; porém, Francisca Melo não só cortara relações, mas até a tratava de mulatinha por ser morena (como era justo que o Salomão português tivesse uma — Nigra sum, etc.). Bastava isso para que Paula protegesse a inimiga de Francisca.

Como quer que fosse, as duas senhoras, acusadas de cristãs-novas, depois de removidas para uma sala do edifício, com liberdade de mudarem as suas roupas e escolherem seus alimentos, foram confiadas à doutrinação de um dominicano, ancião bondoso que lhes explicava as estampas de uma bíblia francesa, e lhes traduzia e comentava La História de Santo Domingo pelo mestre Hernando de Castillo. Contava-lhes os casos miríficos de conversões que estrondeavam no mundo, e particularmente em Portugal: por exemplo, a conversão do façanhoso Baltasar Casqueiro, a entrada de D. Gaspar Moscoso no Varatojo, e também a conversão que levara ao mesmo convento o rico e mundanal doutor Francisco Xavier.

Catarina com febril transporte perguntou-lhe se esse doutor era um que...

Atalhou-a o padre, dizendo:

— Era um que vós, soror Catarina, havíeis de conhecer há dois anos entre os regalões que o inimigo do género humano deputava ao vosso convento de Odivelas. Esse é, irmã, que não outro.

— E está frade?! — exclamou Catarina, sem atentar na mãe que lhe fazia trejeitos aflitos.

— E frade varatojano — respondeu o padre atribuindo a veemência da freira ao assombro de tamanha maravilha.

Desataram-se as lágrimas dos olhos de Catarina e nem assim respirou da sua grande opressão. Soluçava sufocando os gritos; contorcia os braços, e enclavinhava as mãos, erguendo-as para a cruz. E o dominicano estava espantado ou desconfiado de tais demasias, até que a mãe dissimulou aquelas posturas trágicas, explicando que a sua filha, quando ouvia passagens que a comovessem, tinha semelhantes ataques...

— Então é nervos... — assentiu o padre de boa-fé. É moléstia a que as freiras são muito atreitas. Mas algumas conheço eu em Celas, que sofrem disso, e já lhes receitei uma boa disciplina ao deitar, outra ao erguer, e muitos jejuns; porque tenho observado, senhoras minhas, que as mulheres do campo, que trabalham e suam, não têm desses ataques... Eu acho bom e saudável para a alma que uma pessoa se edifique ao ouvir contar casos maravilhosos de conversões. Bom sinal é esse de predestinação... Mas cada coisa tem seu lugar; e a sua aflição, Sra. D. Catarina, é extraordinária... Sempre me quer parecer que a irmã Catarina, ouvindo falar dos pecadores e pecadoras de Odivelas, teve um ruim demónio, que lhe trouxe uma saudade e lha pôs sobre o coração como brasa viva... É preciso apagá-la...

— Está enganado, senhor... — atalhou Catarina estancando as lágrimas.

— Debaixo destas abóbadas mentir é mentir a Deus, que não pode ser enganado — admoestou o qualificador do Santo Ofício. — A profana Odivelas explica a Santa Inquisição... Creio que me percebe; e, se não percebe, não posso esclarecê-la. A sua prisão, senhora, é uma vingança, e ainda bem que a culpa é de fragilidade e não de fé. Quando voltar ao seu convento, confunda as suas inimigas com exemplos de virtude... E se esse desvairado doutor Xavier, que Deus chamou ao seu aprisco, foi Parte nos desvarios de soror Catarina, peça ao Senhor que lhe ilumine o coração com as luzes da mesma graça.

E, pondo-lhe brandamente a mão no ombro, concluiu:

— Os maus exemplos... os maus exemplos!... Madre Paula dará no inferno os formidáveis gritos da alma que arrastou outras, e o cetro que tudo pode será vara de eterno fogo e eterna justiça nas mãos do mau príncipe...

CAPÍTULO V

Catarina e a sua mãe saíram absoltas em auto particular. Nem levemente lhes infligiram penitências; que as testemunhas inquiridas em Odivelas e Montemor aliviavam da menor suspeita de judaísmo a viúva e a filha.

Assim que ao mosteiro chegou a nova de que a Muleirinha ia ser reintegrada na sua cela, soror Paula deu a perceber que pisara o orgulho das inimigas de Catarina. A maioria da comunidade odiava a amante do rei — umas freiras por virtude, outras por inveja do vício, e algumas, o restante delas, porque a concubina de D. João V se afrontava petulante com as mais fidalgas. Logo, pois, que Paula se manifestou arrogante protetora da Muleirinha, até as indiferentes à rival de Francisca Melo se confederaram contra a protegida. As pouquíssimas amigas da caluniada cristã-nova alhearam-se do bando hostil; mas não se encostaram a Paula, que as repelia todas, como quem desejava lutar sozinha, e estender uma bofetada de mão real a todas as caras das suas irmãs em S. Bernardo e co-esposas de Jesus.

Imagine-se os conluios, o reboliço, o redemoinho de duzentas e setenta e oito freiras, à mistura com mais duzentas e tantas fêmeas entre seculares e criadas! Havia conventículos particulares sujeitos às deliberações do centro, presidido pela Pimentinha. Discutiam o mais perentório expediente a seguir logo que Catarina de Castro reentrasse no mosteiro. A prelada, por conselho e indústria dos frades cistercienses, procuradores e diretores do rebanho, fez uma alocução às mais mexediças, admoestando-as a submeterem-se às ordens de el-rei e do dom abade de Alcobaça, de quem eram subordinadas. Pactearam-na com gritos e com os saltos dos sapatos em desaforada rebelião. A abadessa não ousou impor penas, porque não tinha força, nem queria pedi-la ao rei para não assoprar a soberbia de soror Paula Perestrelo.

Os zângãos daquele colmeal de abelhas celestiais, os fidalgos e cónegos atiçavam a revolta a fim de prolongarem a farsa e conduzi-la à catástrofe das gargalhadas. O voto comum dos desfrutadores conveio em que as freiras saíssem todas incorporadas, logo que a cristã-nova regressasse. Parece que a trama era havê-las cá fora muito à mão, e dispersas, como fato de cabrinhas novas por giestais em flor, quando lhes abrem os cancelos do curral. E, como se não bastasse a zombaria com Deus e com as suas doidas esposas, zombavam também do rei, induzindo-as a que se encaminhassem processionalmente em assuada ao paço da Ribeira a pedir providências contra o próprio soberano e contra a omnipotência de soror Paula. O entrincheirarem-se no convento, trancarem as portas e resistirem ao ingresso da freira não era caso original nem esperançoso de bom sucesso; além de que, os mal-intencionados alvitristas perdiam o lanço de pescar nas águas turvas aquela pesca decerto menos estranha que a estranha caça de Camões.

No entanto, Paula e a sua irmã, com as suas poucas faccionárias, riam, mofavam e esperavam em jovial sobressalto a recondução da Muleirinha.

Um dia, pouco depois de nascido o Sol, quando se não esperava, chegou à portaria de Odivelas D. Catarina de Castro em sege com a sua mãe, e dois monges de S. Bernardo em outra sege. A prelada recebeu a nova que lhe levou a porteira juntamente com a ordem do dom abade-geral, na qual se incluía a sentença absolutória da freira, acusada falsa e protervamente por denunciantes contra quem as leis civis iam proceder, se o Santo Ofício fosse, contra os usos e direitos, menos executivo.

A fim de não amotinar a comunidade, que ainda ressonava ensopada nas molezas da manhã, a prelada foi silenciosamente à portaria, recebeu com boa sombra a freira, e ordenou que se recolhesse a mãe à hospedaria do mosteiro.

Catarina entrou na cela, e fechou-se para chorar e gemer, abafando os gritos com o lenço premido na boca. Mas, às vezes, a pontada no coração era tão lancinante, agonizavam-na tão insofridas aflições, que os soluços estalavam-lhe agudíssimos da violenta represa.

Escutaram-na as religiosas mais convizinhas. Saíram assustadas ao dormitório. Disseram, com supersticioso assombro, que se ouviam gritos na cela de Catarina de Castro. A abadessa deu as indispensáveis explicações, pedindo prudência e juízo. Mostrou a ordem do prelado de Alcobaça, e, lendo as frases respetivas à falsa denúncia, acrescentou:

— Deus queira que as inimigas de Catarina de Castro não tenham maiores trabalhos...

Serpenteou o boato por aquele interior labirinto do mosteiro. Batia-se às portas, resmoneava-se, saiam grupos de umas celas, dispersavam-se entrando em outras, O ruído, ao princípio receoso, era já tumulto, uma gralheada de vozes argentinas, em que realçavam as incitações de Francisca Melo, aplaudidas por palmas e um bater de tacão fremente de cólera. Aquelas senhoras, assanhadas como colarejas, eram a nata da nobreza lusitana.

Paula sabia pontualmente a hora da entrada da freira. Enviou-lhe os seus cumprimentos e as suas melhores criadas. Este passo encruou a fúria das outras. Vociferaram-se palavras obscenas, aprendidas na vida prática e nas poesias fesceninas de Tomás Pinto Brandão, poeta muito de casa. Aplicavam a soror Paula uns epítetos que vexariam a comborça de um lacaio. Catarina ouvia o tropel nos dormitórios, a vozearia que toava pelas abóbadas, e tinha medo. Paula e Maria da Luz desceram dos seus aposentos, entraram à cela da religiosa e levaram-na consigo aterrada em turvações de louca.

Exacerbações novas nas insurgentes, e a deliberação definitiva de saírem de cruz alçada. A abadessa mandou entrar os frades, que arengaram inutilmente. Ninguém os atendeu, posto que trovejassem; mas não abriram o saco das excomunhões, porque, até certo ponto, os filhos de S. Bernardo gostavam de ver o rei e a sua freira enredados no escândalo.

As freiras tumultuárias eram cento e noventa. Ficaram as provectas, as entrevadas, as neutrais, que eram poucas, e as parciais de Paula, que eram menos.

Quando a torrente golfou da portaria e espadanou no amplo átrio para se formar em fileira, e marchar no coice da cruz, saiu para o paço um cavaleiro à espora fita com carta de Paula para o rei.

Momentos depois, abalava de Lisboa um troço de cavalaria com o juiz do crime do bairro da Mouraria, Caetano José da Silva Sotomaior.

As revoltosas, quando chegaram aí pelo Lumiar, avistaram umas nuvens de poeira e ouviram tropear de cavalos.

A condessa do Rio Grande, prevenida pelo marido a quem — posto que já passasse dos cinquenta anos, doía o desastre de uma das mais galantes rebeldes — no lanço em que a tropa se avistou, convidou-as a entrar no seu palácio. Aceitaram, espavoridas do esquadrão e da carranca do corregedor, que as intimou a retrocederem. Responderam tumultuosamente que não voltariam a sua casa enquanto lá estivesse uma judia saída da Inquisição. O Camões do Rossio, que tinha graças e farsolices em primeira mão, chasqueou bastante com as bernardas e, despedindo-se, disse que a sua vontade era agarrar uma de cada vez, e levá-la ao santo redil, pelo caminho mais torto; porém, que o não fazia sem ordem da sua majestade, que estava em primeiro lugar, e não gostava de fazenda em segunda mão.

A condessa empregou todos os recursos da persuasão para as regressar ao convento. Era enfurecê-las mais, depois que viram a tropa, e os aspetos marotamente petulantes dos soldados, e os sorrisos amoriscados dos sargentos que lhes piscavam os olhos como o fariam a mulatas de regatia. Confiavam no patrocínio dos parentes; mas nenhum fidalgo se aventurou a ferir o rei na pessoa de soror Paula, desde que a individualidade da Muleirinha se confundiu no capricho ostentivo da amante de D. João V. Concorreu ao Lumiar, durante dois dias, a parentela daquelas senhoras com o frustrado propósito de as repor no mosteiro. Por fim, o rei, conformando-se ao parecer do secretário de estado, mandou ao magistrado Cunha Sotomaior que, à frente de uma boa esquadra de polícia e alguma tropa, compelisse, por jeito ou força, as freiras desgarradas a entrarem em numerosos coches da casa real, e depois as levasse ao convento.

O Camões do Rossio já não logrou ser admitido a parlamentar com as bravas monjas. Assim que as atalaias lhes deram sinal de se avistar o exército, acastelaram-se na parte mais defensável do palácio. Algumas subiram ao terraço da casa, cujo parapeito era formado de adobes desconjuntados pelo tempo, e circuitado de ameias, com as suas torrinhas ou miradouros angulares. As que galgaram àquela espécie de adarves eram as mais mal condicionadas, e mais virilmente apostadas a triunfar ou morrer.

Assim, pois, que o ministro, frustrados os expedientes corteses, deu voz de escala e arrombamento aos quadrilheiros e soldados, do alto do terraço granizou sobre os assaltantes uma chuva de tijolos à mistura com pedaços de ameias aluídas. Ao mesmo tempo, do segundo andar do palácio irrompiam sobre os guardas, fulos de marciais raivas, não só as alfaias de madeira, mas até as vasilhas de barro, mais secretas e menos olorosas, das alcovas. A gritaria das assaltadas seria a imagem do inferno, se elas, tão lindas, não figurassem os anjos bons nos luciferinos prélios cantados por Milton.

Os sitiadores, favorecidos talvez por traição da própria dona de casa — vítima principal do conflito — como o boticário de Nicolau Tolentino, entraram no palácio, acoroçoados pelo juiz. As freiras ainda quiseram lutar peito a peito; mas vedava-lho o pudor e o hábito. Não foram agarradas como dizem alguns historiadores: renderam-se incólumes, intactas e puras como eram. Seria inverosímil agarração essa; a menos que os águazis não tivessem os braços de Briareu. Eles eram menos de quarenta, e elas pouco menos de duzentas.

Quando os coches pararam no terreiro do convento, ouviu-se uma gargalhada estrídula no segundo andar do palacete contíguo ao mosteiro.

Era soror Paula Perestrelo. Estava vingada. Então soube quanto era bom ser amante de um monarca poderoso, devasso e parvoeirão.

CAPÍTULO VI

A notícia destes acontecimentos, relatados pelo conde do Rio Grande, chegou ao cubículo do missionário apostólico Fr. Francisco Xavier, ou da Luz, como ele se assinava.

Os tresvarios ultra-piedosos da sua razão propendiam a crise salutar, desde que o conde lhe asseverou que D. Catarina e a sua mãe eram mais hóspedes que presas na Inquisição, e que o patrocínio real, solicitado por soror Paula, era segura caução da absolvição das senhoras comparativamente felizes. A pouco e pouco se adelgaçou a treva daquela alma enferma. O homem revoltou-se no frade. O galhardo cortesão sentiu — se, no hábito de estamenha, confrangido e esgarçado na epiderme como na túnica de Nessus. Bateu-lhe na alma a dava do arrependimento. Desculpou-se diante de Deus, confessando-se que ensandecera no dia em que se amortalhara, porque 'desejava morrer, despedaçando-se.

Pensava na sua filha; mas não ousava perguntar por ela ao irmão, expansivamente. Envergonhava-se: tinha o pudor da dignidade; temia que o seu irmão o culpasse agora de leviano como o arguira de covarde, quando ele se evadiu do mundo pela porta vulgar de Baltasar Casqueiro, e do caldeireiro das Covas-infernais, e do próprio instituidor do Varatojo, Fr. António das Chagas: três beatos que se furtaram assim às galés, embaindo a justiça humana. Além disso, as cartas saídas do aspérrimo convento, eram inspecionadas pelo guardião. Fr. Francisco seria a condenação da ordem, se a profanasse nas suas missivas com uma palavra ressabiada de mundo, diabo e carne.

Encheram-se de amargura as suas noites veladas sobre a esteira do catre. Humilhava-se diante da cruz tosca, feria a arca do peito; mas as pancadas doíam-lhe como se lá dentro chorasse um coração que pedia vida, e as delícias do amor de pai, e as serenas tristezas de uma saudade respirando em Deus. Mais desgraçado do que nunca!

O conde do Rio inferira de uma carta do frade o segredo da transformação mal dissimulada. Foi ao Varatojo, a pretexto de visitar o seu parente frei Gaspar da Encarnação. Afastou-se com Fr. Francisco da Luz; e, a propósito desta luz, perguntou-lhe porque não se cognominava antes de Fr. Francisco das Trevas.

O frade debulhou-se em torrentes de lágrimas, olhou ao redor que o não vissem no mais espesso da mata, estreitou-se ao seio do amigo, e rompeu o dique das suas angústias com precipitada eloquência. Falou de Catarina, arrebatado e opresso; da filha, com expressões de pueril ternura; do seu passado, com excruciante saudade; e do seu presente e futuro, como de um inferno irremediável.

Pela sorte de Catarina lhe acudiu o conde com um grande alívio. No mosteiro e na sociedade era insuspeita a honra da religiosa. As suas próprias inimigas, vingando-se na calúnia, bem sabiam que o desaire, ainda que fosse verdadeiro, não seria grande. Ilibada da nódoa de cristã-nova, outra qualquer afronta à sua castidade, na casa de Odivelas, era vício e direito comum, podendo cada freira perguntar à sua detratora como via argueiro em olho alheio com tamanha trave no seu. Afiançou-lhe que soror Paula e a sua irmã se afeiçoaram extremosamente a Catarina', e a fizeram sua comensal, divertindo-a das tristezas com engenhosa dedicação. Esperava, portanto, o esperto conde que a Muleirinha viesse a gozar-se de remansosa tranquilidade, conformando-se a um viver sem grandes mágoas nem grandes contentamentos.

— E eu! — exclamou Fr. Francisco — e eu!... viverei neste longo paroxismo... Para mim nunca há de chegar a resignação, a graça divina que transforma o homem apagando-lhe as memórias do passado. Este hábito é uma injúria que faço a Deus. As minhas orações em comunidade são pecaminosas porque são fraudulentas. Sacrifico-me violentado. Nem sequer posso sentir a consolação dos que se mutilam confiados em indemnizações de outro mundo. Nada espero, senhor conde. Se há alguma coisa além da morte, a desgraça entenebreceu as visões da minha fé. Perdido! e perdido tudo quanto amava!...

A dor exuberou em queixumes que apiedaram o conde. Pungia a comparação do faustuoso Xavier de Odivelas com o descarnado varatojano. Lopo de Mendonça via ainda nele o reflexo de um filho dos mesmos anos, seu amigo de infância, filho único, falecido em 1707, por amor de quem o conde se lhe afeiçoara entranhavelmente.

Sem consultar o frade, pediu a frei Gaspar Moscoso que obtivesse licença do guardião para que o amigo do seu defunto filho passasse uma temporada na quinta do Lumiar. O varatojano, irmão do marquês de Gouveia, impetrou a licença. Não estranhou os tédios do seu condiscípulo no mosteiro da penitência. Ele mesmo os sentia a roer-lhe nos liames da austeridade cenobítica. Já então pensava em despir o hábito, transferir-se para a corte, apossar-se do ânimo do rei, ser, como foi, seu omnipotente ministro, torcer as leis em pró do seu sobrinho D. José de Mascarenhas, cingir-lhe a coroa ducal e opilá-lo do orgulho que em 1758 o esquartejou no patíbulo de Belém.

Melhorou de sorte o trânsfuga da vida expiatória, mudou de hábito por concessão do núncio, e entrou no convento de S. Francisco da Cidade, com a importância que a borla doutoral lhe acrescia à fama do talento e piedade. Nomeado visitador dos conventos da ordem, rodeado de considerações, dependências e profanidades bem rebuçadas, dava-se menos mal com o ofício, e, por vezes, tomando o peso da cruz, não lhe pareceu incomportável.

Paulo Xavier já era então ouvidor em Serpa. Fr. Francisco foi visitá-lo. Festejou a menina, que tinha quatro anos, e lhe chamava tio. Teve-a no colo assustando-a com o hábito e com a sofreguidão dos beijos. Sorria-se de ouvir chamar papá ao irmão, e observou-lhe que Antónia lhe ficaria chamando sempre pai.

— E não é ela minha filha? — disse o ouvidor — Desde que vestiste o hábito, fiz de conta que o seu pai estava morto. Perfilhei-a, renovei o assento batismal, legalizei-a minha filha para me suceder nos bens e nos apelidos. Estou que nunca me desmentirás por amor de ti e dela. Tenho administrado o teu património como tutor desta criança, visto que a tua mudança de vida algum benefício influiu nos teus cabedais. Se não houver reveses, se o Santo Ofício nos não maquiar o próprio e os juros, poderemos legar a Antónia a herança de cento e tantos mil cruzados que houvemos dos nossos pais. Se nos sobreviver, será rica. Poderemos casá-la em família puritana das altas, onde não chega o gládio de S. Domingos, nem se medem as gotas de sangue hebreu; verdade é que o José Freire Montarroio me disse a mim que não há família portuguesa estreme do judaísmo de Rui Capão, de Lafeta, e do Barbadão de Veiros. No entanto, procuraremos arranjá-la numa das sete famílias hipoteticamente puritanas — concluiu o ouvidor, sorrindo.

Amiudaram-se as visitas de Fr. Francisco Xavier ao seu irmão. A filha evitava-lhe as carícias ou agradecia-lhas glacialmente. Não gostava do tio frade. Fugia-lhe dos braços para os do papá; e numa explosão de ingenuidade, chegou a dizer-lhe que a deixasse, porque aborrecia tanto beijo. O frade chorou, e, em segredo, perguntou a Paulo se estava bem convencido de que a criança não fosse trocada pela ama.

— Só se foi trocada nas tuas mãos quando lha entregaste em Verride — respondeu o irmão. — Que queres tu?! a menina adivinha que tu, há quatro anos, quando te pedi que por amor dela não fizesses votos, me respondeste: Que esta criancinha era a expressão providencial das cóleras divinas. As cóleras divinas é isto que te mortifica, é este natural desafogo da criança. Os filhos não é o sangue que os faz, é o amor. Pega de Antónia, vai sentá-la no regaço da mãe a Odivelas, e pergunta à criança se não tem saudades da ama que a criou, e se não troca pelos macios afagos da freira as rústicas advertências dessa mulher com quem dorme. Vocês nem entendem as coisas da terra nem as do céu. Fazem de tudo metafísica, e andam sempre bigodeados pela realidade das eternas formas. Quando envergaste o burel de varatojano, vias a Providência a disciplinar-te com a filha; agora, não percebes a Providência, porque a filha te desconhece.

O frade ouvia-o silencioso, e embebia as lágrimas no lenço.

— Sozinho! — pensava ele no secreto da sua alma — Sou desprezado da filha, e talvez odiado da mãe!... E não fui eu ingrato com Catarina, e miseravelmente covarde com a minha filha? A minha penitência que era senão um egoísmo que se mascarava com a religião? Não as abandonei a ambas para me salvar? Que foi senão covardia vilã esconder-me no Varatojo às calamidades que eu desafiara? Se Catarina devia morrer na Inquisição, a minha honra era dar-lhe coragem com o exemplo da morte. Abjeto! que excruciadora vergonha eu tenho de mim próprio!

CAPÍTULO VII

Fr. Francisco Xavier dissera ao conde do Rio Grande que andava negociando uma longa viagem ao oriente, não por instigações de devoto peregrino, mas para se espertinar da letargia moral que lhe desbotava o cérebro. De feito, o engenho do frade brilhara em tempo nas conclusões da ordem, e esmorecera na apatia estéril das inteligências que uma secreta dor enoitece.

— Não irá aos lugares santos, doutor; mas irá comigo aos Dardanelos lutar com a armada do turco — disse o conde.

E referiu os pormenores da intentada guerra ao turco.

Era o ano de 1717. Deter-nos-emos algumas páginas para retificar erros de história. É singular que um romance invista as alheias searas, campando de elucidário em pontos competentes a livros graves. É coisa nova; mas não é má.

Ameaçou o turco a república de Veneza em 1716; e, no ano seguinte, fez-se ao mar com uma grossa armada sob o comando do general francês d'Anglerie. Clemente XI, também ameaçado, pediu socorro à França, Espanha e Portugal. A França desculpou-se com o inimigo inglês. A Espanha mandou sete naus, quatro fragatas, com três galeras de Nápoles; mas o general, como ouvisse dizer em Génova que os turcos meteram a pique a armada veneziana, lançou ferro, e, transido de medo, ali ficou. D. João V queria servir o papa, mas com o dinheiro do estado; não havia, porém, no erário dinheiro nem vasos de guerra no Tejo. Não se deteve a ponderar conselhos nem oportunidades. O expediente do absolutismo. Chamou o seu valido e guarda-roupa Pedro António Virgolino, e mandou-o à Junta da Companhia do Comércio que lhe aprontasse uma armada. O presidente da Junta, D. Francisco de Sousa (Calhariz) foi dizer ao rei que a Junta prometia desempenhá-lo. Oito dias depois tornou o marquês de Abrantes com recado novo apressurando a armada. Dizia el-rei que depois pagaria tudo. Não pagou nada; e a história gaba-o da galhardia da façanha em pró da cristandade.

A Junta armou duas grandes naus que tinha no Tejo, uma de 120, outra de 184 peças; comprou duas aos holandeses, outra aos ingleses, e aparelhou duas fragatas. Fardou o seu regimento, e proveu-o de segundo fardamento. Municiou as naus, e deu seiscentos mil cruzados em dinheiro, trezentos mil para mesa, e os outros para eventualidades em que Portugal se devesse estadear com brilho em terras estranhas.

D. João V prometera-lhe, como remuneração, embolsá-la de seiscentos mil cruzados, que os castelhanos tomaram em Cacheu, visto que Filipe IV, no tratado de 1713, se obrigara a pagar. E pagou; mas o rei ficou com o dinheiro. E, quando fazia Mafra, tirou-lhe um milhão e duzentos mil cruzados; e, em 1720, quando a Companhia apenas tinha em caixa duzentos e setenta e quatro mil cruzados, o rei, respondendo a uma representação da Companhia, que deplorava sua decadência, mandou buscar os duzentos e setenta e quatro mil cruzados. Ladroeira real!

Extinguiu-se a Companhia. Caíram na indigência muitas famílias. As pragas não empeciam ao rei. Lá estavam os papas entre a justiça divina e a humana. O pão de milhares de famílias tinha ido para Roma envolto nos cento e oitenta milhões de cruzados que custou a Portugal a certeza de termos aquele Bragança no céu.

Mas o que nós tentamos retificar é que a armada que venceu o turco em Matapão, não é obra do rei, nem zelo cristão da pátria: foi um roubo violento, e a aniquilação de um grupo de comerciantes que desde 1649 até 1651 dera 36 embarcações de guerra a D. João IV; que em 1658 deu a D. Afonso VI as duas maiores naus da Europa; e em 1717, já nas vascas da morte, resgatava a palavra do rei fanático renovando na enseada de Passavia as proezas do velho Portugal.

Mas já naquele tempo estas roncarias extemporâneas davam que rir à crítica. O poeta portuense, Tomás. Pinto Brandão, assistiu em S. José de Ribamar à saída da armada, e improvisou esta oitava:

Saiu em fim a armada pelos ares
Com seus cabos vestidos pelos «eres»
Das estocadas que há de haver nos mares
Se hão de borrar as naus e os escaleres;
Esta se aparelhou sem os vagares
Que costuma haver noutros misteres;
E seguindo o roteiro porque eu surco,
«Papa» leva, acha «papa» e «papa» o turco.

O primeiro general da armada era o conde do Rio Grande, e o segundo Manuel Carlos de Távora, conde de S. Vicente. O doutor Fr. Francisco Xavier embarcou na nau Nossa Senhora da Conceição, e ocupou a câmara contígua à do conde-almirante. Os historiadores coevos, inéditos e impressos, por louvável espírito de patriotismo, expungiram das suas «relações» um desar que denegriu bastantemente a ufania da empresa. Um homem, porém, coevo dos sucessos, o comerciante e literato Manuel Pereira de Faria, numa Memória, que escreveu e entregou ao marquês de Pombal, que o estimava encarecidamente, refere o seguinte: «Partiu (a armada) do Tejo numa segunda-feira do ano de 1717, navegando até Génova; e, encontrando aí a de Castela, fez o general castelhano tal pintura da armada dos turcos e da desfeita dos venezianos, e de que não tinham partido algum ainda ambas juntas, que a nossa voltou para Lisboa, sem tentar nem obrar coisa alguma. Logo que el-rei soube da sua chegada à barra, e como vinha aconselhado pelo general de Castela, mandou que tornasse a sair imediatamente, e fosse sem demora acometer e bater-se com a do turco, procurando-a até os Dardanelos, onde queria que se ouvissem os tiros da sua artilharia, sem mais lhe importar a armada castelhana. A sua majestade assim o mandou absolutamente, e por saber que era esta também a opinião e vontade dos nossos generais».

Esta proeminência na espalmada fisionomia de D. João V era digna de caracterizar algum dos reis da dinastia de Aviz. Estranha-se o arrojo em príncipe de Bragança; e não é menos de estranhar que o visconde de Santarém, tecendo a apologia daquele rei com bagatelas anedóticas, pospusesse, talvez por ignorância, o seu facto único de audácia e de bravura, embora os imolados fossem os vassalos, e os impulsos da empresa ineptos.

Abalou pois de novo a esquadra num domingo, 25 de Abril, e fundeou na enseada de S. José de Ribamar. No dia 28 largou velas e cortou no horizonte uma floresta branca ondulada de flâmulas e paveses, simulacro dos anos juvenis do Portugal navegador.

Não podemos de espaço seguir a rota da armada. Seria curiosa em outra laia de livro. Se o leitor é caroável destas velhas coisas, veja A batalha naval de Matapão particularizada no Sumário de vária história de um colecionador inteligentíssimo.

O doutor Fr. Francisco Xavier, quando o conde lhe perguntava se ia melhor de espírito, respondia com o verso de Horácio:

Coelum non animam mutant qui trans mare currunt.

O almirante, embevecido na eterna majestade do oceano, chamava o frade ao contemplar alto dos místicos e dos poetas. E o frade, com os olhos marejados, fitava o horizonte roxo do poente, onde se lhe figuravam miragens, grupos, e os vagos contornos de Catarina e da filha.

— Em que pensa, Xavier? — intervinha o conde.

— Na felicidade da morte...

— Pois então, amigo, olhe que está, onde essas felicidades se arranjam do pé para a mão.

— Oxalá...

— As balas, às vezes, chegam aos beliches...

— Não é lá que me hão de matar, Sr. Conde.

— Então, cá no tombadilho?

— Ao lado de V. Exa, Sr. Almirante.

— Aqui a bordo há disciplina severa. Quando eu mandar descer os que não professam armas, Fr. Francisco...

— Irá rezar litanias na câmara? Meu general, eu sou como os frades batalhadores dos tempos heroicos de D. João I e D. Afonso V. Se o hábito me tolher os movimentos, despi-lo-ei. Como mortalha, dispenso-o. Antes quero que me vistam das espumas das ondas.

O diálogo foi cortado por um reboliço. Um capitão do regimento da Junta corria sobre o cirurgião da nau com uma faca. O general mandou passar o capitão para outra nau.

— Se nos matam os poucos cirurgiões que levamos — disse o conde — não teremos quem nos ampute os braços e as pernas em ocasião oportuna.

— Levamos um famoso médico, o doutor Pelicão — observou Fr. Francisco.

— É verdade; mas foi necessário mandá-lo buscar preso a Cascais. Assim mesmo evadiu-se, e apresentou-se-me com receio das severas penas de guerra. Bem vê com que bom rosto o afago para que não fuja, nem nos mate com alguma tisana.

No dia 10 de Junho deu fundo a galera em frente da praça de Corfu. Era o porto confluente das galés de Veneza, de Florença, do papa e de Malta com o generalíssimo Bel-Fontaine, balio, nomeado pelo pontífice.

Neste porto ancoravam navios de franceses.

Fr. Francisco Xavier, que lhes sabia a língua primorosamente, entrelinha-se palestrando com franceses. Entre estes preferia a noticiosa eloquência de um médico, que lhe contava minudências de Constantinopla, onde nascera, posto que o seu pai fosse francês, da Picardia. Chamava-se o médico Isaac Eliot. Devia ter vinte e dois anos. No conceito dos patrícios, era portentosamente hábil na sua profissão.

O capitão do navio mercante segredou ao frade que Isaac Eliot era filho de um calvinista francês, que, fugindo à perseguição, passara ao império otomano, onde exercitara as armas e atingira a patente de Spahilar Agassi e morrera em batalha, deixando aquele menino, filho de uma turca, sem património; que o hyaia (lugar-tenente do Grão-Vizir) o doutorara em medicina à sua custa, e lhe permitira visitar a Europa a fim de estudar o adiantamento das ciências médicas nas principais escolas, encargo que recomendava o superior talento do jovem médico.

Relatou estas coisas Fr. Francisco Xavier ao conde do Rio Grande.

— Quem nos dera assim um médico nesta conjuntura! — disse o general. — E quanto estimaria el-rei se conseguíssemos apresentar-lhe no paço um médico de tanta consideração!

— Sobretudo — conveio o frade — ser-nos-ia muito útil para as amputações das nossas pernas, se os turcos não preferirem amputar-nos pelos pescoços...

— Folgo de o ver assim faceto, Xavier! — volveu o Rio-Grande — mas, chegada a hora, recomendo-lhe que não se imole à perícia dos cirurgiões. Ora diga-me a respeito do tal filho do huguenote, não poderíamos seduzi-lo com bom estipêndio e melhores promessas a aceitar partido na armada portuguesa? Se ele viaja, decerto lhe não desconvém ir a Portugal...

— Estudar o adiantamento da medicina lusitana? — atalhou ironicamente o frade.

— Não direi tanto; mas poderá ir ensiná-la e enriquecer-se em curto espaço, como aconteceu ao seu logreiro patrício que vende a água do francês.

— Então, o Sr. Conde quer que o pobre rapaz, filho de huguenote e turca, vá purgar na fogueira os delitos do pai e da mãe? Não serei eu que o induza.

— Valha-o Deus, doutor! — replicou o almirante sorrindo. — A maioria dos médicos portugueses é da raça proscrita: são mais ou menos seus primos. Quem os persegue? Todos os charlatães e curandeiros, que vão de França, são huguenotes. Quem os incomoda? Apenas eles têm o incómodo de se fazerem católicos, se querem ofício ou mulher; mas, feito o seu negócio em Portugal, vão-se nas boas horas, e tomam a incomodar-se ligeiramente descatolizando-se. Por esse lado, pode convidar o médico francês a servir nesta armada, que eu lhe dou caução de não correr perigo em Lisboa. Como aí está o coronel fiscal da esquadra, Pedro de Sousa Castelo Branco, que também fala francês, avenham-se entre si, e conquistem o rapaz, que el-rei lho agradecerá.

Não foi fácil a conquista; mas lograram os dois comissários do almirante ajustar com Isaac Eliot o partido do médico da nau-almiranta por avultado estipêndio, e promessa de ser recomendado à magnanimidade do Sr. D. João V, logo que a armada recolhesse a Lisboa.

Começou desde logo Eliot a estudar a Língua portuguesa com Fr. Francisco, e a poleá-la em conversa com todos como um tradutor de novelas. Contava aos generais, ao frade e a Pedro de Sousa Castelo Branco picarescos pormenores das odaliscas, dos eunucos ou ytzoglans, descrevia-lhes os tesouros do serralho, os aposentos privativos do grão-senhor, a câmara das sultanas, as lubricidades requintadas e outras miudezas que espantariam os ouvintes, se eles não fossem vassalos de D. João V e não conhecessem mais ou menos de outiva o harém bastantemente turco de Odivelas.

CAPÍTULO VIII

A 25 de Junho fundeou a armada no cabo dos Dardanelos; no dia 29 levou âncora e velejou para o cabo Matapão em demanda das naus venezianas. Estalou a nova no dia 2 de Julho que mareavam trinta e cinco navios turcos na enseada de Matapão. Tudo a postos. O conde do Rio viu entre os granadeiros do regimento de Peniche, que guarneciam a popa, uma estranha figura de gabinardo, cintado de talabarte de couro com pistolas de arção, espada francesa curta e clavina. Perguntou quem se vestira assim um tanto à mourisca. Responderam-lhe que era Fr. Francisco Xavier.

O almirante duvidou do bom senso do frade.

Mandou-o chamar, e disse-lhe:

— Com que então...

— Cá estamos, general.

— O hábito lã vai às ortigas, hein?

— Não, meu general; despi o hábito para o não profanar nem poluir com o sangue de Ismael.

— Bem. O seu lugar, dom paladim, é à beira do seu general.

— Enfileirei-me à popa, esperando lá o senhor conde, por saber que o maior perigo é ali.

Foi falso o rebate. As naus eram da república, que vinham fugindo destroçadas, com o seu general Flangini morto. Foi à fala um prático. O médico Eliot ofereceu-se como entendido no italiano. Volveu e contou que os venezianos em três combates tinham perdido seiscentos soldados. Viu o cadáver do general, e descobriu-lhe entre a clavícula e o queixo um punhado de pregos cravados como à marreta pelas carnes dentro. Disse Isaac Eliot que os turcos sevavam as suas peças com aqueles ferros velhos.

— Tudo é bom guardar — observou o almirante.

— No corpo da gente é mau — emendou o frade.

Chegou a hora da batalha. Eram corridos dezanove dias de Julho, um dia formoso, mar e céu anilados, a enseada de Passavia espelhando os galhardetes, quase calmaria, uma brisa que mal serpeava as flâmulas. As naus do império eram 54, e as condições propícias. Bafejou-as a viração, avizinharam-se de nós, e fecharam-nos na angra, encostando-nos a terra. Rompeu de lá a atroada da artilharia. Em frente da armada turca, e assoberbada pelas alterosas sultanas de Constantinopla, mantivera-se impertérrita a esquadra portuguesa. A de Veneza e as outras voltaram sobre terra, exceto a nau Fortuna Guerreira, da república, inseparável das nossas sete naus até ao remate da batalha. Ao fim do dia, a luta era desesperada. Cinco das nossas naus varejaram catorze sultanas, que vomitavam jorros de fogo. A mortandade era grande. A nau Pilar, com sessenta mortos, ia arribar a pedido do piloto ao conde de S. Vicente: «Se alguém me fala em arribar — bradou o general — varo-o com esta espada!» Não era menos seva a carnagem da nau-almiranta; mas aí a defesa era de homens aporfiados em morrer segundo a arte. A placidez do conde predominava assombrosa. Não deu um tiro enquanto lhe pareceram mal empregados os pelouros. Francisco Xavier esperava a abordagem com a serenidade de quem saúda a morte. As balas rasas fasquiavam os mastros, e as dos arcabuzes zuniam nas enxárcias. O conde, a espaços, dizia ao frade:

— Vá-se embora.

— Creio que irei — respondia Francisco Xavier, atento, fito e fascinado nos relâmpagos da artilharia, e atordoado com o estrugir da celeuma. Neste conflito, o frade caiu; e o conde correu para ele, exclamando:

— Xavier! que é isso?

— Que há de ser, conde? é a redenção...

Tomaram-no em braços; desceram-no à câmara de proa; Isaac Eliot despiu-o; tinha a perna direita separada por uma bala de artilharia, e a vida perdia-se nos golfos de sangue.

— Morre? perguntou o conde ao médico.

— Não, senhor; morre-lhe só uma perna, se eu lha amputar.

O frade contemplou a operação com indiferença, e disse, feitas as anatomias: «Corpo e alma! mutilados...» Os ajudantes do operador pasmavam dos instrumentos e da perícia na laqueação dos vasos sanguíneos. Ali se criaram e robusteceram os créditos do francês. Os feridos na nau-almirante bem-diziam a Providência que lho deparara. O conde do Rio abraçava-o com a veemência de um pai, porque dizia ele:

— Se me não salvasse este homem, doutor, eu choraria a morte do meu segundo filho...

A batalha prosseguiu, e acabou pelo modo como a refere o mencionado Manuel Pereira de Faria na sua Memória dirigida ao ministro da marinha: «...O conde do Rio Grande não deu um tiro, sem embargo de os ir recebendo enquanto se não prolongou com a capitania, aonde tremulava a bandeira real das luas otomanas; aí deu uma banda inteira à real sultana, com tanta fortuna que a meteu no fundo, e logo a duas sultanas mais; e, depois de seis horas de combate, tanto que a nossa pôde manobrar toda, a do turco levantou âncora, e se retirou ou fugiu para o Arquipélago. Desassombrado o mar Adriático, da armada inimiga, foram os nossos generais para Veneza, onde os respeitáveis senadores da república os vieram receber debaixo do pálio, deram-lhes banquetes e festejos, quiseram-lhes consertar a armada — o que os generais não consentiram. O papa mandou bater moeda, ou medalhas de dez moedas com a efígie d’el-rei, e, no verso, narrado o sucesso. Deu breves aos nossos em que os mandou para o céu, e aos turcos com o seu general francês, para o inferno. Recolheu-se a nossa armada ao Tejo com os portugueses cheios de honra e glória. Foram testemunhas desta ação dos portugueses duas embarcações maltesas e uma veneziana que imediatas seguiram a nossa armada».

Fr. Francisco Xavier e Isaac Eliot receberam hospedagem no palácio do conde do Rio. O mutilado movia-se com uma perna de pau aperfeiçoada pelo engenhoso médico. Não voltou ao convento. O papa concedeu-lhe a secularização com grandes elogios à sua religiosidade e ao já raro denodo com que se houve na heroica batalha, e também aos seus dotes literários por ter sido ele o tradutor da carta pontifícia, com que Clemente XI felicitou o conde do Rio, triunfador de Passavia.

El-rei quis ver o frade e o médico. Do amante de Catarina sabia ele os segredos que D. Paula lhe revelara, colhidos nas magoadas expansões da sua amiga. Conhecera-o seis anos antes galhardeando juventude, gentileza e pompas indicativas de mais fidalga origem. Condoeu-se da desfiguração. Alvejavam-lhe os cabelos antes dos trinta anos; tinha lágrimas na voz, abstraimentos íntimos de muito triste expressão no rosto. Disse-lhe que requeresse um canonicato, ou um lugar de desembargador nas relações eclesiásticas do reino. O bisneto de Domingos Leite Pereira pediu ao rei que lhe amerceasse o seu médico Isaac Eliot, não porque lhe dera a vida, mas pelo carinho filial com que o velara na sua cura.

Deteve-se o monarca ouvindo a narrativa graciosa de coisas ignoradas de Constantinopla, e mormente dos haréns. Perguntava-lhe sua majestade com certo calor e vivacidade de pupila, se as georginas eram muito boas mulheres; que tais eram as da Circássia; quantas sultanas conversava o imperador, e quantas odaliscas; quais alimentos usava ele quotidianamente; se os climas influíam nos temperamentos; se a essência do âmbar tinha realmente as virtudes que lhe atribuíam os médicos antigos, etc. 23 O francês esmiudava as respostas a sabor da sua majestade, condimentando-as de especiaria dos climas cálidos. Descrevia a mulher da Geórgia, do Cáucaso, as variedades todas do harém com imaginação sensual. Quanto ao âmbar, que devia ser cinzento, não duvidava das suas virtudes; mas tinha ele inventado umas superiores pastilhas de almíscar para uso de três paxás de duas caudas, seus amigos muito particulares. Recomendava humildemente a sua majestade a inconveniência dos chamados filtros amorosos, lembrando a morte do poeta Lucrécio, devida a uma dessas beberagens subministrada pela sua amada Lucília, etc., etc.

El-rei gostou infinitamente de Isaac Eliot, e pediu-lhe as tais pastilhas de almíscar, com as quais se deu bem.

CAPÍTULO IX

Direi muito de passagem o que era a profissão da medicina em Lisboa quando Isaac Eliot ali chegou apregoado pelo conde do Rio Grande, e o que ela continuara a ser no lapso de meio século. Os monumentos escritos que uma vã curiosidade conserva nas estantes empoadas, representam os médicos mais famigerados daquele tempo.

Simão Félix da Cunha, Manuel da Silva Leitão, José Rodrigues de Abreu, Francisco da Fonseca Henriques, Morato Romba, o hebreu António Nunes Ribeiro Sanches — que valia mais que todos — denotam, segundo o voto dos historiógrafos médicos, à mistura com muitas crendices já refugadas então das Universidades europeias, uma parte do adiantamento da ciência, principalmente da higiene, no último escritor referido. Se, todavia, dermos fé às virtudes apregoadas pelos forasteiros que assentavam em Portugal e anunciavam na Gazeta as suas boticas, é razão acreditar que os médicos dados à escrita e às teorias tinham resvalado a grande descrédito. E até certo ponto, D. João V participava da descrença pública nos doutores conimbricenses e nos que já tinha de fora quando em 1723 mandou consultar os médicos de Marselha acerca da peste que então ardia em Lisboa.

Desde muito, a concorrência de curandeiros a Portugal disputava-se a posse da ignorância do povo, e melhor direi, de todas as classes, porque a rudeza era quase geral, e ainda os poucos inteligentes não saberiam estremar o empirismo, quando a enfermidade lhes cegava o entendimento.

Um dos forasteiros que mais de assalto conquistaram a confiança de Lisboa, e aniquilaram a ciência nacional, foi o boticário Alberto Leonardo Konig, que, na Gazeta de 20 de Abril de 1724, se anunciava oficial maior da botica imperial de Viena de Áustria e viera a Lisboa para assistir como Provisor à botica da rainha nossa senhora; e acrescentava que trazia consigo muitos, segredos medicinais da augustíssima casa de Áustria para a rainha e a sua família, e muitos símplices e medicinas úteis e frescas. E frescas!

Este boticário desbancara o médico de Sousel, o doutor Jerónimo Moreira de Carvalho, que, em Fevereiro do mesmo ano, anunciava, na mesma Gazeta, que morava em Sete Cotovelos, junto ao beco sem saída, e oferecia os seus remédios de carnosidade e mais achaques de rins, bexiga... achaques de pescoço e alporcas, febres e névoas de olhos, e outros mais remédios eficazes.

Não conseguiu, porém, o boticário austríaco descer inteiramente da sua reputação na especialidade «hemorroidas», o acreditado ferrador que se anunciava deste feitio, na Gazeta de Maio: Quem quiser um remédio eficaz parra almorreimas, cursos de sangue e dor de cadeiras sem prejuízo da sua saúde vá falar com Manuel Correia, ferrador às Portas de Santo Antão, que dirá onde se vende. Era ele o inventor do remédio; e tão limpo de burla que restituía o preço da droga (4$800 réis) se o enfermo, passado um mas, não funcionasse com a máxima sanidade fisiológica.

O ferrador já em 1717 havia lutado cientificamente com o químico valenciano D. Baltasar Gisbert. Este sujeito, que também morou no Arco dos Sete Cotovelos, curava, no espaço de 18 dias, as doenças torpes e inveteradas, desde a 1ª até à 4ª espécie inclusive. Afora isto, curava três castas de hidropisia, e todos os mais afetos uterinos. Que afetos! Não levava dinheiro sem curar: se matava, era gratuitamente.

Quem desluziu algum tanto a estrela do boticário de D. Mariana de Áustria, foi um pseudo Fr. António de Castro, que numa Gazeta de Junho de 1724 se anunciou espanhol e religioso da ordem de S. João de Deus. Vendia:

Água para tinidos e zunimentos dos ouvidos, etc.

Bálsamos parra preservar de aborto, para confortar a memória e os nervos, etc.

Tinha outros unguentos para almorreimas de exímia virtude, Naquele tempo ainda as almorreimas podiam ser exímias. Depois tirou-se o adjetivo às mesmas, e grudaram-no aos patriotas — patriotas exímios — verdadeiras e importunas hemorroidas dos intestinos do Estado.

Os remédios do frade estavam no galarim, quando o encoberto autor, vaidoso do êxito, saiu com este desmentido na Gazeta de 28 de Junho de 1725: Os remédios publicados na Gazeta de 15 de Junho de 1724 em nome de Fr. António de Castro, foram inventados por Luís de Maia Pinto, boticário do duque de Lafões, e morador às Portas de Santa Catarina, e por modéstia se publicaram com o tal nome, etc. Parece que, desde que o frade deixou de colaborar no gral do boticário, a freguesia voltou-se para o ferrador ou para o ex-oficial maior da botica da imperatriz da Áustria; pois foi ingratidão tanto maior quanto o modesto Maia, neste funesto contra-anúncio, declarava ter inventado também um agradável e eficaz remédio, entre todos os maiores, para defender o coração de todos os vapores, melancolias, e toda outra malignidade de que for acometido.

E prometia mais invenções em outra Gazeta.

Poucos facultativos podiam ganhar a sua vida decentemente em concorrência com os curandeiros de casa e de fora. Em 1731 um notável cirurgião de Lisboa era obrigado a curar as almas, à míngua de corpos doentes, como se depreende do seguinte anúncio da Gazeta de 13 de Dezembro:

Saiu à luz uma novena para se festejar o trânsito do gloriosíssimo patriarca S. José; autor José da Silva Fernandes, cirurgião aprovado e morador à Horta Seca, em cuja casa, ou na sacristia da paroquial igreja da nossa Senhora da Encarnação a pode procurar quem quiser.

O médico Brás Luís de Abreu escrevia, no mesmo tempo, a Vida de Santo António, e Manuel da Silva Leitão oferecia o seu Regimento de Paridas à imaculada e sempre Virgem Mãe de Deus.

Quem manteve sempre inabalável fama foi um médico lisboeta, de alcunha o Machuca. Este doutor, à imitação do médico árabe Thabet, estudava as doenças nas fisionomias. O Cavalheiro de Oliveira tratou-o pessoalmente, e refere ao seu respeito o seguinte caso: «Fingia conhecer no pulso as desordens cometidas pelos seus doentes; umas vezes, adivinhava que um bebera o vinho proibido, e outro não observara o silêncio prescrito. Tomava o pulso da donzela, da casada, do jovem. À primeira dizia, por exemplo: «a menina comeu uma azeitona, sugou uma laranja». À segunda: «a senhora tem ciúmes; e desconfio que alguma razão tem... O seu marido, posto que a ame, ama alguém mais». Ao rapaz, finalmente, dizia: «o senhor teve certa visita, ou recebeu carta do namoro... Não negue, que o pulso denuncia-o». E falava quase sempre tão ao certo que passava por adivinho. E daí o conceito público, muito grande clínica, e dinheiro a rodo. Um seu colega, médico de nome e charlatão professo, vizinho e amigo dele, disse-lhe um dia «O senhor, que é ilustrado e digno, deve saber que eu sou uma das duas coisas, ou muito bruto ou muito infeliz. Temos ambos o mesmo ofício e começamos a praticar ao mesmo tempo. O senhor ganhou celebridade e riqueza; e eu... ninguém sabe o meu nome, e tenho apenas o triste rendimento quotidiano da minha pobre família. Em nome de Deus lhe rogo que me ensine uma diminuta parte do processo que o faz adivinhar; que com isso me fará feliz».

— Vizinho — respondeu o Machuca — eu não adivinho. — Mas, condoído das lástimas do outro, lealmente lhe declarou que todo o seu saber consistia em certa perspicácia, tino e habilidade no descobrimento de certas coisas que somente os ignorantes podiam imaginar extraordinárias. E acrescentou:

«Entro no quarto de um doente; suponha que é uma rapariga incapaz de observar a severa abstinência que lhe prescrevi; por acaso descubro ao pé do seu leito um caroço de azeitona ou a tona de uma laranja: tomo-lhe o pulso, e digo-lhe que ela comeu isto ou aquilo: adivinho; ela nega; mas no seu ar perturbado está a confirmação; insto, ela sucumbe, confessa o facto, pensa que adivinhei, e divulga o caso. Os outros sucessos de que o colega me fala são tão simples e naturais como este».

O charlatão replicou: Agora percebi o seu segredo; espero sair-me bem. Muitíssimo obrigado. Eu lhe darei notícia dos meus progressos.

«Sai o homem de casa do conselheiro, e topa uma consternada mulher que o chama para lhe ir ver o marido que tem febre. Segue-a, e encontra um homenzarrão, prostrado na cama, a queixar-se de violentas dores de cabeça. Senta-se o médico, toma-lhe o pulso; e observando que debaixo da cama está uma pouca de erva, diz ao doente que ele comeu muita erva, e por isso está mal.

— O Sr. é um bêbado! — exclamou o doente. — E você é uma besta que come erva! — retruca-lhe o doutor. — O enfermo irrita-se, esquenta-se, e diz-lhe que a mulher não topou mau burro na rua. Sustenta o doutor que burros são os que comem erva. O doente enraiva-se, salta da cama já curado pela ira, a mulher faz coro com ele, saltam em cima do médico, e pregam-no de trambolhão no fundo da escada. Com a espádua contusa, o adivinho infausto foi contar o êxito ao colega. Divulgou-se a desgraçada aventura, e todos zombavam do charlatão.»

Conhecedor dos médicos e do país, Isaac Eliot, aconselhando à toa o leite de jumenta no maior número das enfermidades, dizia com protervo sarcasmo que os portugueses deviam ser curados com remédios extraídos dos seres da sua mesma espécie.

Isto dizia ele ao seu patrício Estienne que então fabricava em Lisboa uma beberagem de virtudes medicatrizes universais: chamava-se a panaceia — água do francês, e o francês provavelmente chamava-lhe água do chafariz. Não quero dizer que esta medicina fosse a preexistência da homeopatia; porém, menciono o caso em confirmação dos elogios que respeitáveis autores fizeram aos predicados medicinais da água do poço do Borratém, do chafariz d'el-rei, e várias outras bicas.

CAPÍTULO X

Não está bem líquido, se por gratidão às pastilhas, se a rogos do conde do Rio e do doutor Xavier, o médico Eliot foi nomeado cirurgião-mor do exército, com patente de coronel de cavalaria. Os médicos mais distintos de Lisboa, não podendo desabafar nos prelos, sarjavam a reputação do forasteiro, alcunhando-o de huguenote. Avantajavam-se na maledicência e nos créditos Simão Filipe, Manuel da Silva Leitão, o autor do citado Regimento de Paridas, oferecido à sempre Virgem Mãe de Deus, e José Rodrigues de Abreu, médico da câmara d’el-rei, e bom cultor das ciências naturais. Na retaguarda destes, latia e uivava a cainçada miúda da matilha dos sangradores. Eram razoáveis as queixas. Homens encanecidos nos hospitais, bons cristãos, autores de livros in-fólio e até inventores de remédios para flatos e hemorroidas, moirejavam a vida com uns safados cobres, ao passo que o calvinista, estrangeiro, quase imberbe, era despachado cirurgião-mor do exército, chamado às casas mais distintas, relacionado com os mais luzidos fidalgos, e até — suprema prova da real confiança — chamado a Odivelas para medicar soror Paula Perestrelo.

Na volta do convento, perguntou-lhe o doutor Xavier:

— Que tem soror Paula?

— Ciúmes — disse Eliot.

— Que lhe receitou, doutor?

— A outra receitaria eu amores novos.

— E a ela?

— Paciência.

— Como lhe atinou com a moléstia?

— Porque não tinha outra. Languidez, fastio, quebreira, olheiras, suspiros, pulso pirético, espreguiçamentos histéricos — não há que ver: ciúmes.

— E disse-lhe então o doutor: tenha paciência, madre?

— Não, senhor, receitei-lhe água de flor de laranja, que é o mesmo que dizer-lhe: madre, tenha paciência. Estava com ela outra freira, que me pareceu realmente enferma. Perguntei-lhe que sofria. Nada — respondeu ela. «Esta menina — disse D. Paula — é um anjo de bondade que nunca se queixa. Há de morrer sem incomodar os médicos». A freira sorriu-se com a amargura santa das formosas infelizes, e murmurou «Não quero que se enganem, nem que me mortifiquem com os seus xaropes». E eu...

— Sabe como se chama essa religiosa? — interrompeu o doutor Xavier com refreado alvoroço.

— É Catarina, porque ouvi dizer a D. Paula: «Ó Catarina, este médico foi o que amputou a perna do Xavier?

— E ela?

— Ela... quê?

— Que disse?

— Nada…

— Absolutamente nada?! — repisou o padre Francisco, passando a mão convulsa pela cara avincada.

— Essa sua insistência... esse gesto, doutor, tem mistério!...

— Uma simples recordação penosíssima... — dissimulou o mutilado. — Eu conheci essas senhoras, quando era novo e feliz. Elas conheceram-me nesses dias em que o céu e a terra pareciam desentranhar-se em delícias para mim. Quisera e esperava eu que nesta desgraça a que vim, me lastimassem ao menos, e lhe perguntassem se o meu rosto alguma vez estava enxuto de lágrimas. Aqui tem o mistério, Sr. Isaac Eliot.

— O mundo é assim... — decidiu o francês.

— Ainda é bonita? — volveu o padre, passados alguns segundos, com sossegado rosto.

— E há de morrer formosa. Nos olhos tem as cintilações da febre. A epiderme é transparente, com uns laivos de púrpura, em que eu vi o crepúsculo do sol que se esconde. Por baixo e à volta do rubor febril está o emaciado, a morbideza de lírios murchos, a transição para o palor da noite eterna. Mas que maviosidade, que langor, que descair de pálpebras! Eu nunca vi mulher enferma que tanto desejasse salvar!... Está chorando, doutor!? que é isso?

— Conheci-a tão bela, tão cheia de vida!... Vê? eu não queria que ela assim chorasse por mim, não: mas que, ao menos, se compadecesse...

— Aquelas doenças obliteram a memória, gelam o sentimento, e prostram os doentes numa indiferença quase idiota... Hei de falar-lhe do Sr. Dr. Francisco Xavier...

O padre ergueu-se de golpe, e exclamou:

Dê-me a sua palavra de honra que não lhe falará de mim! — E, retraindo-se, como corrido do transporte, cobriu o rosto com as mãos e murmurou: — Eu bem queria morrer... Tinha calculado tudo isto... — Composto o aspeto, prosseguiu com solene serenidade: — Torno a obrigá-lo pela sua palavra de honra que não dirá à Sra. D. Catarina alguma das palavras que me ouviu.

— Basta que mo ordene; é desnecessário o penhor da honra no cumprimento de um dever.

Daí a dias, a enferma de ciúmes mandou chamar o doutor Eliot. Estava Catarina na antecâmara da freira, onde os médicos eram recebidos. Soror Paula Perestrelo, bem que abeberada em essências de flores de laranjeira, piorava. Queixava-se de frenesis. Mirava-se nos espelhos que forravam as paredes, e dizia que estava ética. Punha as pontas afiladas dos dedos sobre o coração, e murmurava: «está aqui a morte». Puxava umas aspirações convulsas, e levantava-se a sorver haustos de Sr. Eliot, com o fim de lhe distrair o ânimo, contou novidades. Referiu o caso do infante D. Francisco e dos ciganos. O infante andava caçando no Alentejo, e afastou-se da comitiva. Embrenhando-se num matagal deu de rosto com uma jolda de ciganos, que o cercaram, pedindo-lhe alguns cruzados. D. Francisco respondeu-lhe que coisa de valor não tinha ali senão um assobio de prata. Gabaram-lho, e puseram-se a assobiar tão alto que a comitiva do infante correu para o ponto à desfilada. Os ciganos queriam fugir; mas o infante matou três à espada, fez amarrar os outros, e mandou-os enforcar...

— Jesus! que crueldade! — exclamou Catarina. — Que mal lhe fizeram ao Sr. infante para assim os matar?

— Menor mal lhe fez o marujo que marinhou pelo mastro para lhe dar vivas, e o Sr. D. Francisco lançou-o abaixo morto com um tiro — acrescentou D. Paula que participava do ódio de D. João V ao celerado duque de Beja.

— Não contem essas coisas que me afligem! — pediu a Muleirinha, contraindo as faces.

Divertiu o médico a atenção para novidades da corte, ressabiadas de galanteria. Tinha estado no sarau do conde de Tarouca, apresentado pelo seu amigo conde do Rio Grande. Viu dançar minuetes a várias damas, e nomeou como superior a todas D. Luísa Clara de Portugal, sobrinha do conde de Castelo Melhor.

Soror Paula carregou o sobrolho, e perguntou:

— Dança bem?

— Perfeitamente. Ê muito linda senhora...

— E promete lindas coisas essa dançarina... — disse a freira.

— Pois julgou que... — volveu Eliot.

— Que julgou, doutor?

— Que era o anjo da candura... Tem quinze anos... uma fisionomia infantil...

— El-rei falou-lhe nela?

— A mim?! sua majestade não me honra tanto que me faça confidente dos seus juízos a respeito das fidalgas da sua corte...

— Pois... — replicou a filha de S. Bernardo — julguei que a paixão faria el-rei indiscreto...

Coração profético de mulher que ama! Aquela D. Luísa Clara de Portugal era grande parte nas congestões, por ciúme, de soror Paula. O rei gabara-lha como joia incomparável, e mais nada. Era então solteira. Casou cinco anos depois com D. Jorge de Meneses; e, do mesmo passo que dava filhos ao esposo, também, por liberalidade fecunda, os dava ao rei. Chamou-se a Flor da Murta. E, se o esposo acabou da paixão da sua condenação, em 1735, na quinta de Ferrugem, a sua viúva teve a dita de ver dois dos seus reais pimpolhos muito bem arranjados: um, que era D. Gaspar, foi arcebispo de Braga; outro, D. José de Bragança, foi inquisidor geral.

A freira de Odivelas tinha alma intuitiva como os nervos que pressentem a trovoada, quando não aponta ainda uma névoa no espinhaço das serras. Quem lhe disse que a joia incomparável viria a engastar-se no seu diadema de sultana aposentada?

Saiu a Perestrelo precipitadamente da antecâmara com um dos tais frenesis, dizendo que tinha precisão de correr, correr muito. O doutor achou-a linda naquela doença em que o menear-se muito sacudida e nervosa lhe ia muito bem. Verdade é que o francês achava todas as mulheres lindas, as sãs e as doentes, as alquebradas e as dançarinas.

D. Catarina ficou fazendo sala a Eliot; e com inquieto receio, lhe perguntou se a sua amiga poderia enlouquecer. E contava que ela tinha uns ataques em que chorava e ria, debatia-se, revirava os olhos, ringia os dentes, agadanhava o espaldar do leito, e ficava por morta...

— Não se assuste, minha senhora — esclareceu o médico.

— Esses insultos nervosos há de curá-los a munificência d’el-rei com medicamentos que nós, os médicos, não podemos receitar.

Catarina abaixou os olhos, e sorriu.

— E como tem passado Vossa Senhoria, desde que eu cá estive? — perguntou o doutor.

— Bem.

— Permite-me que lhe tome o pulso?

— O pulso!... — disse ela, estendendo-lhe o braço. — Que faz o pulso?

— No pulso contam-se as pulsações do coração, minha senhora. É aqui onde a morte diz ao médico a distância a que está da sua vítima.

— Está perto de mim?

— Não, minha senhora... Está longe; mas eu receio que seja Vossa Senhoria que se avizinhe dela.

— Receia?... Pensa bem... Não lhe fujo, não...

— Deve ter família, minha senhora...

— Tinha mãe, que morreu há dois anos. Porque mo pergunta? — disse ela com a angustiosa suspeita de que o doutor lhe soubesse a vida, confidenciada por Francisco Xavier.

— Parecia-me que a saída do convento, outros ares, família, liberdade, campo, uma natureza menos artificial, relva em lugar de tapetes, árvores em lugar de espelhos e arrases, céu em lugar de tetos artesoados, aromas de flores em lugar dos pivetes e caçoulas que rescendem nesta casa... enfim, uma completa mudança de viver...

— Não tenho ninguém lá fora que me ame nem que eu ame. A minha amiga única é Paula. Se ela morrer, estou de todo sozinha. Deus me leve adiante.

Ficou silenciosa. Isaac Eliot contemplava-a com uma compaixão mais atenta que o amor.

— Não disse Paula que o Sr. Doutor... — Catarina, que começara a pergunta com veemência, reteve-se.

— Que eu... — instou o francês.

— Não sei que lhe queria perguntar — disse ela; mas, obedecendo ao reimpulso, completou a ideia. — Ah! sim... Disse Paula que o Sr. Doutor salvara da morte um homem ferido na batalha naval...

— O doutor Xavier? Sim, minha senhora. Salvei-o, perdida uma perna.

— E ele... vive muito triste, nesse estado?

— Magnanimamente infeliz. É a desgraça que chega a parecer bela na serenidade, na paciência, na mudez eloquente do exemplo aos que se revoltam.

Catarina escutava-o absorta, quando soror Paula entrou.

Isaac Eliot ergueu-se à chegada da freira, tomou-lhe o pulso, e disse:

— Está melhor, minha senhora, Retiro a água da flor da laranja.

— E que hei de tomar, doutor?

— Ar; mas depressa, a correr. Faça de conta, minha senhora, que o ar é o amor para o qual vamos aceleradamente...

— O ar é o amor? e o amor é ar, penso eu... Quer então que eu corra?

— Como quem foge de um fantasma; porque a moléstia da vossa Senhoria é um fantasma, uma falsa visão como a dos ciúmes...

— Dos ciúmes?

— Injustos, infundados, caprichosos, miragens funestas que se figuram aos corações muito contemplativos e abstraídos das coisas reais.

— Então... persuade-se...

— Que a vossa Senhoria é ingrata quando sofre, porque faz sofrer quem lho não merece.

Referindo soror Paula estes dizeres ao rei amado e amantíssimo, D. João V gostou tanto do francês que resolveu agraciá-lo com hábito e tença de cavaleiro professo na ordem de Cristo.

CAPÍTULO XI

Por este tempo foi despachado desembargador para a Índia Paulo Xavier. Quis recusar por amor de Antónia; mas o padre despersuadiu-o, raciocinando que a menina carecia de alguma educação em companhia de família hábil; que, no fim do seu triénio, Paulo voltaria desembargador para o reino, e então encontraria a menina com dez anos de idade e já bem encaminhada a uma perfeita educação que lhe fosse realce ao grande património. Lançou o desembargador inculcas, e descobriu família virtuosa, em que havia uma senhora muito prendada de quem algumas meninas da primeira nobreza recebiam lições de francês. O chefe da família chamava-se Heliodoro Pedegache, era empregado na Índia e Mina, e casado com a tal dama de cujas prendas e virtudes soavam, grandes louvores.

Foi Paulo Xavier com recomendações valiosas procurar o Pedegache. Disse-lhe que, tendo de servir três anos em Goa, não queria expor a sua filha única aos padecimentos e incertezas de tão demorada viagem para um clima doentio. Pedia-lhe instantemente que lha recebessem como aluna, porque ela não tinha senão remotos parentes, à exceção do seu tio, o padre doutor Francisco Xavier, que vivia aleijado e hóspede do conde do Rio Grande. Que o tio de Antónia iria vê-la algumas vezes, e gratificar o impagável serviço que faziam a um pai extremoso e a uma filha orfanada de mãe.

O separarem-se foi lance doloroso. Antoninha abraçava-se no tio, desfeita em lágrimas, bradando que nunca mais veria seu pai. O padre Francisco Xavier, que assistiu à despedida, e se esforçava por consolar a menina, foi recebido e quase repelido desabridamente. E quando a senhora Pedegache, na ausência do consternado padre, lhe insinuava que repartisse com o tio o amor que tinha ao pai, Antónia respondia que nunca pudera afazer-se ao tio Perna-de-pau.

Ó sangue, como tu gritas! Ó homem, que impostor e iníquo és tu, negando-te de primo-co-irmão do macaco! Não vês que te avantaja em dom de palavra o que te escasseia em instinto filial? Se te não mostrarem teu pai, passarás por ele, como ele por ti, se a roda lho cuspiu à lama que pisa. Desce do vértice da pirâmide em que te aclamaste rei da criação, e olha-me por essa espiral abaixo as simpatias instintivas que entreligam filhos e pais!

Assim declamaria o doutor Xavier quando a filha, dando as costas com arremessos aos seus carinhos, segredava ao tio:

— Meu pai, não me deixe, leve-me consigo que eu morro de saudade!

— Cá te fica o tio padre que te quer muito...

— Que me importa a mim o tio padre... — soluçava a filha de Catarina de Castro.

Francisco Xavier passou este dia muito atribulado. Saudades do irmão e o desamor da filha, com o acréscimo das novas tristes que o médico lhe trouxera de Odivelas.

Ao outro dia contava Eliot a Paula e a Catarina que o doutor Xavier passara a noite ansiadíssimo, e o não dispensara de lhe fazer companhia até de manhã. Historiando o motivo desta mágoa sobrevinda a tantas e tamanhas, disse que um irmão do doutor embarcara para a Relação da Índia, e deixara entregue à vigilância do padre uma sua filhinha.

— Era casado o irmão? — perguntou Catarina.

— Eu não sei, minha senhora, se foi casado. Sei que a menina já não tinha mãe.

— Que idade tem? — disse a religiosa.

— Sete anos ouvi dizer, e é muito bonita.

— Viu-a?

— Sim, minha senhora.

— Onde?

— Em casa do conde do Rio, onde ela vinha todas as semanas com o pai visitar o tio, que parecia adorar a criança. A primeira vez que a pequena viu o tio com a perna de pau, recuou espantada, fugiu para o pai, e rompeu em alto choro, que eu pensei ser de compaixão; mas parece que era de medo. O padre perguntava-lhe cariciosamente se gostava dele, e a Antoninha respondia que só gostava do pai. Isto desconsolava-o a termos de lhe saltarem as lágrimas. E quer-me parecer que as agonias desta noite prendiam com o desafeto da menina, porque ele, contando-me as particularidades da despedida, a falta que lhe faz o irmão, e o presságio de mais o não ver, juntou que nem ao menos lhe restava o doce esteio do coração da sobrinha.

Catarina recolhera-se em taciturnos pensamentos. Soror Paula, ferida das mesmas suspeitas da sua amiga, desejava esclarecer alguma vereda que a conduzisse ao mistério, mas via raio de luz. Isaac Eliot não sabia mais nada nem não rastreava o interesse reservado da amante d’el-rei. O mais que adiantou foi que a menina entrara como educanda em casa de um tal Heliodoro Pedegache, casado com uma matrona muito prendada que falava francês e que havia sido, em menina, aia de Mademoiselle Ana Armanda Duverger, amante do Sr. D. Pedro II.

Logo que ficaram sozinhas, Paula, olhando muito a fito a amiga, murmurou como se receasse que a ouvissem:

— Eu estava no teu coração, Catarina... Tive a mesma suspeita... Será tua filha?

— Ah! tu, Paula!... também desconfiaste?!

— Logo; e não te sei dizer porque... Assim que o doutor te disse que a menina tinha sete anos... E depois as angústias de Francisco Xavier, impróprias e desnaturais num tio que viveu sempre afastado da sobrinha... Não achas?

— Mas... não posso acreditar... — acudiu a religiosa — Se fosse minha filha, ele tinha-mo feito saber... havia de querer que eu o não considerasse tão vil, tão sem entranhas que enjeitasse a minha filha...

— Isso não me despersuade... O que me aflige é ver tudo cerrado... não sei por onde hei de chegar ao desengano... E, se não nos enganarmos, filha... se for ela? que fazes?

— Se a poder ver, se a poder beijar não morro... Verás...

— E, se ela te repelir como repele o... pai?

— É impossível!... uma filha repelir sua mãe!...

— Jesus! há tantos exemplos!... Não há aí uma fidalga que seja amada dos filhos. Entregam-nos às amas, e afastam-nos das salas para não incomodarem as visitas nem mancharem os tapetes. As crianças, aos seis anos, só conhecem e verdadeiramente amam as amas e as aias que lhes acalentaram o choro com brinquedos, e lhes encobriram as travessuras para que as mães as não castigassem mais por aborrecimento que por educação… Depois, as crianças fazem-se mulheres, e escondem-se das mães para verem e conversarem os futuros maridos. Se são homens, preferem o engodo da mais baixa libertinagem à glacial serenidade da vida doméstica. Não te espantes, pois, se a tua filha, que nunca te viu, te repelir. E de mais, tu decerto lhe não dirás que és sua mãe...

— Não decerto...

— Portanto, se ela existe, e chega a ver-te, faz de conta que viu uma senhora muito carinhosa, que nunca tinha visto...

— E, se o coração lhe disser...

— Valha-te a Virgem dos Impossíveis! o coração não diz nada; o mais que faz é repetir o que lhe dizem. Deixa-me cismar... Dá-me tempo. Isto não há de ficar assim... Mas tem muito melindre o negócio, não tem, filha? Primeiro que tudo, é preciso salvar a tua honra; porque ninguém te perdoa, sendo o teu amante, hoje em dia, um sacerdote afastado do mundo, sem nome, nem glória de ter perdido uma perna. Deus nos livre que estas serpentes de Odivelas pudessem enroscar-se-te ao pescoço! Afogavam-te com a espuma das goelas peçonhentas! Olha a Pimentona, (soror Paula variava entre Pimentona e Pimentorra, quando falava de Pimentinha) amarrava-te ao pelourinho do escárnio público, visto que não pôde fazer-te deslocar os ossos no cavalete da Inquisição. Estas santas empurravam-te para a rua, e atiravam com o teu desdouro à cara do rei, que as obrigou a voltar para aqui a pontapés dos quadrilheiros do corregedor. É precisa muitíssima astúcia nas tentativas que se fizerem. Deixemo-nos de modéstia: eu sei que tenho génio para gizar os mais complicados tramas; confesso, porém, que desta vez me sinto estúpida como a nossa madre abadessa.

Soror Paula meditou o que quer que fosse, atingindo duas empresas. Primeira, indagar nas terras onde Paulo Xavier serviu lugares da magistratura, e particularmente em Chão do coice, se ele tinha uma filha legítima ou ilegítima de mãe mais ou menos conhecida.

Quanto à legitimidade, asseverava Catarina que Paulo era solteiro, quando Francisco Xavier, em Verride, recebeu a filha; e, se casou depois — concluiu a freira — esta menina não pode ser filha dele.

A segunda empresa, dado que a primeira sortisse a certeza de que a menina era filha de Francisco Xavier, seria trocada depois, quanto à maneira de aproximar Antónia de Catarina.

No plano da ladina religiosa, Isaac Eliot havia de prestar inconscientemente serviços preciosos, respondendo a certas curiosidades muito de indústria pensadas com ressalva da menor presunção do intento.

Este elemento do seu desenho falhou.

Falecendo o pontífice Clemente XI, naquele ano de 1721, D. João V ordenou que se aparelhasse uma nau para levar a Roma, a votarem no conclave, os cardeais Nuno da Cunha e Pereira de Lacerda. A ostentação desta mensagem custou a Portugal dois milhões de cruzados, diz o visconde de Santarém, elogiando a liberalidade régia. Como os seus enviados levavam missão de aliciar cardeais no sufrágio de um determinado papa, deu-lhes o rei dois caixotes de barras de ouro para a veniaga. A baixela que foi para bordo era de prata e oiro. Só de pratos cinquenta dúzias. Na companhia dos cardeais, que receberam cinquenta mil cruzados cada um para ajuda de custo, iam outros funcionários, e entre estes, como físico-mor, Isaac Eliot, escolhido pelos cardeais. O que recebeu menor espórtula à saída foi um ajudante de cozinha a quem couberam vinte moedas, isto num tempo em que se decretava para um lente de medicina no hospital real um tostão por dia.

Francisco Xavier, afeito à convivência do seu médico, e tão amigo dele quanto cabe ser a homem sequestrado do mundo, magoou-se do apartamento, e delicadamente motivou a sua dor com a soledade, desamparo, e misantropia em que o deixava. Não pôde, todavia, o cirurgião-mor do exército esquivar-se à soberana vontade. Queria o rei que o médico dos seus cardeais se empavonasse em Roma por dotes de galharda presença, e pelos créditos da profissão. Além disso, o cardeal Cunha julgava-se escape da morte pela virtude de uma burra que o aleitara, receitada por Eliot; e pelo tanto não prescindia de levar o medico.

Na tristeza do padre era grande parte não ter notícias de Odivelas. O conde do Rio envelhecera mordido de contrição das suas culpas. Era o costume. Lograr Satanás no fim. Fazer-lhe como o sujeito do Garrett. Meter a parte exposta na benta água, e dizer:

Agora, seu diabo, venha para cá, se é cavar!

Não queria ouvir falar de freiras, e louvava o silêncio penitente do seu hóspede a respeito de Catarina que, ao parecer do reformado libertino, devia andar de amores com algum dos perdidos que lá se infernavam naquele viveiro de tentações. O doutor escutava-o constrangido, e dizia-lhe:

— Se ela é pecadora, perdoemos-lhe, Sr. Conde, para que Deus nos perdoe.

— Ámen — obtemperava o outro bastantemente ungido de caridade.

CAPÍTULO XII

Os recursos inventivos de soror Paula, desta vez, surtiram planos tão triviais na indagação da filha de Catarina que, às primeiras tentativas, se malograram.

Uma criada, dentre as seis brancas e cinco negras do serviço da moreninha Perestrelo, era da vila, onde, ao tempo que Catarina foi mãe, estava o juiz de fora Paulo Xavier.

Partiu a criada para Chão do coice a cumprir uma missão cujo alcance não entendia.

Facilmente descobriu que o juiz de fora tivera consigo uma filha, e a ama que a criava; mas, como a ama era desconhecida na terra e muito bem encarada, supunha-se ser a mãe da criança. Outros diziam que uma fidalga da casa da Melroeira namoriscara o doutor, e... etc. Prosseguindo nas averiguações, o agente da criada descobriu dois assentos de batismo, com intermissão de três anos. No primeiro, Antónia Joaquina era filha de pais incógnitos, e afilhada de Paulo Xavier. No segundo, Paulo Xavier era o pai. Além disso, na nota de um tabelião existia lavrada a cópia de um alvará de perfilhação, com outras declarações do juiz de fora nomeando a sucessão dos seus bens havidos e por haver na sua filha Antónia Joaquina Xavier.

Volveu a criada com semelhantes informações ao convento. Soror Paula aceitou — as como decisivas; mas Catarina instava em dizer que a menina era sua filha.

Pensavam ambas em renovar as pesquisas à custa da reputação da fidalga da Melroeira, quando D. Paula Perestrelo recebeu uma carta, de letra contrafeita no sobrescrito, incluindo outra para soror Catarina Luísa de Miranda e Castro…

— Uma carta para ti, minha filha! — exclamou Paula.

— De quem!?

E, reparando nos caracteres, fez-se escarlate, alvoroçou-se como quando recebera a primeira carta com aquela letra, e murmurou com susto:

— É dele...

— Do Xavier?!

— Sim... Abro, Paula?

— Senão, abro eu. — acudiu a outra.

Catarina deslacrou-a a tremer, e leu:

«Ouvi dizer que desejas morrer, e que a mão abençoada da morte já pousou no teu seio. Sei que ainda choras. Saudades, oh Catarina! saudades daquela alma alegre, daquela tua juventude que eu abati comigo a este abismo? Desce a este inferno. Vem ver o que eu fiz de mim em expiação do mal que te fiz. Vem ver os trinta anos de Francisco Xavier. Para que não morras sem fé na Providência, vem até aqui com o teu espírito. Verás como Deus castiga. Se me odeias, irás vingada, irás compadecida! irás desta vida com a esperança de que Deus permite o algoz porque tem recompensas que dar à vítima.

«Ouviste o meu nome e as minhas desgraças sem comoção. Era justo. Reconheci a justiça desse desprezo, não mando afrontar o teu martírio com o meu nome. Eu me confesso infame diante de Deus e de ti, desde aquela hora em que pus de permeio à minha desgraça e à tua o meu hábito de monge, e fiz da cruz de Cristo a âncora da minha egoísta salvação, quando tu soçobravas na tormenta. Como não havia Deus repelir-me da casa dos fortes que deixaram o mundo quando nenhuma desgraça os afugentara? Fui repulso pela consciência da minha enorme vilania. Caí de vergonha quando me vi hipócrita para dissimular a honra do hábito, que era para mim a túnica do condenado. A minha fé apagou-se, quando não pude orar por ti. Enquanto julguei que eras morta, as lágrimas ungiam-me a santidade da oração. Desde que me deram a nova da tua vida, medi a profundeza do teu ódio; e, como já não te via no céu para me perdoares, e não sabia mentir desculpas à tua misericórdia, apertei a mordaça da minha ignomínia. Aqui tens o meu silêncio, Catarina. Eu não podia dar-te outra prova de respeito, não me restava outra dignidade nesta irremediável miséria.

«Porque te escrevo hoje? se eu fosse, aos trinta anos, um homem com o vigor de corpo e alma, com a vida retemperada pelo remorso reparador, não te escreveria. Sou um velho encanecido, aleijado, repelente, inspirando a quem me vê a compaixão que pedem, à beira dos caminhos, os mendigos mutilados. Escrevo-te, porque nunca recearás que um homem, que a si se vê esquálido, use a desvergonha de implorar outro afeto que não seja o da caridade, É o que te pede o homem não de todo degradado enquanto conservar na alma a lembrança de que foi honrado pelo teu amor. Se tens de morrer antes de mim, quero que me absolvas do único delito que não tenho, Catarina, embora leves desta vida a dolorosa certeza de que deixas aqui uma filha...»

A religiosa expediu um ai, retraiu para o peito a mão em que tinha a carta, e com a outra apertava convulsa o braço de Paula. O gesto é indescritível, porque mal pôde bosquejar-se a expressão pávida dos olhos, o tremor dos lábios entreabertos, os revezes de rubor e palidez que de instante a instante lhe demudavam o rosto.

A Perestrelo tomou-lhe a carta da mão e, atentando no período que ouvira ler, disse:

— Não há dúvida... É tua filha...

— O quê? — perguntou Catarina.

— Deixa-me ler o resto, que eu estou a recear que não percebêssemos bem.

E leu:

«Não a deixes nos meus braços de pai, porque ela me não dá este nome, não me conhece, repele-me como eu a repeli. Quando me viu, pela primeira vez, estava eu amortalhado no meu hábito. Teve pavor do meu aspeto. Se lhe dissessem que eu era seu pai, esta palavra seria vã e ininteligível na sua alma… Pais são os que bebem as lágrimas das criancinhas desde os primeiros vagidos. O homem que ela estremecia com invejadas carícias, chamando-lhe pai, era meu irmão Paulo. E, no futuro, se alguém insinuasse, como ultraje, a esta criança que é minha filha, a igreja desmentiria a injúria, mostrando que Antónia foi batizada como filha de Paulo Xavier, e legitimada para lhe suceder nos avultados bens.

«A tua filha nunca te será labéu nem embaraço, Catarina. Nem ela nem o mundo saberá quem é sua mãe… Se pudesses viver engolfada nos deleites, nunca deveras temer que o remorso te aparecesse vingativo com a tua filha, pela mão. Não a verás. Eu nunca lhe vedaria que te visse; e, se ela pudesse amar-te quanto me aborrece a mim, pensaria eu que Antónia, chorando no teu seio, te pedia o perdão de um qualquer desgraçado sem nome, que devia ser eu.

«Digo-te que a não verás, porque te aconselho que a não vejas. Não exponhas o peito ao penetrante espinho da indiferença com que ela contemplará as tuas feições estranhas. Se lhe pudesses chamar «filha», talvez ferisses a corda intacta do coração onde nunca tal palavra soou; mas esse nome não lho darás, por amor à tua honra, e por amor da mesma criança. Se a reconhecêssemos, seria para lhe deixar legado de condenada. Que ela nunca saiba que a sua mãe era freira, e que o seu pai, degenerando em ascético fanatismo os generosos sentimentos de homem, chorava no estéril chão do Varatojo as lágrimas que eram da sua filha, e tuas, minha vingada vítima!

«Não tem resposta esta carta, Catarina. Queima-a. Responde-me no silêncio da tua cela, com estas palavras: «Faltou aos teus crimes o de atirares tua filha à roda. Puderas estrangulá-la, submergi-la, e não o fizeste. Ainda bem que nos suplícios da tua agonia derradeira não entrará esse remorso». Adeus! Perdoa-me, se esta carta é mais um trago de fel que eu verto no teu cálix. Ajoelha, minha adorada e santa sombra do passado, ajoelha, e oferece a Deus esse cálix em redenção do teu verdugo».

CAPÍTULO XIII

Catarina, ponderando as razões que Xavier, mais ou menos sinceramente, lhe prescrevia para não responder à carta, achou-as judiciosas. Não respondeu. Em parte sacrificou a piedade ao dever; mas a explicação complexa do seu silêncio é outra. Não o amava. Lastimar e amar, no coração da mulher, implicam.

Isaac Eliot, falando do seu amigo, deplorava-o, porque era pena ver assim tolhido um homem tão no vigor da idade, porque não tinha uma perna, porque parecia ter cinquenta anos, e até pela prodigiosa arte com que simulava resignação. Isto comovia; mas estremava dois homens: o elegante e juvenil Francisco Xavier do amor, e o amputado e envelhecido Francisco Xavier do arrependimento. Ora, a freira não podia consubstanciá-los no mesmo homem — confundir compaixão com amor.

Apesar da enorme culpa de a levar do convento com promessas de não a expor à vingança dos inimigos — apesar das angústias do cárcere e das afrontas que a receberam no mosteiro, se Eliot, em vez de comiserá-la, a enfurecesse contra o doutor Xavier gentilíssimo, dissoluto, amado das mulheres conhecidas, hoje apaixonado, amanhã saciado, sempre no abismo do mal, mas com muitas vítimas voluntárias à competência de o distraírem na sua caverna e de caírem com ele pelo mesmo alçapão do inferno — se o médico lhe pintasse desta arte o pai da sua filha, não se me dava de apostar que a Muleirinha perdoava ao ingrato celerado, e amava o amante arrependido. Aleijões do pecado original.

A filha, sim. Desse amor ideal sentia a freira as ânsias, a vaga ternura, o instintivo arfar da maternidade.

E soror Paula prometera-lhe que veria a filha naquela sala, e sentada na cadeira em que ela estava.

No dia seguinte à primeira noite que D. João V visitou o palacete de Odivelas, um fidalgo do paço procurou D. Feliciana Pedegache, a hospedeira e mestra de Antoninha; e, reservando o nome do seu augusto amo, disse que uma pessoa da mais alta jerarquia desejava que uma senhora religiosa em Odivelas aprendesse a língua francesa, O mensageiro reconhecia o incómodo que daí provinha a D. Feliciana; mas contentava-se com duas visitas semanais à lecionada, para o que, nos dias e horas designados, estaria uma sege do paço às ordens da sua mercê. D. Feliciana percebeu logo quem era a aluna. Deu-se os parabéns do convite, agradeceu com transporte a honra da escolha; e, apenas o camarista saiu, agourou ao marido que lhe havia de pender do colo a fita do hábito de Cristo. Foi dia de júbilo na casa de Heliodoro Pedegache. Mandou-se recado às relações. Deu-se a nova. Serviram-se bolos, maçapões e carcavelos a granel.

— Vais ver soror Paula! — diziam-lhe as irmãs — Temos-te inveja! A casa dizem que é um paraíso celestial.

— Com uma grande serpente — acrescentou um rapaz de dezoito anos, sobrinho de D. Feliciana.

— Que é isso, André? — acudiu a tia.

— Disseram que vossa mercê — respondeu o jovem — vai ao paraíso celestial; e eu acrescentei que há nesse paraíso uma grande serpente, como já houve outra no paraíso terreal.

— Modera a língua, rapaz — interveio a mãe.

— Estes estudantinhos de hoje em dia são atrevidos e repúblicos — observou Heliodoro Pedegache, o esperançado cavaleiro de Cristo.

O estudante sorriu-se e continuou a regrar o papel que Antoninha lhe pedira para escrever o seu traslado. Era André Guilherme, três vezes por semana, o encarregado de dirigir OS trabalhos caligráficos de Antoninha, a pedido da sua tia.

A mãe, as tias e as irmãs, respeitavam no rapaz a austeridade precoce, a sisudeza desnatural na idade, as falas raras e sentenciosas. Saía da aula de filosofia para a de grego, e daí para o seu quarto a conversar os livros. A sua única e aprazível diversão era dialogar infantilmente com Antoninha, e vê-la adiantar-se maravilhosamente na escrita e leitura. André esperava os vinte anos para professar na ordem da Santíssima Trindade e redenção dos cativos, O seu propósito era sair do reino, depois, e exercitar o instituto da sua humaníssima ordem na moirama.

Antoninha chamava-lhe o seu mestre, era-lhe muito afeiçoada, e esperava-o infantilmente alvoroçada, nos dias da lição.

— Estou a ver — dizia D. Feliciana ao esposo — que, se a pequena se faz mulher enquanto ele se não faz frade... onde irão dar estas ternuras...

— Quando André Guilherme entrar no convento, ainda ela é criança — observava o sisudo marido.

Mas não descambemos da linha reta que nos leva a Odivelas no encalço da sege.

Feliciana tem desmaios de assombro quando atravessa as salas da fada; quer ajoelhar e beijar a mão de soror Paula, que a recebe de roupão de seda verde alamarado com presilhas de ouro e pedras. Maria da Luz e Catarina, trajando rigoroso hábito, ladeiam a sultana. Conversa-se, e toma-se chá pérola por taças da Índia com as armas do reino. Feliciana conta que foi em menina uma espécie de aiazinha da mãe dos senhores D. Miguel e D. José, filhos do Sr. D. Pedro II. Responde a todas as curiosidades da freira, que reclinada molemente na espádua de Catarina, quer saber as coisas secretas da Duverger. Nomeia depois a professora as fidalgas a quem ensinou a língua francesa, puro parisiense, como a falava mademoiselle Ana Armanda.

— E atualmente não tem discípula? — perguntou a Perestrelo.

— Não, minha senhora, porque me tenho esquivado. Não me chega o tempo. Apenas tenho uma aluna que é minha hóspede.

— Fidalga?

— Filha de um desembargador que foi para a Índia, o doutor Paulo Xavier, irmão daquele frade que perdeu uma perna na guerra com os turcos. V. Exa havia de ouvir contar...

— Ouvi, sim.

— Que pena me faz ver um rapaz tão novo assim aleijado! Ele vai todas as semanas de carruagem ver a sobrinha, ou vai a sobrinha vê-lo ao palácio do Sr. conde do Rio Grande, onde está de hóspede. Acho que é muito rico, porque rara semana deixa de levar à sobrinha alguma prenda rica, mesmo muito rica: gargantilhas, braceletes, afogadores, fraldelins de Granada, volantes, luvas e leques de França, enfim, coisas que de nada servem a uma menina que vai nos oito anos! E ela — ora vejam, minhas senhoras! — não gosta do tio tanto como isto! Chama-lhe o perna de pau; e, se pode desculpar-se com as lições, foge da sala.

— É esquisita a menina! — disse Paula.

Quanto a Catarina, essa, sem se estrear com um monossílabo, não despregava os olhos da loquacíssima professora.

— E é bonita? — perguntou Maria da Luz.

— Muitíssimo galante: parece-se mais com o tio que com o pai; porque o tal padre manco tem uma cara muito fina; e o meu marido, que o conheceu aqui há oito anos, diz que em Lisboa poucos homens passeavam tão airosos como ele. Pois a menina dá avultações do tio; que ela não quer que se lhe diga isso.

— Quem é a mãe dessa menina, sabe? — perguntou Paula.

— Isso agora, minha senhora, é segredo que eu não pude até hoje descobrir, nem, a falar verdade, me tem importado muito. Antoninha diz que a sua mãe morrera quando ela era pequenina; mas o que eu sei de fundamento é que o Sr. Desembargador nunca foi casado, por me dizer uma criatura lá das bandas de Coimbra que foi ama de leite da menina, e que todos os meses a vem ver a Lisboa. Até já me lembrou se ela seria propriamente a mãe; mas pelo trajar e pelos modos saloios não tem jeito disso. Se ela fosse a mãe de uma menina tão querida do pai, é natural que vivesse com outra estimação...

Soror Paula declinou o palavreado noutro rumo. Pintou-se-lhe tão fácil o êxito premeditado que deferiu para outro dia mostrar desejo de ver a educanda. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe se Francisco Xavier, sabendo que a mestra de Antónia era sua preceptora de língua francesa, entraria em indagações de Catarina que beliscassem a curiosidade da Feliciana, sugerindo-lhe desconfianças. Por outro lado, ocorria-lhe que o padre não estorvaria que Antónia entrasse em Odivelas e fosse vista da sua mãe. Nisto cismava Paula enquanto a mestra lhe ensinava a pronunciar o abecedário francês e os ditongos, objeto da primeira lição.

Assim que a mestra saiu, Catarina lançou-se nos braços de Paula, e por entre beijos e lágrimas soluçava:

— Já sei que hei de ver minha filha! Tu és um anjo, minha querida amiga! Queres por força que eu viva, e não há desejo que me não satisfaças!... Que farei eu quando a vir, ó Paula! Como hei de eu conter-me que me não abrace nela?...

— Olha se tens juízo, doudinha! — admoestou a Perestrelo — Isto não é brincadeira... Lembra-te das inimigas que temos... Eu receio tanto que o segredo se descubra que nem ao rei disse ainda uma só palavra a tal respeito. Ele sabe os teus amores com Xavier — sabe tudo; menos o que é forçoso que ninguém desconfie. Vê lá como te portas, já que me obrigas a estudar francês, e a fazer-me por isso alvo da chacota destas estúpidas do convento, que hão de ser toda a vida bernardas...

— Se vires que eu me excedo, filha — disse Catarina acariciando-a — faz-me um sinal, sim?

— Que sinal, menina! De que servem sinais!... Tu é que deves fazer um estudo para não te excederes. Podes afagá-la e beijá-la, que tudo é natural entre uma religiosa e uma criança; podes até chamar-lhe «filha» que não será isso reparado; mas não de transportes e arrebatamentos, percebes?

A trigueirinha estudou a sua lição, e o rei ajudou-lhe a pronunciar os ditongos. A sua majestade sabia regularmente a língua francesa e espanhola. A italiana ensinou-lha, vinte anos depois, a atriz Petronilla, a quem deu presentes que carregaram trinta carruagens quando a cantora se fez na volta de Espanha, diz o Cavalheiro de Oliveira. D. António Caetano de Sousa, na História Genealógica da casa real, tom. VIII, pág. 4, diz que o rei sabia também latim com perfeita inteligência. De um sujeito que lia Horácio e Cícero, dizia Bocage: «Pena é que saiba latim, pois perdeu-se um parvo grande!» D. João V, ainda com o latim, não era parvo pequeno nem perdido.

Disse Paula a primeira lição com bastante ciência dos ditongos e tritongos, mormente os nasais, que a sua majestade lhe ensinou com a mais fanhosa graça. D. Feliciana benzia-se da esperteza linguística da sua discípula, e fingia não acreditar que ela desconhecesse inteiramente os ditongos e os tritongos, os nasais particularmente.

— A outra sua discípula já deve estar muito adiantada... — disse Paula.

— A Antoninha?

— Sim.

— Já começa a conversar em francês comigo.

— Já?! que linda coisa! falar francês aos oito anos!

— As crianças aprendem mais de ouvido que pelas regras — explicou a conspícua Feliciana — Eu segui sempre o método por onde aprendi. Quando abri uma arte de falar francês, já sabia conversar com mademoiselle Duverger. Ora, a minha hóspede tem tal memória que não lhe esquece palavra que eu lhe diga. Daqui a um ano há de poder-se ouvir falar francês.

— Daqui a um ano? E eu, daqui a um ano, poderei conversar em francês?

— Pois não, minha senhora! V senhoria, com mais duas ou três lições, começa a conjugar o verbo aimer. J'aime, eu amo, tu aimes, tu amas, il aime, ele ama.

— Isso é bonito! — atalhou a ridente moreninha, fazendo rir Catarina — Graças a Deus que riste, minha casmurra! — disse ela, tocando-lhe no rosto com as pontas dos dedos.

— Tenho notado — observou a mestra — que esta senhora é muito melancólica, e parece não ter a melhor saúde...

— Sou doente — respondeu Catarina.

— Ah! sim? pois pena é que tão novinha comece a padecer! Isto de viver na clausura não é para todas as compleições. Umas senhoras engordam e outras definham — se. Se fosse aos ares, minha senhora...

— Aos ares vou eu, se ma tiram do convento — calemburgou Paula.

— Bem se vê que são amiguinhas inseparáveis... — disse a mestra — mas, se Deus quiser, como está uma criança, ainda pode ter muita saúde, minha senhora. Às vezes fazem-se na gente umas revoluções interiores, e vão-se os achaques. Porque não consulta o médico francês que tem feito milagres, monsieur Eliot? A mim me curou ele de uma obstrução, ou o que quer que fosse, nos rins; andei por todos os doutores famosos, encharquei-me em tisanas e sempre a pior. Fui-me ter com o francês, por sinal que ele ficou espantado quando viu uma portuguesa a falar a sua língua; e sabem com que ele me curou, minhas senhoras? Vejam lá se podem adivinhar...

— Foi com leite de burra — disse Paula.

— Ora esta! quem o disse a V senhoria? — acudiu espantada D. Feliciana, enquanto a Muleirinha ria pela segunda vez.

— Não se admire, D. Feliciana — explicou Paula — eu conheço esse médico, e sei que ele cura todas as doenças com leite de burra. Aqui a minha amiga também anda no uso dele.

— Faz muito bem, minha senhora. Ainda ontem eu pedi ao Sr. padre Xavier, porque o vi muito amarelo, que tomasse os leites; e assim que entrar o verão vou dá-los à Antoninha...

— Ela é doente? — perguntou Catarina.

— É magrinha, tem poucas carnes, e come como um passarinho. Depois, estuda bastante; meu sobrinho André, que lhe ensina a escrita e a ortografia, puxa bastante por ela. Eu ralho; mas a menina zanga-se, se a tiram dos livros.

— Porque não dá uns passeios com ela? — perguntou D. Paula.

— Falta-me tempo, minha senhora. Sou eu só a governar a casa, e não tenho em quem descanse.

— Porque a não traz consigo quando aqui vem? — disse a freira — um bonito passeio de sege. A Antoninha assiste às minhas lições, é minha condiscípula, e talvez que eu, ouvindo-a conversar em francês, me vá desembaraçando. Faça isto, D. Feliciana, dê à criança o prazer destes ares do campo, e verá como ela aqui chega com apetite.

— Diz V. Senhoria muito bem — assentiu a mestra — mas é necessário uma licença para ela poder entrar.

— Não lhe dê isso preocupação. A licença lá a recebe na sua casa amanhã ou depois.

— Como ela vai ficar alegre!... Quando eu daqui fui, a menina quis saber como isto era, como as senhoras andavam vestidas, como eram as celas, enfim moeu-me a paciência com perguntas. E quantas vezes ela me tem dito que o seu maior prazer era voar da trapeira a umas árvores que se avistam lá para as bandas de S. Sebastião da Pedreira! Eu já pedi ao tio da menina que fosse dar uns passeios até Chelas com a sobrinha; mas ela, assim que eu falo nisto, perde logo a vontade de sair. Enfim, acho que nem para o céu queria ir com o tio perna de pau. Embirração assim não se acredita, minhas senhoras! Eu já perguntei ao meu sobrinho André Guilherme, que é muito sábio e estuda para frade Trino, como explicava ele esta antipatia da pequena. O meu sobrinho respondeu-me que nem o amor nem a aversão se explicavam; mas que lhe bacorejava que o tio havia de ter influência funesta na sobrinha. Enfim, minha senhora, Deus é que sabe... São horas e mais que horas de me retirar. Tenho abusado da bondade com que V. Senhoria me trata.

— Pelo contrário, eu é que sou a reconhecida. Lê lhe mando a licença — repetiu soror Paula — Dê o alegrão à minha condiscípula. Estou persuadida que o tio não a impedirá.

— Com toda a certeza. Ele já me disse que estimaria muito que as minhas ocupações me deixassem passear com a sobrinha. Ela cá vem, visto que V. Senhoria lhe faz a honra de a receber.

Renovaram-se os beijos e lágrimas jubilosas de Catarina.

CAPÍTULO XIV

Chegou D. Feliciana alvoroçada a casa com a notícia… Estava o sobrinho corrigindo os desacertos ortográficos da escrita que ditara à pequena.

— Antoninha — vozeava a mestra ofegando escada acima.

— Antoninha! trago-lhe uma nova muito alegre, a mais alegre que lhe posso trazer...

— Chegou o papá?! — exclamou a menina erguendo-se de salto, e correndo para a mestra.

— Não é isso, meu amor; é outra coisa...

— Não? — disse esmorecida a criança — Então não sei que seja...

— Eu lhe vou dizer... Chegue-se e dê-me dois beijos... Sabe o que é? as senhoras de Odivelas querem que a menina lá vá.

— Ora! — disse Antónia com desdém — A mim que me importa as senhoras de Odivelas?... Julguei que era outra coisa...

E foi sentar-se amuada à mesa de escrever.

— Venha cá, sua aborrecida! — volveu D. Feliciana refreando mal o despeito — então a menina não quer ir ver a casa mais rica do mundo, onde moram umas senhoras que parecem uns serafins?

— Eu não, senhora.

— Não? pois há de ir.

— Se o seu tio lhe der licença — interveio André Guilherme.

— Aí vens tu com as tuas retóricas!... — saltou a tia azedada.

— Isto não são retóricas, é moral, minha tia.

— Qual moral nem qual carapuça! Então que é moral?

— Moral é a ciência dos bons costumes, e é bom costume que as meninas de oito anos vão tão somente onde seus pais, ou tios, ou tutores consintam que elas vão.

— Mas o padre já me disse que fosse passear com a sobrinha... Não é verdade, menina?

— Mas não lhe disse que a levasse a casa da madre Paula de Odivelas para a qual casa se entra por uma porta que não é a conventual.

— Sabes tu que mais? estás cada vez mais tolo! Acho que metes livros na cabeça; mas tiras de lá os miolos para te caberem os livros. Que te importa a ti por onde se entra para a casa da religiosa?

— Da religiosa, nego, e distingo — replicou o jovem abordoando-se às fórmulas aristotélicas. — Não é religiosa, porque a religião impõe votos de pobreza e castidade, e soror Paula Perestrelo não é pobre nem... conversaremos particularmente, minha tia. Eu costumo explicar a esta menina as palavras que desconhece,. Suprimo as que ela deve ignorar; pelo menos, não serei eu quem lhas ensine.

— E acabou-se! quem governa nesta casa e nas minhas ações és tu!... — raivou a tia.

— Não governo, minha senhora, deixo-me governar pela consciência do bem, e digo alto o que sinto. Se, todavia, lhe são penosas as minhas reflexões, não voltarei a sua casa.

— Veremos... — resmungou a tia, retirando-se.

Antónia acercou-se do mestre, e disse-lhe em tom implorativo:

— Não volta a esta casa, Sr. André?

— Veremos, disse minha tia.

— Olhe que eu não vou a Odivelas...

— E porque não vai? se o seu tio consentir...

— Também não vou... Eu só faço o que o meu papá mandar... Importa-me cá as freiras!

Neste comenos ouviu-se rodar e parar uma sege.

— Aí vem o Sr. padre Xavier — disse André Guilherme.

— Provavelmente minha tia pede-lhe licença para levar a menina a Odivelas; se ele consentir, Antoninha, não se recuse. Obedeça e vá: peço-lhe isto. A menina é ingrata ao seu tio, que lhe quer muito.

— Pois não vou... — redarguiu a menina com dengosa obstinação.

André olhou-a com triste silêncio.

Entrou Feliciana na sala para receber no alto da escada o padre, que subia muito fatigado, batendo rijo em cada degrau com a inflexa perna de pau.

André desceu ao primeiro mamei para lhe dar o braço e ampará-lo. Antoninha esperava-o para lhe beijar a mão. O padre, desde que a viu, ganhou forças, apressou-se, e sorria-lhe nos lábios e nos olhos.

No topo da escada, parou amparando-se nos ombros da menina; depois, arqueou-se com dificuldade, beijou-a em ambas as faces, cumprimentou a mestra, e entrou na sala onde André lhe pusera da cadeira o tamborete em que ele estendia horizontalmente a perna artificial, sendo dolorosa a curvatura.

— Cheguei, há minutos, de Odivelas — disse D. Feliciana.

— Sim? está contente com a sua discípula?

— Contentíssima! a primeira lição não podia ser melhor. Aquela senhora tem muito engenho! E então graça! faz rir as pedras! Hoje até fez rir a outra senhora triste, em que falei a V. Senhoria, e ainda não sei como se chama...

— Rir é uma felicidade, e fazer rir é um dom impagável, senhora D. Feliciana.

— E não sabe? A Sra. D. Paula quer que eu leve lá sua sobrinha.

— Quer?! Pede ou quer?

— Isto é um modo de falar... Como eu lhe disse que a menina era magrinha e comia pouquíssimo, lembrou-se a senhora freira de que uns passeios de sege fora da terra lhe abririam o apetite, e então me fez a honra de convidar a Antoninha. Resta saber se V. Senhoria dá licença...

— Eu não quero ir... — interrompeu a pequena trejeitando gestos sacudidos, como usam as crianças voluntariosas e amimadas.

— Ora diga-me — perguntou o padre, depois de morosa e agitada reflexão — a Sra. D. Paula sabe a que família pertence esta menina.... Não vá ela pensar que é das fidalgas que a Sra. D. Feliciana tem educado...

— Pois não sabe?! Eu já lhe disse que o pai da minha educanda é o senhor desembargador Paulo Xavier, e que V. Senhoria é o tio da menina. Já da outra vez me fizeram perguntas a respeito... sim... eu lhe direi... com licença...

E, aproximando-se-lhe do ouvido, continuou:

— Perguntaram-me se eu sabia quem era a mãe de Antoninha...

— Perguntaram-lhe ou perguntou-lhe? — disse o padre Xavier — A senhora tem-me falado numa só religiosa; esse perguntaram-me deixa entender que as senhoras eram duas ou mais.

— Eram mais duas; uma é a Sra. D. Maria da Luz, irmã da Sra. D. Paula; da outra já lhe disse que não sei o nome. Ora agora, esta que não sei como se chama, alguma coisa me disse a tal respeito, mas... lembrar-me o que foi... não é possível. Por isso é que eu disse: perguntaram-me. Quem convidou a menina foi a Sra. D. Paula.

— Eu responderei quanto à licença que me pede — concluiu Xavier.

— Mas a senhora disse que amanhã me mandava a licença.

— Licença para quê?

— Para entrar no convento.

— A Sra. D. Feliciana, quando lá vai, entra pela porta do convento?

— Não, senhor.

— Então para que é a licença?

— É que a outra porta é também defesa à inocência — disse André Guilherme aparando os bicos de uma pena, sem erguer a cabeça.

O padre pôs um profundo olhar no perfil descaído do estudante, e disse entre si:

— Ele entenderia bem o que disse?!

A tia olhou também de esguelha contra o estudante, e murmurou:

— Ninguém te percebe!

— Eu percebi — objetou o padre — Repito: responderei. Se tem de ir a Odivelas antes da minha resposta, não altere a verdade, conte o que se passou.

E, beijando Antónia, e apertando a mão ao futuro frade trino, saiu mais opresso de espírito.

Convém saber que o silêncio de Catarina alanceou o coração de Francisco Xavier. Aquela carta era sincera, quanto aos confessados remorsos; mas fraudulenta, quanto à imposição do silêncio. E, porque os remorsos eram verdadeiros, o delinquente queria ser perdoado; e, se não perdoado, arguido; desprezado, é que ele não queria ser. A sua expiação retraía-se a tão acerba prova. No peito daquele homem escabujava ainda o coração com a vitalidade dolorosa das fibras corroídas por um cirro. Tinha trinta anos: amara uma só vez; aniquilara-se para não amar segunda mulher, vestindo o hábito; e o desastre da guerra, a mutilação e o alquebramento físico fechavam-lhe os áditos da sociedade onde a sua alma, posta ao fogo de outras paixões, podia retemperar-se. Se ele tivesse a velhice que se conta por dezenas de anos, o silêncio de Catarina de Castro não lhe mordera no orgulho através do coração; porém como o seu desprendimento era fictício, e a soledade lhe aguçasse as puas do desprezo, e a sua alma trasbordasse do amaríssimo desamor da filha, a imagem de Catarina já lhe não aparecia lastimável e plangente.

Até o ciúme, a fantasia que dá a preexistência do ideal do inferno, até o ciúme lhe cravou a garra. Amaria ela outro homem? Hóspede de Paula, poderia ser honesta? Os camaristas do rei ser-lhe-iam indiferentes? A doença e a tristeza seriam enfeites de namorada para dar graças mórbidas à poesia da paixão?

Se assim era — depreendia o injustíssimo caluniador da pobre senhora — que queria Catarina da sua filha? Cativá-la? fasciná-la com carícias? segredar-lhe que era sua mãe? usurpá-la ao amor dos outros? desgraçá-la talvez?

— Não! — pensou ele — tu não me roubarás a minha filha! Se ela me não ama, há de amar-me quando bem compreender que eu a adoro! Quererias, porventura, ensiná-la a desprezar-me pela mesma razão que tu me desprezas? querias dizer-lhe que houve um homem que lhe chamou filha, porque eu lhe não quis dar esse título? que eu, ao vestir o hábito de monge, foi como se vestisse a mortalha de pai? Não lho dirás, não! Se te era desonroso responder aos gritos da minha alma, não queiras diante de ti a filha do teu crime. Sê coerente se não podes ser boa nem compassiva. No ar dos pestilenciais aromas do palácio de Paula, não quero que a minha inocente filha respire. As impressões que se insculpem numa alma nova são boas ou más no futuro. Eu não quero que a minha filha se recorde da alcova de uma freira amásia de um rei. Pode ser que a mãe se embriague nessa atmosfera; mas a embriaguez que delicia uma alma gasta pode matar as flores ainda abotoadas no coração da minha filha. Não a verás, Catarina.

O padre Xavier seria péssimo carácter, se não fosse um grande desgraçado.

CAPÍTULO XV

À hora do costume, as senhoras Perestrelos e Catarina, por entre as cortinas das janelas, esperavam D. Feliciana. Quando conheceram a sege das cavalariças reais, disseram as três a um tempo:

— Elas aí vêm!

— Olhem o meu coração como pula!-murmurou Catarina pondo sobre o peito as mãos das suas amigas.

— Até eu estou alvoroçada... que farás tu!... — disse Paula.

— Não se divisa quem vem dentro... — notou Maria da Luz agachando-se para espreitar rente com o peitoril.

Catarina ajoelhou também, formando com as mãos um tubo para convergir os raios da luz, e disse com desalento:

— Parece-me que vem sozinha a tua mestra...

A este tempo já Paula tinha o óculo de longa-mira assestado à sege.

— Tens razão — confirmou a Perestrelo — a menina não vem...

— Talvez não entregassem ontem a licença à Feliciana — lembrou Maria da Luz.

— Bem me dizia o coração! — disse Catarina.

— Aí estás tu já aflita!... Qualquer insignificante embaraço impediria a vinda da pequena... Olha que é preciso não nos mostrarmos muito contrariadas na falta. Deixa-me só falar a mim.

Entrou a mestra com desconsolada cara; e feitas as mesuras, disse:

— A menina não veio porque o diabo do tio negou a licença, isto é, disse-me que pensaria e responderia ao meu pedido.

Catarina voltou as costas a Feliciana e chegou-se de uma janela que dava sobre o pomar, a fim de encobrir as súbitas lágrimas. Quis represa-las; mas não podendo, saiu da saleta, e recolheu-se ao seu quarto. A mestra não percebeu nada. Paula e Maria da Luz, com as suas perguntas, distraíram-na de atentar nos precipitados movimentos da outra. No entanto, Paula gesticulou um rápido aceno à irmã, que seguia Catarina.

A mestra referiu pontualmente o que passara com Francisco Xavier. Não lhe esqueceu a distinção da porta conventual e da porta particular. Omitiu somente por cortesia o comento do sobrinho quanto à defesa da inocência por qualquer das portas. Paula absteve-se discretamente de retribuir ao padre as farpas indiretas. Mostrava-se sentida do desgosto da mestra, e lastimava a criança, que o tio decerto amaria com melhor resultado, se, em vez de lhe dar enfeites, lhe desse ar puro.

Quando Feliciana lhe perguntou se queria dizer a lição, a freira respondeu que uma forte enxaqueca a impedira de estudar. Despediu-se a mestra, e Paula correu à alcova de Catarina, que estava a chorar ao lado de Maria da Luz. Esta, fitando a irmã, e depois declinando a vista de esconso para uma bacia de lavatório, dizia-lhe mudamente que visse o sangue de Catarina. Não era a primeira hemoptise; mas Paula assustou-se; foi para ela impetuosamente e estreitou-a ao coração.

— A tua filha há de vir, eu to juro, Catarina.

— Que vil homem aquele! — soluçava a mãe de Antónia — Acho-o mais infame neste proceder, comparando isto com a carta que me escreveu. Aqui tens o penitente, o contrito! Participou-me que existia minha filha, como quem inventa um flagelo novo para mim. Pensou que eu vivia resignada. Afligiu-o a ideia. Engenhou uma tortura, prevendo que eu cairia outra vez na cilada. Disse-me que eu tinha uma filha com o plano de me aviltar não consentindo que eu a veja. Aqui tens a perfeição da maldade humana, Paula!... Deixa-me chorar e morrer, que eu tenho mais vergonha que dor de o ter amado! Não faças diligência alguma... Que vem ela cá fazer? Eu... estou morta...

— E eu não quero que morras, minha querida filha! Deixa todo o mundo, e vive para mim! — exclamou Paula desfeita em lágrimas — Olha que eu só deixo de ver escura a minha vida quando encontro a luz dos teus olhos. Se nunca te disse isto, é porque só agora pude recalcar no peito a vaidade de parecer feliz aos olhos de toda a gente, de amigas e inimigas!

Catarina abraçou-a, beijou-a muitas vezes, ganhou alento na convicção de ser precisa à felicidade daquela mulher tão odiada e invejada.

Paula levou-a consigo, segredou-lhe muitas dores ignoradas, muitos ultrajes recebidos do capricho de D. João V. Entreteve-a com as suas angústias — o melhor anódino para mitigar as alheias.

Depois, enquanto Catarina meditava uma carta fulminante para o pai de Antónia, Paula entrou no seu gabinete escreveu algumas linhas, lacrou o sobrescrito, e escreveu:

Ao reverendo Sr. Padre Francisco Xavier. Em casa do Exmo. conde do Rio Grande, no Lumiar.

Chamou uma negra, deu-lhe explicações, e voltou, dizendo coisas diversas e alegres à sua amiga.

— Vou escrever-lhe...-disse Catarina com desabrimento.

— Raios e coriscos? Não escrevas, filha. O que tu pensas deve ser o pior despacho. Nós estamos ainda no começo. Há muito que fazer antes que lhe dês o prazer de o castigar com a tua carta. Se lhe tivesses respondido afrontas, já cá tinhas a filha, O teu silêncio foi como se em cima da sua memória lhe voltasses a esmagadora pedra do sepulcro. Quando eu desconfiar dos meios brandos, então lutaremos como desesperadas.

Francisco Xavier recebeu a carta confiada ao ajudante do sacristão-mor das freiras. Estes funcionários em Odivelas acumulavam todos os ofícios compatíveis. Curavam das aras do templo, e velavam o fogo não sagrado das sacerdotisas para que não se apagasse.

Este subalterno conhecera Francisco Xavier no galarim do luxo e do amor. Pôs-se a chorar quando o viu sem perna, sem cores, arrugado, desfeito.

— Quem o viu, meu senhor! — dizia, e benzia-se.

Depois entregou a carta.

— De quem vem? — perguntou o padre, reparando na letra desconhecida do sobrescrito.

— Deu-ma uma das negras da senhora freira... d’el-rei — E circunvagou uns olhares cautos. Xavier abriu e leu:

Paula Perestrelo cumprimenta o Sr. Francisco Xavier, e pede-lhe a fineza de consentir que venha a Odivelas sua sobrinha Antónia.

Deteve-se largo espaço a estudar silabicamente as duas linhas. Meditou, enquanto o sacristão comparava o brilhante jovem de oito anos antes, com aquele homem encolhido e descadeirado entre as almofadas de uma preguiceira.

O padre, ainda escandecido do acesso de fúria do dia anterior, no bilhete de Paula não viu frase que o aplacasse. Nem uma letra, uma inicial com referência a Catarina! Ela, orgulhosa, aviltadora, esquivara-se a ser parte na petição — pensava ele. Delegava glacialmente na amiga o satisfazer-lhe um capricho, sem risco da sua dignidade, sem sacrifício da sua soberba. Se fosse servida, nada tinha que agradecer ao homem desprezado... Se o não fosse, a descortesia feita à amante de el-rei não ficaria impune.

— Quer expor-me ao ódio d’el-rei — dizia ele.

E, derivando a sua preocupação ao ínfimo grau onde a podia abaixar, pensou nos perigos da repulsa, graduando-os, pela omnipotência real. E, remontando-os aos antepassados, pensou em Domingos Leite Pereira, seu bisavô, enforcado como regicida; em Francisco Mendes Nobre, seu avô, falecido de angústias quando lhe aferrolharam o filho; no seu tio de Vila Viçosa, queimado; no seu pai, três anos preso e desterrado.

E, depois, ele era rico; os seus haveres, transferidos de Holanda, eram conhecidos; e o seu irmão era desembargador em anos florentes; e a sua filha era a herdeira de mais de cem mil cruzados. E estes cem mil cruzados, com ele, com o irmão, com a filha, tudo poderia sorvê-lo a voragem do Santo Ofício, ao mais leve aceno d’el-rei. E, para além disso: ele conhecia o fôlego vingativo de Paula Perestrelo. Sabia que, mediante ela, Catarina e a sua mãe, na Inquisição de Coimbra, amolgaram a ferocidade dos frades, e saíram ilesas. Sabia que uni bilhete dela enviado ao paço da Ribeira, pôs na rua os quadrilheiros e a tropa que rebateram a comunidade de Odivelas para dentro do mosteiro. Sabia, enfim, que Paula se prestava a executar as vinganças de Catarina.

Ilaqueado por estes medos sinistros, em que nenhum pensamento nobre sobressaía, o ex-frade varatojano mandou ao sacristão que lhe chegasse uma papeleira portátil, e escreveu:

Francisco Xavier tem o prazer de cumprimentar a muito reverenda soror Paula do Santíssimo Sacramento, e, agradecendo em nome do seu irmão Paulo Xavier a distinção que s senhoria liberaliza a sua filha, vai ordenar sem detença que a menino se apresse a conhecer a digníssima senhora que tanto nos honra.

E, ao mesmo tempo, enviava o seu consentimento a D. Feliciana com expressa recomendação de forçar sua sobrinha, dado caso que ela tentasse desobedecer-lhe.

Abriu Paula a carta. Estava presente Catarina. Tremiam ambas. Leu-a mentalmente perfilando-se de modo que a sua amiga a não lesse ao mesmo tempo. E, lido o bilhete, exclamou:

— É um cavalheiro o Xavier! Olha... aí tens!... Vês como se vence tudo? é assim. As armas da mulher são as meiguices, quando os inimigos são homens; ora, se os inimigos são mulheres, então a arma eficaz é o tagante. Alegra-te, que amanhã tens aqui tua filha.

Catarina também parecia deletrear as palavras do escrito, afetadas e ironicamente cortesãs. Não obstante cerrou-se-lhe a alma de escuríssimas saudades, quando Paula a incitava a exultações. Luzia-lhe uma das auroras do passado — a primeira alvorada na casa de Montemor, quando ela da janela ogival viu dobrar a colina fronteira o gentil jovem, e se ficou vendo repontar o sol, alegre como as aves. Era feliz, tão feliz como se esposo, e não amante, lhe tivesse naquela noite nectarizado os lábios com os primeiros beijos. Ela amou... o amor, naquele retrocesso; mas, desde a primeira alvorada de Montemor, não se recordava de outra manhã sem as nortadas glaciais da alma. Depois, era o recordar-se das angústias e terrores da gravidez; do resfriamento do homem a quem pedia a fuga para salvar a honra e vida da sua mãe da Inquisição; da herança afrontosa de tantos antepassados seus ali queimados; da sua mãe ali, louca de pavor... e enfim do seu covarde amante, além, a cantar litanias, a contundir o peito, a missionar nas aldeias, a pedir a Deus que o salvasse, visto que ele, pela sua parte, deixava a justiça humana desassombrada no castigo da sua vítima.

Ah! ela também era injusta!

Devia descontar nas graves culpas do amante a unção com que o frade lhe dissera centenas de missas pela sua alma.

CAPÍTULO XVI

Naquele mesmo dia, a jubilosa Feliciana enviou a Odivelas portador com a feliz nova.

A menina leu o consentimento do tio, na presença de André Guilherme. Ainda balbuciou: «não quero ir»; mas o jovem, severizando o rosto, repreendeu-a entre amoroso e grave.

— Assim é que tu mostras que tens sabedoria e moral — aplaudiu a antiga aia da Duverger.

O estudante é que não formava o mais exaltado conceito da sabedoria e moral da sua tia. As fontes em que ela bebera os rudimentos da virtude não lhe pareciam mais límpidas que o palacete de madre Paula. O grémio das fidalgas onde ela se insinuara com a sua ciência da língua francesa, conjeturava o estoico jovem que eram meandros sujos a derivarem das fétidas alagoas de Afonso VI e Pedro II. E, dado que Heliodoro Pedegache, por mão da esposa, arpoasse grossa pescaria nessas torrentes lodosas, o rapaz olhava com secreto pejo para a prosperidade daquela família. E, quando lhe disse a tia que o marido talvez apanhasse o hábito de Cristo, o aprendiz de frade murmurava:

— Em que andanças envolvem Cristo! Porque não há de criar-se a cavalaria da ordem de Mafoma...

— Para quem?... — atalhou a tia abespinhada.

— Para os cristãos sinceros.

— Que frade!... — retrucou ela sarcástica.

Entrajaram a menina ricamente. Adereçaram-na com todas as louçanias; levaram-na a toucar-se no Auroy, cabeleireiro francês mais na voga; almiscararam-na, pintalgaram-lhe o rosto com pedacinhos de tafetá preto aos quais D. Feliciana chamava mouches.

— Olha como está linda, ó André! — disse a tia trazendo-lha pela mão.

— Vai bonita e coruscante! — afirmou o estudante com irónico sorriso — Parece a ninfa da comédia El encanto es la hermosura. Acautele-se, minha tia, que lha não pilhem por moura de auto, ou anjo da Procissão do triunfo!

— Forte azemel! Vamos, minha menina... — regougou a mestra.

E desceu a escada praguejando o rapaz por entre os dentes, e protestando desfazer-se daquele trambolho.

— Vou tão aborrecida! — disse Antoninha, quando o lacaio da tábua abria a portinhola.

— Logo se alegra assim que vir as senhoras freiras. Olhe lá se as cumprimenta com desembaraço, e se responde com graça e juízo às perguntas que lhe fizerem...

— Se eu souber...

— Pois não sabe? a menina, quando quer, é viva como azougue; mas se lhe dá para amuar, é mesmo uma aborrecida!...

— Então para que me leva a senhora? Deixasse-me estar com o Sr. André Guilherme, que eu estava bem.

— É o que eu digo... — pensou entre si a mestra — Se ela tivesse mais seis anos, não seria ele frade.

Quase sempre silenciosas, chegaram ao átrio do mosteiro. As três senhoras estavam por dentro das vidraças. Catarina, levada de impensado impulso, assim que entreviu a filha, saiu da janela rapidamente com destino a ir esperá-las à primeira sala.

— Psio! — sibilou Paula, retendo-a — Então que é isso? temos tolice?! Prometeste-me ser prudente. Estou a ver que te abraças à pequena, exclamando «minha filha!»

Espera que vamos todas; mas tu não representas, ouviste?

Saíram as três religiosas à sala de visitas, e por entre os resquícios do refegado reposteiro que abria para a sala de espera, viram entrar Antónia com timidez de acanhada, primeiro que a mestra.

— É a tua cara! — ciciou Maria da Luz, cedendo o lugar a Catarina para que a visse — Olha!...

— Que linda! — murmurou Paula.

— Como vem estrelada de pedraria! — observou a Perestrelo mais nova — Não a sabem vestir...

No entanto Catarina, amparada no umbral da porta, e ansiada, com os lábios entreabertos num riso imóvel de idiota, pasmava na filha, e enclavinhava as mãos trementes sobre o seio.

— Vai para a minha saleta com Maria da Luz, compõe esse rosto que se está desfigurando, e espera por mim, que lá vamos ter — disso soror Paula.

E entrando na sala, cumprimentou a mestra, beijou a menina, perguntou-lhe as puerilidades do costume, e conduziu-as devagar pelos vários repartimentos do palácio, detendo-se nas casas em que Antónia, com infantil curiosidade, se demorava reparando na ornamentação magnífica. Perguntou-lhe Antónia:

— As senhoras freiras daqui não andam de hábito?

Paula sorriu-se e respondeu que sim; mas que ela só vestia hábito quando ia ao coro.

Ao entrar na antecâmara, onde estava Catarina meio esvaída e reclinada no ombro de Maria, Paula conduziu a menina pela mão ao pé das duas, e disse:

— Aqui tem, Antoninha, duas freiras com hábito.

A menina cumprimentou-as com vivacidade, aproximou-lhes o rosto, beijou-a primeiro Maria da Luz na face, e depois Catarina nos lábios. Antónia olhou fixamente a freira, movendo os beiços, onde sentia a impressão ardente dos beijos que recebera. Não havia naquele olhar o mistério que as outras mentalmente aventaram. A pequena estranhara a compressão convulsa e a quentura húmida daqueles beiços.

Sentou-se a menina num divã entre a mãe e Maria da Luz. Abanava-se senhorialmente donairosa com o leque estrelante de lantejoulas de prata e ouro. Perguntou-lhe Paula se gostava do hábito das freiras. Reparou em soror Catarina, e respondeu lentamente:

— Esta senhora está muito bonita assim. Tenho no meu livro de missa um registro de uma santa que se parece com a senhora.

— Sim? — balbuciou Catarina tirando-a para si com irreprimível transporte, e beijando-a em ambas as faces.

Paula olhou para a irmã com um gesto significativo de receio, enquanto a menina parecia querer retrair-se à veemência das carícias.

Para distrair Antónia, perguntou-lhe Paula se tinha notícias do papá.

— Ainda não, minha senhora. Estamos à espera das naus da Índia. Cada dia parece-me um ano.

— Felizmente a menina tem seu tio, que é muito seu amigo...

Antónia não respondeu.

— É o que eu lhe disse, minha senhora... — interveio D. Feliciana, aludindo ao desafeto da educanda pelo tio.

— Que se passa? — perguntou Antónia.

— Digo eu que a minha menina deve ser grata ao extremoso amor que lhe tem o Sr. padre Xavier.

A pequena avincou a testa, como se quisesse repreender a mestra de sair-se com aquela impertinência em tal ocasião.

D. Feliciana murmurou, formando com os beiços um trejeito de zanga:

— Que génio!

Catarina encarou a mestra com ressentimento. Julgava-se já bastante mãe para defender a filha da rude censura da mestra. Paula sorriu-se, e Maria da Luz passou o lenço pelos lábios.

— Hoje, Sra. D. Feliciana — disse a Perestrelo — peço-lhe sueto para mim, visto que a minha condiscípula também tem sueto. Sou péssima educanda, não acha?

— V senhoria aproveita em vinte lições o que outras não conseguiriam em quarenta; e a sua condiscípula está no mesmo caso... Tem muita habilidade... Quer falar francês comigo para estas senhoras ouvirem, Antoninha?

— E estas senhoras sabem francês? — perguntou a menina, olhando para a mãe.

— Eu não sei, meu anjo... — respondeu Catarina.

— Nenhuma de nós sabe.

— Então não é bonito que falemos francês diante de quem não sabe; — disse Antónia — disse-mo o Sr. André Guilherme; e o meu tio padre, ainda há dias falando-lhe eu em francês diante do Sr. Heliodoro Pedegache, que não sabe, repreendeu-me... A Sra. D. Feliciana bem ouviu, pois não ouviu?

— É verdade; mas estas senhoras — replicou a mestra um tanto corrida da correção — bem sabem que nós não falamos mal delas.

Neste momento, na casa próxima, anunciou uma criada que estava o almoço na mesa.

— Ainda agora?! — disse Feliciana.

— A Catarina e Maria da Luz já almoçaram: eu tenho o mau costume de comer quando tenho vontade.

— Ainda agora sei que aquela senhora religiosa se chama a Sra. D. Catarina... — notou a mestra — Aposto que é a Sra. D. Catarina de Castro?

— Sou.

— Bem me diziam a mim, aqui há oito anos, que uma das mais lindas religiosas desta casa era V. Senhoria. Ouvi-o às senhoras Vasconcelos, da casa de Castelo Melhor, que foram minhas discípulas, e vinham aqui muitas vezes visitar suas tias, e gostavam muito de V. Senhoria. Não me enganaram.

Antoninha olhava para a senhora elogiada pela beleza.

— Que lhe parece, menina? — disse Catarina com um sorriso que parecia chorar — também me acha bonita?

— Muito, mas a senhora tem febre — respondeu Antónia sentindo no rosto o queimar da mão de Catarina, — e parece que tem os olhos cheios de lágrimas.

Estas palavras, pronunciadas com timbre de dó, abriram os diques às lágrimas. Rolaram-lhe as lágrimas a quatro, com grande arfar de peito e suspiros.

Ela cobria o rosto com as mãos, inclinando-se para a filha.

A criança contemplava-a com espanto. Maria da Luz passou para o lado dela, e pediu-lhe que saísse.

Ela obedeceu, erguendo-se de golpe, e deixando-se levar cingida pela cintura.

E Paula, para explicar verosimilmente o lance a D. Feliciana, disse que D. Catarina padecia insultos nervosos, quando lhe traziam à memória uma época da sua vida...

— Pois eu não sei, minha senhora! — interrompeu a mestra.

— Pois que sabe?

— Aquele triste caso do Santo Ofício... Logo que V. Senhoria proferiu o nome desta senhora, me ocorreram as ideias. Lembrei-me da prisão, que toda a gente disse que era uma intriga de infames inimigas, e também aquele outro caso das senhoras freiras saírem por aí fora, quando ela voltou absolvida como inocente... Pois tão pouco falada foi a tal passagem!

— Que foi? — perguntou Antónia.

— Coisas, coisas que a menina não percebe — respondeu a mestra.

— Vamos almoçar, sim, minha querida menina? — atalhou soror Paula erguendo-se. — Venha, Sra. D. Feliciana, tomar uma xícara de chá.

— Eu queria ver se a senhora D. Catarina está melhor disse a menina.

— Tem dó dela, meu amor?

— Ia a chorar tanto!... porque era?

— É doença, menina — respondeu D. Feliciana, e acrescentou de bom rosto: — Quer saber tudo. Eu vejo-me às vezes em apertos para lhe satisfazer as curiosidades próprias de uma senhora muito curiosa.

Passaram à casa de almoço. Antoninha sentou-se; mas disse que não podia comer nada. D. Feliciana, porém, começou por túbaras de carneiro com o propósito de passar aos miolos albardados, iguaria muito da sua feição, e terminar pela Olha francesa, prato também muito da sua feição, como quase todos os pratos bons.

— A Sra. D. Catarina não vem? — perguntou Antónia.

Paula disse a uma das três escravas que a serviam à mesa:

— Acompanha esta menina, visto que não quer nada, ao quarto da Sra. D. Catarina. Quer ir, filha?

— Sim, minha senhora.

A freira não receava as expansões de Catarina, logo que D. Feliciana as não presenciasse. Não previra tão oportuna oportunidade aos transportes da amiga.

A escrava subiu com a menina ao segundo andar, e disse fora do reposteiro de uma antecâmara:

— Está aqui a menina que quer saber se está melhor V. Senhoria.

Arremessou-se Catarina ao reposteiro, afastou-o de repelão para encurtar demoras, tomou a menina nos braços, como quem levanta um arminho, e disse à escrava:

— Vai-te embora.

Sentou-se, e pousou nos joelhos a pequena, que dava ares de receosa daquele insólito arrebatamento.

— Teve pena de mim? quis ver-me? então é muito minha amiga? é?...

— Sim, minha senhora...

— Qual queria, minha filha? estar comigo ou com a sua mestra?

— Eu?... estar aqui... Se o tio me deixasse... O meu papá, às vezes, levava-me a uma grade das freiras em Beja, e elas meteram-me lá dentro uma vez, e eu pus-me a chorar — dizia ela, rindo — porque era muito escuro, muito feio, e as freiras metiam medo. Aqui é muito bonito.

— O seu pai era muito seu amigo? — perguntou Catarina.

— Tomara eu que ele viesse da Índia. Hei de pedir-lhe que me deixe vir para este convento.

— Então quer ser freira, Antoninha? — disse Maria da Luz.

A menina fez um gesto de indecisão, e acrescentou: — O Sr. André Guilherme também vai ser frade da Santíssima Trindade.

— Quem é esse senhor André Guilherme?! — perguntou a mãe.

— É o sobrinho da mestra, ensina-me a escrever, conversa comigo, e eu sou muito sua amiga. Quando meu pai partiu para a Índia, se não fosse ele, eu morria de saudade. Assim que me via a chorar, levava-me consigo a passeio, contava-me histórias, e não queria que a Sra. D. Feliciana me mortificasse com os estudos...

— Mas não é mais amiga de... O seu tio?! — volveu D. Catarina.

— Não, minha senhora... Não fui criada com ele... não sei porque é... Tenho-lhe medo... Às vezes, tem-me no colo, e está a fazer-me festas, e de repente fica tão carrancudo que parece outro... Ai! quem me dera cá o meu papá!... Parece-me que o não torno a ver...

Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas.

— Não chore, minha filha... — acudiu Catarina, apertando-a ao coração — O seu papá há de vir, se Deus quiser... A Antoninha queria ter mãe, não queria?...

— Se eu tivesse mãe, era feliz como as outras meninas que eu encontro aos domingos de tarde a brincar na praça do Terreiro do Paço ou no jardim do Sr. D. Dinis Almeida, onde a mestra tem licença de ir, porque foi mestra das fidalgas.

— Morreu a sua mamã? — perguntou Maria da Luz.

— Morreu... — disse a menina com a voz e o rosto muito triste.

— O seu papá nunca lhe disse nada da sua mamã, nem seu tio? — volveu a Perestrelo.

— Não, minha senhora. A minha ama é que me dizia, quando à noite estávamos a olhar para o céu: «a sua mamã está a olhar para a menina daquela estrela». E eu agora já sou grande e ainda penso que a minha mamã está numa estrela maior que as outras; e pedia-lhe que me levasse para si, quando o meu papá me deixou em casa de D. Feliciana.

— Coitadinha! — soluçou Catarina, acariciando-a com arrebatada ternura.

— Não chore... — disse-lhe a criança — Está outra vez doente... Porque chora!...

— Podemos entrar? — disse Paula a uma distância bem calculada. Maria da Luz fez um gesto a Catarina, que sentou a menina na preguiceira ao seu lado, e limpou as lágrimas.

CAPÍTULO XVII

Era de esperar que D. Catarina, depois que Antónia lhe levou alegrias inesperadas, repartisse alguma parte da sua felicidade com Francisco Xavier, em frases de perdão, de estima, ou sequer de mulher que se carpia por não poder dizer àquela amada criança: «sou tua mãe!»

Ele esperava ao menos que D. Paula, agradecendo-lhe a cedência ao seu pedido, incluísse uma palavra da piedade ou do amor de Catarina.

Do amor! Se no amor se pudessem assinalar distâncias, o coração da freira desviava-se do pai de Antónia à medida que a paixão da filha recrudescia a dor de não poder revelar-se-lhe mãe.

— Porque — dizia ela a D. Paula — se este homem cumprisse a promessa de me levar de Portugal, eu, a esta hora, seria muito feliz com a minha filha. Foi ele que se fartou de mim, que fechou o coração de amante e recalcou a honra de cavalheiro quando eu lhe implorei que me salvasse, que fugíssemos, porque já não era eu só que fugia, mas também um filho que lá fora seria o meu maior prazer, e na pátria me seria a condenação. Ele era rico: porque o não fez? Achava-me já indigna da troca pelo irmão e pela pátria. Estava aborrecido. Pensava em enjeitar o filho, talvez, ou dar-lhe um pai suposto; e depois meter-me outra vez na clausura, e abafar o grito da consciência com os renovos de outras paixões. Cada dia, cada hora o detesto mais. É execrável este homem que não soube ou não quis ser pai, e me não deixou ser mãe! Deixasse-me, que eu sairia sozinha de Portugal, e iria viver com a minha filha no fim do mundo. Eu tinha uma tão santa mãe que me chegou a dizer: «venda-se tudo que temos, e vamos para qualquer país, onde ninguém nos conheça»; mas ele, o fementido, prometeu-me até ao momento em que a Inquisição me prendeu, salvar-me, por amor de mim e da sua filha! Nem sequer, aos vagidos da criancinha, soube ser homem e pai! Fez-se frade, como se Deus devesse aceitar o incenso de mãos sacrílegas, de um criminoso que sanava o crime desprezando uma criança e uma desgraçada mulher! Não me tornes a dizer que lhe escreva, Paula! Eu prefiro não ver mais Antónia à ignóbil violência de fingir uma piedade vergonhosa!

E o padre esperava ainda piedade ou amor!

E conversando com Antónia, perguntara ele:

— Ficaste gostando muito das freiras?

— Muito, meu tio.

— Igualmente de todas?

— Igualmente não; de quem eu gosto mais é da Sra. D. Catarina.

— Porquê? por ser a mais bonita? era a que te fazia mais mimos?

— Não é pelos mimos...

— Então?

— Fazia-me pena quando se abraçava em mim a chorar.

— E que te dizia?

— Nada... olhava muito para mim... e queimava com as mãos tão quentes que pareciam lume...

— Gostas então muito dela?... querias lã estar?

— No convento?

— Sim.

— Quem me dera! Se o tio quisesse...

— E elas querem-te lá?

— A Sra. D. Paula até me disse que havia de pedir ao tio que me deixasse ir lá passar a festa... não sei de quê... ah!... do abadessado... É muito bonito... Vão os fidalgos e os poetas fazer versos...

O padre cerrou-se no tal carrancudo silêncio de que a menina se queixou às freiras. Saiu a digerir um novo trago de fel que bebera nas palavras da filha, e dessa elaboração amargosa se lhe incrustou na alma, outra camada de ruins pensamentos.

Dizia ele de si consigo: «Bem sei o plano. Quer-me roubar de todo o afeto da, criança. É a extrema demarcação do ódio... Mas como é isto? Eu estremeço minha filha, dou-lhe tudo que pode agradar-lhe, há um ano que faço todas as diligências para lhe ganhar o coração; e ela parece que recebe com repugnância as dádivas e as carícias. Vai a Odivelas, vê pela primeira vez uma mulher desconhecida, e afeiçoa-se-lhe a ponto de querer ir para sua companhia, sem mostrar o menor desgosto em me deixar. O que pode haver providencial nisto? Nada. É o acaso, uma simpatia tão estranha à natureza como ao raciocínio. O que há é a sedução, a trama planejada de longe, a vingança com requintado egoísmo. Está enganada a sócia da madre Paula... Quem despreza o pai despreza a filha. Nem que ma pedisse com lágrimas eu lha daria... Não tenho mais nada neste mundo. É a minha tábua nesta grande tormenta. Tudo mais é a treva que se continua na perpétua escuridão do sepulcro. Sou rico e quero ser mais rico para a minha filha. Vingo-me da desgraça deixando-a feliz com uma grande barra de oiro debaixo da qual se esmagam os infortúnios e os inimigos. Que querem à minha filha? fazê-la freira? na escola de madre Paula? Nunca! Então que querem? roubar-ma para que eu, sem o amparo dela, acabe de morrer? Enganaram-se. Que me importa a amante do rei? Se eu desconfiar que se urde alguma intriga, fujo com a minha filha para Holanda. Eu comprarei bons espiões no paço, no Santo Ofício, e no inferno».

O padre expiou estas iniquidades na noite de tormentosa vigília que se seguiu àquele dia. Queria desafogar; e não podia desatar a mordaça. Faltava-lhe um homem a quem talvez contasse o mistério daquela menina... Era o médico Eliot. O conde do Rio, cada vez mais acrisolado em contrições, se lhe aparecia era para o consultar sobre melindres da teologia moral, subtilezas de escrúpulos, hipóteses de pecados que o velho queria levar bem ordenados e classificados ao tribunal da penitência. E, no tocante a freiras, isso então, se o padre balbuciava expressão apontada a profanidades monásticas, o general espalmava as mãos, entreabria os dedos, e com as palmas voltadas para o padre, pegava de as sacudir como se receasse ar empestado pelo bafejo do hóspede.

— Não me fale nisso, Xavier, a menos que não seja para me execrar as minhas enormes iniquidades! Conte-me casos de grandes pecadores convertidos. Repita-me a exemplaríssima penitência de Fr. António das Chagas, fundador do Varatojo...

— Que, primeiramente — interrompeu o padre — foi capitão de cavalos, chamou-se António da Fonseca Soares, matou um homem...

— E, arrependido...

— Suicidou-se no frade, e fez aspérrima penitência... escreveu livros místicos, etc.

— Veja que fim de vida.! — exclamou seraficamente o conde.

— Mas melhor seria tê-la começado melhor... O género humano e a moral lucrariam mais com a vida do homem que ele matou do que lucramos nós com os actos de contrição que aí andam estampados.

— Não o percebo bem!... Isso que v mercê disse cheirou-me a heresia, padre Francisco.

— Então expliquei-me mal, Sr. conde. Eu queria dizer que Fr. António das Chagas não restituiu a vida ao homem que matou.

— Isso é verdade...

— E, se a alma do morto, à míngua de sacramentos, caísse no inferno?

— Deus é pai de misericórdia. As orações do homicida penitente salvá-lo-iam.

— No inferno não há salvação... Ubi nulla redemptio: está escrito.

O conde pôs-se a cismar com um feitio de cara bastante compungido, e com vontade de argumentar; mas andava nos rudimentos da teologia; receava dizer heresias, e calou-se.

Quase quotidianamente havia destes conflitos no quarto do padre Francisco Xavier.

Ninguém o procurava, porque os seus amigos de outro tempo eram todos rapazes ainda, logradores da vida, que achavam curta para os deleites, e não queriam desbaratá-la com o ex-varatojano, torvo, taciturno e lastimável na sua miséria de aleijado e a modo de embrutecido. Uns alcunhavam-no de parvo, outros de hipócrita, como se lhe não bastasse ser desgraçado para o abandonarem.

Por isso, à míngua de fé esclarecida e paciência de santo ou de filósofo, no seio daquele homem fermentava um como ódio ao mundo e a si próprio. A filha poderia salvá-lo, ser-lhe esteio; mas quando lhe disse ele: «entra nas trevas do coração do teu pai, anjo!» dulcifica-me as lágrimas?

Por cúmulo de infortúnio, a piedade esterilizara-se-lhe na alma. As práticas frequentes com Isaac Eliot sobre assuntos da Reforma calcinaram-lhe as raízes da fé que tantos rebentos bracejara nas penhas de Varatojo. Lera Calvino na versão espanhola de Cypriano de Valera. Lera a Confissão de Augsbourg de Melanchton na tradução francesa. Tinha os livros condenados do médico huguenote no fundo de uma arca, e exumava-os de noite, quando não receava ser colhido de improviso pelo conde. E, a respeito da educação religiosa de Antónia, quando André Guilherme lhe perguntava que livros piedosos devia ler sua sobrinha, o padre respondia:

— Explique-lhe bem o preceito: amar a Deus e ao próximo. Toda a religião cristã, e todas as religiões verdadeiras se cifram nestas palavras.

Mas ele, o padre, não amava Deus nem o próximo.

CAPÍTULO XVIII

As cóleras surdas de Francisco Xavier não desfecharam explosão imediata. Conteve-o o temor de irritar Paula e enredar a filha na teia de vinganças que lhe urdisse o despique de duas mulheres assanhadas. Não obstante, recomendou particularmente a D. Feliciana que espacejasse de mês a mês as idas da sobrinha a Odivelas para evitar distrações nocivas ao estudo.

— Pelo contrário — obviou a mestra — enquanto a Sra. D. Paula estuda, também a menina recorda os verbos; e, depois, quando a freira começar a traduzir e a falar, a Antoninha lucra muito, conversando com uma fidalga tão esperta.

— Já disse, minha senhora; cumpra as minhas ordens, que eu represento o pai da sua educanda.

— Bem sei; mas o pai da minha educanda, quando se despediu de mim, disse-me a chorar: «não a constranja; dê-lhe todos os prazeres que não lhe causem dano à saúde». Ora, os passeios a Odivelas são do inocente agrado da menina, e até necessários à sua saúde. Portanto...

— Portanto cumpra as minhas ordens — repetiu o padre severamente.

— Ao menos, consinta V. Senhoria que ela vá uma vez por semana.

Neste comenos entrou Antónia, e Feliciana prosseguiu:

— Ó menina, peça ao tio que a deixe ir, ao menos, uma vez por semana a Odivelas.

— Então o tio não me quer deixar ir?! — perguntou Antónia com uma admiração prenuncia de revolta.

— Quer que vá uma vez somente cada mês — agravou a mestra.

Antónia, sem responder, foi sentar-se à mesa da escrita com as costas voltadas para os dois. O padre viu aquele movimento, abaixou os olhos, e apoiou a testa sobre as mãos.

— Então não pede, Antoninha? — instou D. Feliciana.

— Tanto se me dá de ir como de ficar... Não peço nada.

— Vem cá, menina — chamou amoravelmente o padre.

Ela ergueu-se ligeiramente e foi sem o encarar.

— Desejas ir muitas vezes a Odivelas?

— Sim, meu tio.

— Queres ir de quinze em quinze dias?

— Como vossa mercê quiser.

— Pois vai, vai, filha; mas não troques teu tio pela amizade de ninguém. Olha que neste mundo ninguém te quer mais que eu.

Antónia suspirou do íntimo do peito.

— Porque suspiras?

— Lembrou-me meu papá.

— Aqui tens uma carta dele.

Cintilaram áscuas de júbilo os olhos da menina. Leu duas dúzias de linhas de um fôlego; mas, no fim, rebentaram-lhe as lágrimas. O último período dizia: A minha saúde, aqui, é péssima. O tio te dirá que mando pedir licença para me retirar antes dos três anos. Sei que não te faço falta, minha filha, mas não quisera morrer sem te dar o meu último suspiro num beijo.

— Não chores, filha; que na primeira nau que sair vai a licença que teu... pai requer — disse o padre, abraçando-lhe a cabeça e beijando-lhe os cabelos louros. — Olhe, Sra. D. Feliciana, não lhe tome hoje lição. Eu vou mandar-lhe a minha sege, logo que chegar a casa. Vão dar um passeio até Xabregas.

— Eu não queria sair... — atalhou Antónia.

— Vai, filha...

— Antes quero ir rezar uma coroa à Virgem Nossa Senhora para que dê saúde ao meu pai.

— E que lindo rosário a menina tem! Apetece rezar por ele! Já o mostrou ao seu tio?

— Ainda não.

— Vá buscá-lo... Deu-lho a Sra. D. Catarina de Castro. É o objeto mais lindo!

Voltou Antónia com um rosário de contas de variadas cores; umas pedras eram azuis, safiras orientais radiadas de filamentos lácteos; outras escarlates, rubis do Brasil e granadas da Síria; sobressaíam pedras verdes, esmeraldas do Peru, e crisóprasos, de um verde claro; amarelejavam os topázios, as águas marinhas junquilhas. Os padres nossos eram pequenos diamantes cravejados em lhama de prata que envolvia uns esferoides de ónix de Islândia. O crucifixo era de ouro, uma miniatura primorosa, com a Senhora das Dores, sentada na peanha da Cruz.

O padre conhecia o rosário: era o único enfeite que a religiosa pendia do colo nos dias festivos do convento. Sabia que, desde o reinado de D. Manuel, aquela preciosidade existia na família dos Pinas, e andava estimada em grande valor nos sucessivos inventários da casa.

— Não é uma rica prenda? — perguntou D. Feliciana ao padre, que se demorava absorvido nas recordações com o rosário entre as duas mãos.

— É... — respondeu; e no silêncio da alma retransida de dor, pensou: «Mal diria eu... que nove anos depois veria estas contas na mão da minha filha, e me veria a mim nesta desesperada situação!...

E, dando o rosário à menina, continuou:

— Vai rezar, filha, vai; pede ao senhor por teu... pai!

— E pela alma da sua mamã — acrescentou a mestra. — Eu tenho-a ensinado a rezar por alma da mãe: que a menina, quando veio para a minha casa, nunca rezava por tão sagrado motivo, e disse-me que ninguém lhe ensinara a rezar por ela. Eu fiquei sem a minha há vinte e dois anos, e nunca passou um dia que eu não encomendasse a Deus a alminha da minha mãe e do meu pai.

— Ó meu tio — perguntou Antónia, entre risonha e triste — a minha mãe era bonita?... Vossa mercê viu-a, não viu?

— Era... sim... — respondeu o padre fitando-a com grandes olhos, imóveis como os de um cego de amaurose.

— Devia ser muito linda — conjeturou a mestra — quem deu ao mundo uma beleza como Antoninha!... Que esta menina também tem muitas avultações da família paterna... O feitio do rosto, a testa e a covinha na barba tem alguma coisa de V. Senhoria e do pai... Coitadinha! bem cedo ficou sem mãe!

Francisco Xavier, levantando-se com ímpeto, porque as lágrimas lhe envidraçavam os olhos, deu um ai agudo, ao roçar violentamente no rebordo do aparelho, onde engastava a coxa mutilada, a tuberosidade ciática. Esta dor física espertou-lhe muitas angústias morais. Recaiu outra vez na cadeira e chorou largo tempo, com o rosto amparado nas mãos.

Antónia aproximou-se do padre, e lançou-lhe os braços ao pescoço com extraordinária ternura, murmurando:

— Não chore, assim, meu tio...

Ele então, sentindo-se acariciado pela criança, puxou-a para o peito, tomou-lhe entre as mãos trementes o rosto, e ungindo-lho das lágrimas que o estrangulavam em soluços, balbuciava:

— Tens compaixão de mim, tens, Antónia?

— Molestou a perna? — perguntou D. Feliciana. Quer V. Senhoria que eu mande chamar o cirurgião?

— Muito obrigado, minha senhora... Felizmente chega o Sr. André para me ajudar a descer até à sege.

André Guilherme amparou-o ao Levantar-se. A menina acompanhou-o até à rua; foi dentro da carruagem dar-lhe um beijo; e, voltando melancólica, disse a D. Feliciana que tinha muita pena do seu pobre tio.

O chorar, no mal-acompleicionado bisneto de Maria Isabel Traga-malhas, não deixava a alma defecada dos sedimentos que as lágrimas diluem. Parece que o pejo de chorar lhe azedava a hipocondria e pesava sobre o espírito um maior gravame de tristeza que disparava em frenesis e fúrias manifestadas no sacudir vertiginoso dos braços. Queimavam-no as ardências dos trinta e um anos. Raivava contra a providência que iniquamente o abatera àquela desgraça estúpida, inerte, indigna sequer da compaixão pública em que muitas infelicidades se estejam e resignam.

Na solidão dos seus aposentos, o padre, soberbo das maviosas carícias da filha, voltou a cismar no plano de lha roubarem. Pois que a viu compadecida, com maior amor e avareza a queria fechar no seu coração. As perguntas de Antónia a respeito da sua falecida mãe — perguntas nunca feitas — quem lhas sugerira? — pensava Xavier. — Dir-lhe-ia Catarina algumas coisas com o propósito de ir encaminhando a declarar-lhe que era sua mãe? E, se viesse a declarar-se — inferia o padre — o coração de filha, que já se mostrava tão inclinado àquela senhora, seria todo da mãe. E que faria ele então? queixar-se! a quem? Proibi-la de ir ao mosteiro? obrigar pelo terror a menina a calar o segredo? Mas quantas desventuras envolvidas nessas hipóteses! Afinal, Catarina sairia infamada da luta, e ele execrado pelos virtuosos, escarnecido pelos libertinos, e, sobretudo, odiado da filha.

Nesta relutância de encontrados sentimentos, decorreram algumas semanas, durante as quais, a menina, abusando da licença, foi ao convento todas as quintas-feiras. Francisco Xavier adoecera. Antónia visitava-o com André Guilherme; queria falar da freira; porém o cauteloso padre, na presença do estudante, desviava noutro rumo a conversa, receando exaltar-se ou interessar-se estranhamente.

Entretanto, a solidão e a ociosidade iam lavrando o rastilho da cratera. O homem não se descia da hipótese pior: — que as duas freiras conjuravam em lhe roubar a filha.

Pedira-lhe Antónia licença para assistir às festas do abadessado.

— Vá — disse Francisco Xavier, acrimoniando o monossílabo com um tratamento em terceira pessoa, que nunca lhe dera.

A menina foi, e ficou três dias e três noites no convento, se devemos considerar domínio claustral das bernardas o palacete da madre Paula. Pernoitava no leito de Catarina, e adormecia-lhe reclinada no braço direito. Espertava sob a pressão dos beijos, e às vezes sentia no rosto a humidade das lágrimas. Na terceira manhã, ao descerrar as pálpebras, viu a sua querida freira em joelhos, sobre os degraus da escadinha do leito, curvada para ela: sentia nas faces o hálito quente. Sentou-se, estrouvinhada e assustada, na cama. A mãe cingiu-a a si impetuosamente, dizendo-lhe em segredo:

— Não queiras ir hoje, não? olha, Antoninha, diz a D. Feliciana que queres estar até amanhã, sim?

— Mas o tio... se ralha à mestra... e não me deixa cá voltar... — reflexionou a criança magoada.

— Tens razão... — anuiu D. Catarina — Vai, filhinha... para voltares na festa do oitavário.

Àquela hora, Francisco Xavier esbravejava contra a mestra, porque deixara sua sobrinha no convento. Defendia-se Feliciana com a licença impetrada pela menina; e ele replicava que não se lhe tinha pedido consentimento para pernoitar no harém d’el-rei.

Feliciana abriu a sua boca escandalizada, e regougou:

— No harém! credo!... Bendito seja Deus, nem estamos na Turquia, nem o Sr. D. João V é imperador de Marrocos! Vossa senhoria desatrema, Sr. padre Francisco!... Deus me livre que o ouvissem!...

Estas palavras vibraram-lhe as cordas do medo. Não lhe sobrava dignidade, nem caridade, nem coragem. Vociferava insolências, e absorvia logo a bílis com medo ao rei, aos frades domínicos, ao sequestro, ao cavalete, e principalmente à perda da filha. Martirizava-o aquela criança, balançando-o da petulância à covardia.

— Peço-lhe que não faça caso destas expressões rudes — dizia ele à mestra — As minhas doenças exasperam-me...

— Pois, sim, sim, coitado! Eu bem vejo que o Sr. padre Francisco Xavier tem o coração de um anjo; mas as dores do corpo bolem muito com o génio das pessoas... Diante de mim pode desabafar como quiser. Quanto à menina, vou logo buscá-la, apesar de ontem me pedir a Sra. D. Paula que a deixasse ficar até amanhã.

— Não pode ser! — acudiu o padre — não pode ser!...

— Pois bem, bem... quem governa é vossa senhoria.

— E não ma leve lá estes quinze dias...

— Nem na festa do oitavário? É muito bonito então, porque voltam lá os poetas, e há motes.

— Que lhe importa à minha sobrinha poetas e motes, não me dirá?

— Pois olhe, quer creia quer não: a menina me disse ontem que gostava muito de ouvir as décimas do Tomás Pinto Brandão, que faziam escangalhar tudo com riso!

— Como lá se divertem! — murmurou o padre, em ar de o dizer a si mesmo — Como 14 se divertem!...

— Ora, se divertem! — confirmou a mestra — Há lá gente mais regalada que as freiras de Odivelas! Que lhes falta! só se for sarna para se coçarem. Ali vai tudo quanto há bom em Lisboa. Ontem estava o terreiro a trasbordar de fidalgos, e as janelas cheias de senhoras. A menina, de janela em janela parecia doida de alegria; e a Sra. D. Catarina Castro parecia uma criança a brincar com ela.

— Alegre? — disse o padre.

— Quem?

— Essa senhora...

— D. Catarina?

— Sim.

— Pois então! Já não é a mesma. Era da cor desta parede, e parece uma rosa. Estava para ali sempre amoixada nas almofadas, e agora salta que nem um passarinho. Diz a Sra. D. Paula que a menina a tirou do seu sério fazendo-a brincar e correr. Muito amigas são! Estão sempre abraçadas uma na outra... Coisa assim!... Eu acho que é ela que prende a menina. Como nunca sentiu os carinhos de mãe, penso eu, a criança regala-se de ser ameigada por aquela linda senhora, não lhe parece, Sr. padre Francisco? Esta é a opinião do meu sobrinho André; e ontem disse ele umas palavras muito acertadas... Deixe ver se me lembro... ah! disse ele que Antoninha era áspera e um tanto dura de génio, e que as carícias delicadas de uma senhora tinham de amaciar-lhe o temperamento muitíssimo, acha ele.

Francisco Xavier escutava reconcentrado, e sentia espessar-se a escuridão lá no íntimo.

— E que acha o senhor? — prosseguiu a palreira senhora.

— O quê? — disse o padre, acordando.

— Dizia eu... — propunha-se repetir a opinião de André aumentada.

— Ah!... sim... dizia a senhora que no convento vai grande alegria...

— Lá me pareceu que a vossa senhoria não estava aqui... — disse sorrindo D. Feliciana — Eu estava contando o que disse meu sobrinho...

— Ouvi — atalhou o padre carranqueando-lhe um daqueles gestos capazes de estagnarem a torrente palavrosa de Feliciana.

Depois, para não expelir mais longe o jacto da atrabílis, o padre ergueu-se, cortejou a mestra, e saiu apoiado ao corrimão da escada, raspando rijamente nos degraus com a ponta ferrada da perna artificial.

— Valha-te o diabo, manco! — responsava-o a velha, quando ele, em boa correspondência mental, ia dizendo consigo:

— Eu me livrarei de ti, quanto antes, canalha!

CAPÍTULO XIX

Desde este dia, começou o padre a destemer parte dos receios que o constrangiam a consentir nas visitas de Antónia ao mosteiro. Pensou em estabelecer-se e levar para sua companhia a filha. Era, ao seu ver, um corte radical. O conde do Rio, em nome da sua amizade, ainda conseguiu detê-lo irresoluto alguns dias; mas, na correnteza dos últimos sucessos, chegou de Roma o doutor Isaac Eliot, a quem o padre comunicou o plano de residir nalgum dos seus prédios de Lisboa, a fim de ir criando à volta de si uma família que lhe florejasse os ásperos matagais da velhice.

— Quem fala em velhice aos trinta e um anos? — disse o médico — A sua velhice, meu amigo, parece-me fantasia como a de um padre arranjar família.

— Pois não tenho uma sobrinha?

— Ah! não me lembrava a criança!... então é ela a presuntiva colonizadora dos seus futuros matagais? Quando verei eu a colónia!... Faz muito bem, doutor. Quando mais não seja, sua sobrinha há de alegrar-lhe a vida doméstica e destecer-lhe o véu negro que lhe esconde as coisas belas desta vida, que não é de todo feia...

Deter-nos-emos algum espaço a desenhar a vida como ela se coloria e variegava no prisma daquele meio-francês e meio-muçulmano.

Alguns meses depois que se estabeleceu em Lisboa, Eliot foi a França, e voltou depressa com uma dama daquele país. Saiu com ela a público em sege própria, parou à tarde no Rossio onde confluíam os faceiras e ainda os homens de maior porte. Os seus amigos, todos das raças finas, cumprimentaram a francesa, que se fazia valer pela cara e estranho garbo. Eliot era o intérprete dos curtos diálogos das apresentações.

Naquele tempo a ciência da língua francesa andava tão descultivada, que mais de três anos um professor de línguas, chamado Villeneuve, anunciou na Gazeta, que se iria embora de Lisboa, se dentro de um mês não arranjasse seis discípulos. E nunca os arrolou; mas também deixou-se estar para fazer pirraça aos portugueses com o repetido anúncio que aí ficou estampado para morredouro condenado da nossa ignorância linguística no século XVIII. Creio, porém, que Villeneuve arredondou os seis alunos depois que madame Eliot, não avara na exibição das Ligas, pulava da caleche no terreiro do Rossio, e dava seus passeios, boleando-se de quadris, e picando o passo com certa desenvoltura que as senhoras sérias, untuosas e esparramadas de Lisboa viam de esguelha, acotovelando os maridos menos escarlates do pudor.

Diziam uns que a forasteira era legítima consorte do médico, outros negavam; todos, porém, procediam com igual cortesia no trato de tão donosa criatura. Eliot, quando apresentava a francesa, escusava-se de dar explicações que ninguém lhe pedia; ela, pela sua parte, mostrava-se desempeçada do acanhamento das situações equívocas; parecia uma esposa com todos os cânones da legalidade social e sacramental.

Todavia a um homem, único em Lisboa, confidenciara o herege e concubinário, que não era casado com a francesa. O padre Xavier sabia o pecado; mas indultou-o visto que o escândalo dependia da ciência do delito; e a confidência, fora do confessionário, que ele não exercitava, obrigava-o a tolerar e calar.

Historiando os seus amores, dizia Isaac Eliot que, indo a França várias vezes, se deixara escravizar daquela mulher, que era manceba de um duque, e de família muito ilustre na Picardia. A francesa, com o seu savoir-vivre, e o savovir un peu son monde, não o desmentia; e o tom familiar com que ela, relatando casos de altos personagens de Paris, denotava sociedade seleta, foi muito na graciosa aceitação que algumas casas titulares lhe deram, talvez de plano para obrigarem o médico.

Sem dúvida, madame Eliot conhecia a vida anedótica do reinado de Luís XIV e noviciara o seu tirocínio nos primeiros anos da Regência. O apaixonar-se pelo filho da moura e desligar-se do duque tem uma explicação que a nobilita. Queria regenerar-se pelo amor, e amou o galante rapaz. Quis honestar a sua virginal paixão, e rendeu-se-lhe sob promessa de casamento. No propósito de casar-se, ia Isaac a Paris quando em Corfu os portugueses o negociaram. E, como a fortuna lhe bafejasse em Lisboa, onde com estrangeiros a brisa era sempre de servir, mormente se vinham de França e estanciavam cá onde reinava o macaco de Luís XIV, Eliot mais ufano se foi a conquistar o velo que nem era de ouro nem de Gedeão pela pureza. Quanto a casamento, porém, os indissolúveis laços diferiu-os ele para Lisboa, onde lhe convinha, a um tempo, apostatar de heresias calvinistas, e dar público testemunho da sua religiosidade sem ervilhaca, matrimoniando-se catolicamente.

Se o francês perjurou a palavra dada, os créditos de madame Eliot conservaram-se abonados pela descuriosidade da opinião pública. A sociedade transige, enquanto pode alegar ignorância e observar o pacto da honra convencional. Guardem-se as aparências do decoro; que o mais cada qual sabe de si e Deus de todos: é a máxima eterna da eterna corrupção.

O padre Francisco Xavier pensava no caso, espantava-se da facilidade e familiaridade com que algumas damas da flor da nobreza tratavam a forasteira sem lhe indagarem da procedência, e concluía que a mulher infame não só é a que é infame, mas a que dá ares de o ser. Às vezes, por muito afeiçoado ao médico, observava-lhe que teria sido melhor abster-se de sair à praça com uma companheira equívoca e dar azo a que lha considerassem como esposa; porque, se um dia, ele por conveniência de mais legítimo consórcio ou por enfado, e ainda por motivos de perfídia se desligasse da francesa, as famílias, que a receberam, tinham de levar-lhe a mal o ardil do silêncio.

A isto replicava o herege com o cinismo de muito acreditados católicos daquele tempo:

— Eu reservo as explicações para quando o duque de Cadaval ou o marquês de Gouveia ou o conde de Tarouca me soprarem a dama.

Estes três fidalgos, useiros e vezeiros na caça de aves arribadas, eram os mais devassos da corte de D. João V, cunhado do primeiro.

Nada obstante, a pedido do cardeal Nuno da Cunha obteve Isaac Eliot o hábito de cavaleiro professo na ordem de Cristo, Não se persuadam que seria fácil e insignificante a mercê. O Cavalheiro de Oliveira encarece esta coisa que hoje em dia apenas engoda as aspirações cavaleirosas do regedor de paróquia rural. «Os reis de Portugal, diz o celebrado escritor, fundaram, desde certo tempo, uma espécie de veniaga com os que não podem ser cavaleiros, conforme o direito: inventaram uma dispensa. E o certo é que tem havido récovas de sandeus que, esporeados pela vaidade de exibir uma fita escarlate ao pescoço, a compram caríssima, obrigando-se a descontar em dinheiro de contado os graus de fidalguia que lhes faltam. Há dispensas de dois, quatro, seis, dez mil cruzados; e já vi subir tais dispensas até vinte mil cruzados. É tão despótico o poder do rei de Portugal, que, sem prévio informe do tribunal das Ordens, e até sem dispensa, dá ele o hábito de extraordinário modo, pondo-o com as suas próprias mãos no pescoço das pessoas que quer nobilitar. É todavia tão raro isto que, se me pedissem exemplos, eu apenas poderia citar dois ou três».

Um dos dois ou três exemplos era o cirurgião-mor do exército, Isaac Eliot, armado cavaleiro sem dispensa, pela própria mão do monarca.

Decorridos alguns anos, quando os achaques apodrentavam as carnes estafadas do rei, e a ciência disputava primazias ao milagre à cabeceira do monarca enfermiço, os cirurgiões mais conhecidos lograram entrar na Ordem de Cristo. Um viajante que nos visitou em 1723, escrevia: Le roi et la plupart des grande seigneurs et des fidalgos, portent l'ordre de Christ, qui est néanmoins tellement avili que l'on voit plusieurs officiers subalternes, même des marchands, des commis, des chirurgiens, etc.».

Este viajante, se viesse a Portugal vinte anos depois, que diria vendo D. João V a armar cavaleiros de Cristo os banheiros que o baldeavam à tina nas Caldas da Rainha?

Encadeavam-se os lances da fortuna cega na prosperidade de Eliot.

No ano de 1723 lavrou em Lisboa uma formidável peste que, em poucos dias, matou seis mil pessoas. Era a febre amarela. Votaram uns médicos pelos derivativos, outros pela sangria; mas tanto os purgados como os sangrados todos pereciam. Salvaram-se, porém, os empestados a quem Eliot medicava. Voga a notícia. Alvoroça-se a capital. Tumultuam à porta do francês e à volta da sua sege as multidões consternadas. Não pode o salvador acudir a todos os enfermos; mas magnanimamente avia uma receita universal: leite de burra. E com leite de burra se apaga o incêndio da febre os atacados convalescem, preservam-se os ilesos, e à volta de poucos dias, a peste já nem sequer faísca na capital ressurgida do seu letargo.

D. João V remunera então o cavaleiro da Ordem de Cristo com uma tença de duzentos mil réis. Esta verba ainda assim montava pouco na ganância do famoso médico. Enriquecia-se e simultaneamente desbaratava-se em pompas. Assoldadou pajens, e comprou escravos. Os seus lacaios eram negros, e vestiam fardas de fantasia. O seu pajem particular, também francês, distinguia-se pela bizarria dos trajes estrangeiros. Acompanhava-o à estribeira raspando com a anca dos soberbos cavalos os transeuntes nas ruas estreitas. A caleche de Isaac Eliot estremava-se por uma Vénus calipígia pintada na popa, obra de execução acabada em primores de artista lúbrico. E não era das mais indecentes que se alardeavam nos passeios do Rossio e do Paço. Ao propósito desta e de outras, invetivava o contemporâneo padre Manuel Bernardes... «Há de ir um fidalgo na sua calega passeando, e desde a popa dela, como se fora de uma nau de guerra, há de ir disparando tiros de escândalo a quantos empregarem ali os olhos?... »

CAPÍTULO XX

Francisco Xavier, aplaudido por Eliot no desígnio de assentar a sua residência em casa própria e continuar aí a educação da sobrinha, foi ocupar um dos seus prédios na rua do Outeiro, freguesia dos Mártires. De antemão, se proveu de mestre idóneo para Antónia, convidando com elevado estipêndio e por intervenção do médico, um clérigo francês, chamado De Preville, que se anunciara professor de línguas e filosofia.

Estas miudezas prendem com a veracidade de um processo que ao diante enlutará as páginas desta narrativa..

Agravavam-se de dia para dia os ciúmes e medo do padre. Catarina cativava-lhe a filha no mosteiro com pretextos de festas e com o engodo das carícias. Antónia ia tão agitada e alegre para o asiático palacete de madre Paula, que já se enfadava se a mestra lhe antepunha a vontade repugnante do tio.

No mosteiro, como era de esperar, lavrava a intriga por amor da menina; e, ao divulgar-se que ela era filha de Paulo Xavier, irmão do galã de Catarina, a maledicência gozou o triunfo raro de ser verídica, computando os tempos, calculando a idade da pequena pela saída da Muleirinha, destrinçando feições, e tirando a limpo, enfim, que Antónia devia ser filha de Catarina. Não era caso para grandes assombros, nem a fecundidade de mim monja cisterciense era fenómeno. Muitas freiras andavam apontadas como filhas de outras; e lá estava a organista D. Teresa de Milão que passava por ser produto uterino da celebrada soror Feliciana de Milão e de Afonso VI: calúnia desmentida pelo testemunho da própria rainha, e de outras senhoras ilesas, no processo que julgou Maria Francisca d'Aumale, digna de outra casta de marido. Não foi isso, porém, impedimento às intriguistas energúmenas do ódio velho, acaudilhadas pela Pimentinha.

Mas a honra do convento abafava os rumores adentro da clausura, e também o medo a Paula Perestrelo despontava os farpões da língua mordaz de D. Francisca Melo. A amante d’el-rei ungiu os pulsos para o pugilato, logo que as impaciências maternais de Catarina abriram brecha às suspeitas. Baldada a prudência, recorria às retaliações.

Segundo se desprendia da sua Lista do auto-de-fé para 1724 — à feição da amostra que o leitor viu — não havia em Odivelas freira honrada menor dos cinquenta e cinco anos. Injustiça e exageração, talvez.

Entretanto, Antónia e a sua mestra continuavam semanalmente duas vezes a sua visita ao paçozinho monástico a uma dessas visitas concorreu o médico Eliot, especialista em histerismos e muito feliz nos de D. Paula. Como visse Antónia com soror Catarina na câmara da histérica, maravilhou-se das purpurinas cores da menina e da vivacidade sadia da freira. Conversou em francês com Antónia, fez-se entender de Paula, felicitando-a pela sua rara compreensão, e contou que o tio da menina andava alfaiando ricamente a sua casa da rua do Outeiro, para onde tencionava ir morar com a sobrinha.

Esfriou e alvejou como mármore o rosto de Catarina. Paula, inquieta, e receosa, forcejava por desviar da sua amiga a atenção do médico.

— Quer ir ao jardim, Antoninha? — disse a Perestrelo — Vai tu com ela, Catarina, que eu vou expender os meus flatos ao doutor.

Saíram. Poucos passos andados, Catarina abraçou-se na filha, dizendo-lhe que talvez fosse aquele o último dia em que se viam.

— Porque me diz isso, minha senhora? — perguntava Antónia.

— Porque teu tio não te deixa cá vir mais... Tu vais viver com ele; e depois... quem te há de cá trazer, minha filha?

A menina respondeu com lágrimas, aconchegando-se ao seio da religiosa; porque naquele momento compreendera que a renitente má vontade do padre contra as suas visitas ao convento explicava a inesperada saída para a companhia dele. Além disso, era a primeira vez que ouvia o mavioso tu, expansivo e impensado, dos lábios de D. Catarina.

— Não te vejo mais, não te vejo mais! — exclamava a religiosa, afogada por soluços, ajoelhada ao pé da filha, reclinando-a nos braços, beijando-a, embalando-a como as mães doidas de amor fazem às filhinhas feridas de doença incurável.

— Então eu não volto aqui?! — perguntava Antónia acariciando entre as mãos o rosto de Catarina.

— Não voltas, não, Antoninha, meu querido amor do coração! Não me tomas a ver, porque ele... O teu tio, para que não voltes cá, vai tirar-te de casa da mestra, e leva-te para si...

— Não que eu não vou!... — acudiu energicamente a menina.

— Não vais? não vais, minha filha? Então que fazes tu?

— Digo que não tomo a sair de cá, se as senhoras me deixarem ficar. A Sra. D. Catarina quer que eu fique?

— Quero, filha, quero! — exclamou a mãe, rindo e chorando — E tu deveras queres ficar comigo, Antoninha?

— Tomara eu... O papá, quando vier da Índia, não me ralha.

— Mas se ele...

— O tio?

— Sim... se ele te obrigar...

— Ele não me bate... — replicou a menina, definindo pelo lado mais pueril e tangível a hesitação da religiosa.

Neste momento chegou D. Feliciana com Maria da Luz, trazendo cada uma seu ramilhete dos canteiros do terraço. O médico saíra ao mesmo tempo, e D. Paula mandara procurar Catarina para, sozinhas, se combinarem no modo de cativarem Francisco Xavier.

— Para quê? — perguntou Catarina.

— Que pergunta! Pois não percebes que o Xavier põe casa para subtrair a pequena da companhia da mestra e da tua?

— Percebi, e então?

— Então é preciso que o Xavier não proíba a filha de cá vir.

— E se Antónia não quiser sair da minha companhia? — perguntou ufanamente D. Catarina — Que há de fazer ele?

— Eu sei lá o que ele fará, minha pobre Catarina! Escândalo te assevero eu que temos.

— Deixá-lo... Aceito tudo, menos o teu desafeto, minha querida Paula, e a perda da minha filha. Achei-a... Tenho-a... Amo muito menos que a ela os meus créditos e a minha vida. Que me importa o escândalo e a desonra? Protege-nos tu, e não me lastimes se ouvires que me insultam aqui e lá fora. Não consintas que me roubem a minha filhinha, não, Paula?

E, pondo as mãos, quase dobrava os joelhos diante da poderosa amante de D. João V.

— Ó doida! — dizia com extremado carinho soror Paula, apertando-a nos braços, e levantando-a da postura suplicante — pois será preciso que me peças proteção? Que faço eu senão amar-te desde que sou metade da tua alma, e sinto, como se fossem minhas, as tuas alegrias?... Queres tu que a tua filha fique connosco? Pois que fique.

Fechemos os olhos. Se hão de vir desgostos, deixá-los vir. Eu cá estou ao lado do teu coração. Que pode acontecer? Pensemos...

D. Feliciana, neste comenos, mandava perguntar a D. Paula se a sua senhoria estava disposta a dar a sua lição, porque era hora de sair.

— Que entre — ordenou a freira.

Catarina receava pedir à sua amiga que Antónia ficasse no convento desde logo.

— Já sabe — perguntou D. Paula à mestra — que o Sr. padre Xavier está mobilando casa onde vai morar com a sobrinha?

— Não, minha senhora... — respondeu D. Feliciana espantada. — Eu não sei nada!

— Saiba pois — prosseguiu a freira — que tanto a senhora como nós vamos ficar sem a nossa Antoninha!... Tem pena de nos deixar, anjinho? Leva saudades das suas três amiguinhas do convento?

— Eu já disse à Sr. D. Catarina — respondeu Antónia a ponto de chorar — que se as senhoras me deixassem cá ficar... eu não ia...

— E era muito bem feito castigar assim o tal manco! — obtemperou a retrincada preceptora. — À espera disto já eu estava... Ele, a última vez que lá foi a minha casa, esteve a conversar com o meu sobrinho André, e a perguntar-lhe coisas a respeito da educação da menina, pelo sistema de um certo padre francês que por aí anda a ensinar umas pantominices pelas casas. Por sinal que o meu André me disse depois que o padre queria dar à sobrinha demasiada sabedoria. Mas o que isto é sei eu... Quer-me tirar a menina porque eu fui a causa de ela vir ao convento, e tenho continuado a trazê-la todas as semanas contra vontade dele. O padre, seja lá pelo que for, não gosta das vossas senhorias. Encasquetou-se-lhe na coroa que esta menina...

— Diga... — incitou soror Paula, curiosa de decifrar as reticências — que esta menina...

— Afagada por vossas senhorias, se afeiçoaria a alguma, como acontece às crianças que não conheceram as carícias maternais; e lhe perderia a ele, de todo em todo, o afeto.

— Disse-o ele? — instou D. Paula..

— Não, minha senhora... O meu sobrinho é que tem lá estas ideias, e explica deste modo o amor da menina à Sra. D. Catarina, quando ela, em vez de escrever o traslado, lhe está contando ao meu André Guilherme as palavras amorosas que as senhoras lhe dizem...

D. Catarina chamou com um gesto a filha, sentou-a no regaço, e segredou-lhe por entre beijos sôfregos:

— Não queres ir?

— Não, minha senhora.

— Ouve? — indicou Paula à mestra — Diz que não vai.

— E eu estimo isso muito — condescendeu D. Feliciana — Ensine-me agora Vossa Senhoria o que hei de eu dizer ao tio... Sim, no caso que ele esbraveje, que hei de eu dizer-lhe?

— A verdade: que a menina ficou em companhia de D. Paula Perestrelo, por vontade de ambas; e acrescente que eu particularmente lhe escreverei, solicitando a licença que a sua delicadeza não há de recusar-me.

A mestra, chegado o momento de sair sem a educanda, ponderou a gravidade do caso, e temeu as iras de Francisco Xavier. A razão reprovava-lhe a condescendência ao capricho das freiras e à criancice de Antónia. Visivelmente hesitante, quando a menina lhe pedia que mandasse vê-la ao convento o Sr. André Guilherme — única saudade que lhe aguava as alegrias — D. Feliciana pediu à freira d’el-rei que escrevesse duas linhas ao padre, duas palavras que a desculpassem.

— E quer esperar? — disse Paula. — Pois, espere, que eu vou escrever ao Sr. padre Xavier.

CAPÍTULO XXI

A precatada mestra, para esquivar-se ao conflito, incumbiu o sobrinho de procurar Francisco Xavier em casa do conde do Rio, e entregar-lhe a carta da freira.

André Guilherme deteve-se a examinar o sinete da carta, gravado fundamente em grossa camada de lacre. Eram as armas dos Perestrelos: escudo partido em pala; na primeira, o leão rompente; na segunda, a banda azul com estrelas, e à volta seis rosas. No timbre é que estava a novidade que fazia sorrir o estudante versado em heráldica. Em lugar do leão com uma estrela na espádua, consoante reza a carta de brasão passada a Filipe Perestrelo em 1437, o escudo compunha-se de dois corações debaixo de uma espécie de dossel formado pelas asas de um querubim. Esta graciosa alegoria deve de ter sido inventada por D. João V num rapto de amor capaz de inventar a pólvora.

A carta ia relacrada no centro e nas extremidades de um grande almaço. Estes resguardos arguiam mistério. André o mensageiro da ignorada missão, farejava o segredo com a subtileza de alma que se apurara nos pensamentos das estranhas ocorrências.

Entregou carta ao padre ao mesmo tempo que ele lhe perguntava:

— Já disse a sua tia que eu amanhã vou buscar minha sobrinha para a nossa nova residência?

— Ainda há pouco tive ocasião de lhe dar as ordens da vossa mercê.

— E que disse?

— Nada. Entregou-me esta carta.

— De quem?

— De soror Paula de Odivelas.

— E a minha sobrinha ouviu o aviso dado a sua tia?

— Não estava presente.

— Mas estava em casa...?

— Não, senhor. Estava em Odivelas.

Xavier carregou a sobrancelha, sacudiu automaticamente a perna artificial, deslacrou a carta, e, vendo-a de relance muito extensa, disse ao portador:

— Vá, que eu responderei.

Os primeiros e os últimos períodos continham o seguinte:

«Se é forçoso que a verdade brote de corações despedaçados, não se respeite alguma dor, não se afogue algum gemido, ainda que o mundo o ouça e insulte.

«Quem disse a Catarina Castro que ela tinha uma filha foi o Sr. Francisco Xavier; quem lha trouxe pela mão foi a divina Providência, quando o pai lha escondia debaixo da espedaçada túnica do mau frade que não podia refazer o mau homem.

«Selvagem até à ferocidade seria o pai que arrancasse dos braços de uma desgraçada mãe a criança que lhe custou a honra, o crédito, as lágrimas choradas num antro da Inquisição.

«Se há nesta terra tamanho bárbaro, não permita Deus que ele se chame Francisco Xavier, um principalmente que há nove anos levou desta casa uma virgem, que se chamava Catarina de Castro, uma doce e formosa menina que, volvidos dois anos, aqui entrou com o estigma de cristã-nova cuspido na cara, e o da desonra gravado na íntima consciência, — na vergonha abafada que só lhe permite erguer o rosto diante de Deus, que é misericordioso, e diante de mim, que sou pecadora.

«Ela ia pendendo à sepultura, com os olhos postos na esperança do eterno descanso. Para que lhe escreveu, Sr. Xavier? Deixasse-a acabar na ignorância de que tinha uma filha; não lhe viesse apertar o coração com as garras da saudade; dissesse-lhe que morresse anelando encontrar a sua filhinha entre os anjos do Senhor.

«E, se à sua alma traspassada de saudades e remorsos, Sr. Xavier, foi desafogo chorar diante desta pobre criatura, que rija têmpera é essa da sua má índole que se compraz no feroz deleite de matar na paixão de mãe aquela que já havia assassinado na paixão de amante? Se a fez mãe pela desonra, doa-se, envergonhe-se de querer que a própria filha seja o involuntário instrumento do segundo e mais acerbo suplicio.

«Se é vingança privá-la de ver sua filha, de que ofensa quer vingar-se o senhor? Que mal lhe fez Catarina? Acreditá-lo? Sair daqui cega pela paixão, e voltar para aqui iluminada pelas chamas infernais da experiência provada nas dores todas que podem caber em coração de mulher?... Eu não sei o que o Sr. Xavier deseja que ela faça para lhe merecer a esmola de ver sua filha!

«Quer que a religiosa dispa o hábito, e se confesse publicamente desonrada? Ela o fará com a condição de ser mãe. Eu lhe abriria as portas do convento, quando alguém lhe estorvasse a saída, e lhe daria três partes do que tenho para que a necessidade a não obrigasse a pedir ao abastado pai de Antónia os recursos de um viver descansado.

«E assim acontecerá, se o combate for preciso, Sr. Xavier. Quem luta sou eu, não é ela. Eu venci a morte que ma disputou; não hei de agora desampará-la, quando tenho do meu lado, contra menor inimigo, o poderoso auxílio da criança. Lutaremos. Se houver escândalo estrondoso, Deus perdoe a quem o provocar...

«Antónia quer ficar com a mãe, que ainda não conhece; mas, no momento em que uma ordem da corte ou de Alcobaça lhes decretar a separação, Catarina dirá a Antónia que é sua mãe, e depois ambas o dirão a todo o mundo; e o mesmo será apregoar bem alto o nome do seu pai. Medite, senhor. Logo adiante deste passo, veja quantas desgraças se encadeiam. Não se faz precisa dupla vista. A desonra está de lá e de cá. Ambos os contendores hão de cair sob o peso da condenação e do escárnio; mas verdadeiramente infame há de cair um só. Catarina terá por si a compaixão das que se perderam por amor e das que temem perder-se. O Sr. Xavier terá de vestir de novo o hábito do Varatojo para se reconciliar com Deus, e para se esconder ao riso afrontoso dos libertinos e às cóleras mais ou menos contrafeitas dos beatos.

«Nenhuma destas funestas previsões me assusta. Não. Antónia, com o consentimento do seu tio, fica em Odivelas na companhia da sua amiga e condiscípula Paula Perestrelo. Irá ver seu tio, quando ele assim o ordenar. Continuará aqui sua educação. O santo amor de mãe lhe irá formando a alma. As lições úteis à vida, mais úteis que a ciência da língua francesa, lhas dará a desgraça da sua mãe. Os olhos, que muito choraram, são os mais penetrantes: não se lhes esconde nada. Catarina verá desabrocharem no espírito da sua filha as flores que recendem, os aromas que aviventam, e os que matam. Creia que, se Catarina nascesse nas condições de Antónia, o Sr. Xavier não acharia aqui uma cega vítima.»

Quebrantou-o a justiça das acusações e o pungir das ironias. Apesar da forma acre dos queixumes e da arrogância com que a amante d’el-rei traçava o destino de Antónia, o padre Francisco Xavier denotava nas lágrimas o sentimento de não poder defender-se, e talvez o apertar das algemas que lhe frustravam a luta. De relance viu que o antagonismo com a poderosa Paula lhe sortiria a derrota com muitas vergonhas, e talvez com a perda da filha. Calculou que a freira, se pedisse a D. João V que lhe mandasse transferir para fora do reino Catarina e Antónia, o desejo seria logo executado, e a criança para todo o sempre alheada do seu amor.

Sucumbiu. Respondendo à carta de Paula, com discreta reserva, assentia ao desejo da sua senhoria, sem ressalva; suplicava, porém, que a condição de ele ver «sua sobrinha» lhe não fosse quebrantada.

A concessão foi recebida em Odivelas com as imagináveis exultações. No coração de Catarina renasceram sentimentos de dó e gratidão. Já lhe perpassava sem rancor pelo espírito alegre a imagem daquele homem que tanto amara. Via-o na florente juventude dos vinte e dois anos com a gentileza distinta realçada pelos dons da inteligência, raros nos cortesãos de Odivelas. Pediu à filha que pensasse no seu tio com amizade, e se afizesse à ideia de que ele a adorava, porque assim, com o decurso dos anos, o que não fizera o amor espontâneo o faria a gratidão refletida. Antónia teimava em só querer amar seu pai, e a mãe contristava-se quando a menina, desatenta de delicadezas e afetos, prometia voltar para a companhia do pai quando ele recolhesse da Índia.

— E deixas-me então, Antoninha? — perguntava Catarina doloridamente.

— Se o meu papá me mandar sair, que remédio há? Sou tão amiga dele, que não há um dia só que o não veja a chorar quando me deixou.

A mãe olhava tristemente para Paula, que lhe observava:

— Não to disse eu? A natureza entre país e filhos é a coisa mais artificial deste mundo... — e voltando-se à menina:

— Lembra-se da sua ama, Antoninha?

— Se lembro! quem me dera vê-la... Há seis meses que não voltou cá... Talvez morresse...

E agitaram-se-lhe os grandes olhos imóveis e pensativos.

— Está a chorar, coitadinha... — acudiu Catarina — Falemos noutra coisa...

— Quando ela assim chora pela ama, que faria se fosse pela mãe... — insistiu D. Paula — Que lhe dizia a ama a respeito da sua mãe? falava-lhe dela?

— Disse-me uma vez que estava no céu; e o meu papa também mo dizia.

— E o seu tio?

— O tio não me disse nada... só uma vez que a mestra lhe perguntou não sei quê da minha mãe, reparei que ele estava a querer chorar, e a beijar-me muito, muito...

— Queria ter mãe, Antoninha? — perguntou Catarina.

Antónia fez com os ombros um gesto pueril de indiferença. Era a verdade seca e natural. Só os filhos que viram a agonia dos seus pais e apalparam o vazio horrendo da orfandade, invejam a felicidade das crianças que têm mãe.

— E, se tivesse mãe carinhosa como esta senhora, não era tão feliz, menina? — replicou a Perestrelo, apontando Catarina.

Antoninha fez um sinal afirmativo, mas moderadamente entusiasta na hipótese de ser filha da freira, que parecia esperar a resposta como a revelação de um oráculo.

Entretanto, D. Catarina, embevecida nas suas alegrias, apenas ouvia os rumorejos da maledicência, que lhe soavam desde o interior do mosteiro. Lá, ninguém já duvidava que a Muleirinha era mãe da pequena. De Paula Perestrelo rosnava-se a medo; mas intrigava-se com o dom abade de Alcobaça, aquele tanto ou quanto filósofo, varão de bom aviso que se desviava, dizia ele, da torrente das viciosidades por medo de escorregar e ser levado no enxurro. Quando lhe deram a denúncia de que a freira Catarina de Castro chamara para si, com o patrocínio de soror Paula, uma filha, o prelado respondeu:

— Se está dado o exemplo, as outras freiras que chamem também as suas filhas.

Replicaram-lhe que o pai da recolhida era o ex-frade varatojano Francisco Xavier.

— Aconteceu essa desgraça a grandes santos — observou edificantemente D. Bernardo de Castelo Branco. — O grande bispo Santo Agostinho também teve uma filha; e na ordem dos seus crúzios são tantos os exemplos de fecundidade que o céu viria abaixo com o peso dos bem-aventurados, se os santos fossem tantos como os pais.

CAPÍTULO XXII

André Guilherme acompanhava Antónia a visitar o tio, todos os domingos. Era defeso à menina sair com a mestra. Odiava-a secretamente o padre quanto lhe estimava o sobrinho. Na juventude mais florente, André tinha a gravidade e compostura de um velho. Insinuava-se pela sisudeza e pela modesta autoridade da precoce ciência. Ganhara fama de prodígio nas lidas escolares, e várias ordens monásticas aporfiavam em atraí-lo. Mas a sua vocação inflexível era a ordem da Santíssima Trindade, no propósito de se passar à moirisma a resgatar cativos. Entranhara-lhe raízes na alma esta aspiração desde que soube que o seu quarto avô e três irmãos, à míngua de resgate, pereceram cruelmente trateados nas séjanas de Marrocos, para onde foram cativos depois da derrota de Alcácer-Quibir.

Antónia ouvia-lhe os conselhos com docilidade e uma espécie de amor mais submisso que o filial. Desde que o estudante, compadecido da misantropia do padre, começou de arguir à discípula a ingratidão de se ficar no mosteiro, quando o tio alegremente preparava casa para vivenda de ambos, a menina escutava-o com alguma compaixão do tio.

Ao mesmo tempo, Francisco Xavier esfriara nas carícias, bem que a recebesse com alegre rosto. Escutava o que lhe referia do mosteiro; mas com aparente desinteresse. Havia naquele descaimento de espírito e ar taciturno a melancolia precursora de doença mortal.

Antónia levava impressões dolentes do tio para o mosteiro, e muito mais vivas na alma as brandas, mas penetrantes advertências de André Guilherme.

— Se o seu pai morrer na Índia, e o seu tio lhe faltar com a vida, Antoninha, verá que fez mal em trocar a companhia dos seus pelos ligeiros afetos de umas senhoras ociosas que muito mal procederam em lhe ensinarem ou permitirem a desobediência ao seu tio.

Este era o tema das censuras de André Guilherme, desenvolvido em frases acomodadas ao espírito de Antónia, já aos onze anos muito esclarecido pelo trato da conversa e da leitura.

Dois anos e meio decorreram, conservando-se a menina em Odivelas, apesar das representações da prelada e de outras influências exteriores que atuavam diretamente sobre o rei.

E, quer o amor de D. João V à freira arrefecesse, quer a inconstância do seu natural, atreito a intermitências de religiosidade, O emancipassem, é certo que ele pendeu a escutar como justos os queixumes da comunidade cisterciense contra a escandalosa convivência da freira com uma recolhida em que assentavam fundadas suspeitas de filiação sacrílega. Soror Paula destramente conheceu que a sua vaticinada émula D. Luísa Clara de Portugal, ou quaisquer outras, lhe tinham contraminado o rastilho inflamável por onde ela acendia o coração do rei, solapando-lhe a hombridade e o decoro.

Deu D. João a perceber à sua freira que convinha satisfazer às reclamações da prelada e de outras fidalgas protegidas na corte pelos primeiros dela; que Antónia poderia, a miúdo, visitar a mãe, sem todavia passar das grades adentro; e que D. Catarina, sob qualquer pretexto saísse às temporadas, do mosteiro, e gozasse plenamente a companhia da filha. Se madre Paula retorquiu, a palavra do rei não voltou atrás: — provérbio que anda em vínculo na monarquia portuguesa, e a história confirmará rebuscando nas novelas algum lance heroico da importância deste que levamos relatado.

Houve muitas lágrimas quando soror Paula Perestrelo aconselhou a saída espontânea de Antónia, antes que a intimação assinalasse a vitória da Pimentinha.

Apesar da concessão das visitas ao locutório e do alvitre da saída, Catarina, colhida fulminantemente em plena felicidade, aturdiu-se, perdeu o alento, e em poucas horas desmereceu de cores e vida como se recaísse no torpor de dilatada doença. Menos sensível incomparavelmente foi Antónia. Chorava, consoante choram meninas de doze anos, quando o sangue do coração não é parte nas lágrimas.

Mais amargas as chorou ela, quando, por esses dias, André Guilherme a procurou em Odivelas para lhe dizer que o Sr. desembargador Paulo Xavier morrera em naufrágio, quando recolhia da Índia, e já avistava Lisboa. A menina correu espavorida e em gritos a dizer que o seu papá estava morto. Velou-lhe a passageira angústia D. Catarina. Ao fim de três dias, Antónia, divertida da sua saudade, diligenciava revivê-la recordando-se das feições incertas de Paulo Xavier. Ora, havia dois anos e meio que o desembargador embarcara; e a menina poucas feições lhe retivera na infantil memória.

Fora dos romances e dos poemas imaginosos, estes esquecimentos são naturais e providenciais no dizer dos providencialistas. Eu, por mim, deploro entranhavelmente este péssimo feitio da sensibilidade humana.

Voltou André Guilherme pedindo a soror Paula, em nome do doutor Francisco Xavier, que lhe permitisse a companhia da sua sobrinha por algum tempo, já porque a sua paixão, na falta do seu único amigo, merecia do dever ou da comiseração algum lenitivo, já porque sua sobrinha, única herdeira do seu pai, ia ser tutelada, e não podia de hora em diante dispor de si sem o consentimento do tutor.

Condescendeu D. Catarina; mas já estava no leito quando a filha, na despedida, a foi abraçar. A devotada amiga da mãe infeliz, na ausência de Antónia, desentranhou-se em consoladoras promessas, fantasiando porvindouras felicidades. Paula vaticinava que a velhice de Catarina seria ditosa em companhia da filha; que a menina viria frequentes vezes vê-la; que Francisco Xavier seria o primeiro a pedir-lhe a saída perpétua do convento; «e talvez — juntava Paula — ainda te esperem dias de inefável gozo ao lado do amante e da filha, muito longe de Portugal».

O sorriso de Catarina iludira a sua amiga. A esperança da morte iluminara-lhe aquela expressão dos que tem a máxima evidência de que não esperam em vão; porém, Paula Perestrelo atribuiu o gesto risonho às cores maviosas e ridentes do seu quadro de família.

André Guilherme entregou a menina ao padre Xavier, abraçou-a ofegante de soluços e lágrimas, como se se despedisse da sua irmã mais querida, e balbuciou:

— Adeus, Antoninha! se o seu tio morrer primeiro que eu, lembre-se que estou no mundo...

— Pois deixa-nos, Sr. André!? — interrompeu o padre.

— Amanhã começa o meu noviciado no convento da Santíssima Trindade. Volvido o ano da prova, se Deus o permitir, virei saber da minha discípula, e do meu bom amigo, que me ensinou, sem querer, a coragem nas grandes mortificações. Eu, Sr. padre Xavier, sei os segredos da sua vida...

— Os segredos... — acudiu o padre com assombro.

— Os segredos revelados pelas torturas mudas, que são gritos formidáveis aos que têm a intuição de grandes dores alheias e o vaticínio das próprias. Veja, meu amigo — prosseguiu André Guilherme fervorosamente — veja se defende esta menina da influência de duas estrelas sinistras... Eu sei a travação de desgraças que derivam desde Domingos Leite Pereira — o regicida — até ao nascimento da sua última representante...

— Última... — repetiu o filho de Jorge Mendes Nobre — porque há de ser última?...

— Não o disse como profeta; empreguei o termo em relação ao tempo atual.

E, como Antónia estivesse absorta nos dois sem os perceber, André Guilherme tomou suavemente entre as mãos o rosto da menina, beijou-a na cara, e murmurou:

— Adeus, minha querida irmãzinha... Quando me tornar a ver com a minha túnica branca e a cruz escarlate de frade trino, já a minha amiga me não conhecerá... e quem sabe se eu a conhecerei? Daqui a dois anos é senhora... e eu sou um quase velho frade...

E, alegrando o rosto, André Guilherme devorava as lágrimas, em que havia o travor complexo de muitas dores. Ele amara como pai a criança, e adorava agora como idólatra aquela peregrina formosura dos doze anos com feições acentuadas de prematura juventude.

E Antónia, cingindo-se-lhe ao pescoço, chorava convulsiva como quando se despedira do homem a quem chamava pai.

— Não vá para o convento... — balbuciava ela.

— Vou pedir a Deus que dê uma boa sorte à minha amada discípula...

CAPÍTULO XXIII

A residência do padre Francisco Xavier na rua do Outeiro era celebrada entre as mais faustuosas casas de Lisboa, no primor dos embutidos em contadores, nos guarda — roupas das recâmaras, no torneio e dourado de cadeiras, banquetas, bufetes, escritórios e espelhos, na baixela de prata lavrada, nas alfaias de tartaruga atauxiadas de metais preciosos, nas estatuetas de jaspe e alabastro, nos relógios ingleses, na profusão das louças indianas. Elogiava-se o apurado gosto do médico Eliot na escolha de tão opulenta ornamentação.

Dizia-se que a menina, já herdeira habilitada dos grandes haveres do desembargador, e presuntiva do património do tio, valia passante de cento e cinquenta mil cruzados: era um cálculo razoável que os homens velhos e negociantes inferiam do cabedal de Francisco Mendes Nobre, acrescido de prósperas granjearias nos portos holandeses e nas colónias brasileiras.

Com a mudança de residência, operou-se estranhável reviramento no viver do abastado, se não opulento, doutor Xavier. A sua casa era principalmente frequentada por sábios estrangeiros, apresentados por Isaac Eliot. Afora o abade de Preville, indigitado preceptor de Antónia na língua francesa e nas ciências que prelecionava, concorriam o filósofo holandês Obed Stefano Monden e o inglês Luís Baden, os quais nas Gazetas do tempo ofereciam aos indolentes lisboetas a profusão da sua sabedoria enciclopédica.

Sobre-excedia a todos os concorrentes o prussiano João Frisch, padre da Reforma, viajante, naturalista, escritor em variadas províncias das artes e das ciências. Alguns doutos portugueses, do clero e da nobreza, honravam-se em tão seleta companhia, constituindo as salas do ex-varatojano em ginásio, onde em línguas diversas se discursavam novidades científicas.

O padre remoçava naquela atividade intelectual. Reflorindo os seus antigos estudos, e especialmente a latinidade, conversava na língua de Cícero com sincera admiração do sábio de Berlim, que a exercitava a primor.

Neste congresso de sábios havia duas formosas e juvenis criaturas a quebrarem a severa monotonia do grupo. Eram Antoninha e Josse Frisch, filho do sacerdote protestante. Ela contava treze anos e ele orçava pelos dezassete. Josse, filho único e órfão de mãe, acompanhava seu pai desde a infância, era seu discípulo, conhecia os idiomas dos países que perlustrara, e decidia com a autoridade da memória assombrosa as dúvidas linguísticas entre os sábios de países diversos quando se desavinham na aceção das palavras. Era ele quem continuava a instrução de Antónia na prática da língua francesa, expurgando-a dos vícios adquiridos com a aia de Ana Armanda Duverger, e a encaminhava a esvoaçar às colmeias de Petrarca, dando-lhe a prelibar o mel dos sonetos em que a menina ia aprendendo a enjoar-se das sonolentas coisas de Camões e Sá de Miranda.

Nestes colóquios particulares, a um canto da sala, enquanto os doutos latinizavam, não admira que de parceria com Petrarca entrasse o amor com a sua grinalda de rosas em botão, faces purpurejadas, pudor sem ainda se dar fé de ser pudor, inocência sem uns longes de haver coisa no mundo que seja viciosa. Aos treze anos, menina que passara dezoito meses em Odivelas, devia ter já madrugado para as ternuras vagas, balbuciantes, enlevos, imagens sem desenho, indelineáveis como as da transição do sonho à realidade.

Mais acentuadas eram as formas do ideal do alemão: vazava, nelas o belíssimo perfil de Antónia, curvado sobre o livro. De sobre as páginas, às vezes, lhe desviava ele brandamente as espiras dos cabelos de oiro para ver as palavras. Ela sorria-se corando e sacudindo a cabeça que recendia o frescor e perfume de um ramilhete colhido nas madrugadas de Agosto.

O amor acrescentara dois anos aos treze de Antónia para que ela adivinhasse a paixão de Josse Frisch. Demudou-se-lhe então o rosto infantilmente aberto e a linguagem agraciada de meninices. Já o recebia com a gravidade de senhora. Respondia-lhe com assustadas reticências. A espaços, escutava-o abstraída, ou parecia atemorizar-se de ouvi-lo. As revelações do prussiano eram interpretadas pelo poeta de Laura. Ele insistia na análise de alguns versos das Canzoni, onde o lirismo vaporou mais subtis essências das Lágrimas.

Também a voz de Josse as tinha, quando a tremer se receava de haver magoado a isenção da rica herdeira.

Antónia falava-lhe muito de André Guilherme, e, por vezes, encostando a face à palma da mão, deixava rolar duas lágrimas, que pesavam no coração de Josse como gotas ardentes. Abrasavam-no ciúmes, quando ela dizia:

— O meu pobre André Guilherme!... quando eu o vir... já ele é frade trino...

E ficava a filha de Catarina a olhar no vago, e a recompor as feições da imagem que a túnica monástica e o claustro lhe restituiriam desfigurada.

Mas a imagem identificada à sua alma era a do esbelto jovem estrangeiro, para quem o padre Francisco Xavier olhava de través e suspeitoso. Este homem, na rigidez da vida, com as faculdades da alma viciadas, mordido de ciúmes da filha tão disputada, envaidecido de a ter assim formosa e afamada de rica, e de mais terrivelmente provado na paixão, que precedera o inferno de treze anos, via já na filha a mulher, e no prussiano um homem dotado de seduções.

E começou de se criar um novo suplício com a triplicada tortura do ciúme de mais fatais resultados. Conversando cavilosamente com Antónia a respeito de Josse Frisch, a filha ouvia-o atenciosa, interessada, jovial. Aplaudia-o com expansivos sorrisos, se ele elogiava a galhardia do jovem ou os portentosos predicados do seu ilustradíssimo espírito. E então o padre cravava os olhos nos da filha, e varava-lhos com um raio de luz escrutadora até ao coração. Ela encarava-o assustada, e estremecia retraindo-se.

Que tinha lucrado o pai nestas insidiosas experiências? Explicava-lhe o que ela a si apenas confusamente poderia exprimir. Encomiava a forma e a alma do jovem, ajudando-a a conciliar as duas belezas, física e moral. Bosquejava um homem distinto, raro, estimável. Antónia não acrescentaria amável, no seu íntimo foro; porém, quando o padre, por fim, avincava a testa e a friccionava freneticamente, Antónia traçava na sua alma uma grande interrogação, à qual respondia a primeira poesia que recebera de Josse Frisch, com tão cristalinas lágrimas que a menina facilmente se via espelhada nelas.

Aos treze anos não há mulher amada que se receie iludida; e, se por vício de educação houve alguma tão pessimista que duvidasse da lealdade do seu primeiro amado, com certeza tal fenómeno ainda está por acontecer à inocência aliada à formosura e riqueza. Diziam-lho unanimemente os sábios da assembleia do seu pai com as prosas usurpadas aos madrigais do tempo. O filósofo Baden comparava-a às mais extremadas perfeições de Londres.

O pai de Josse pedia ao padre que lhe cedesse a posse de uma miniatura em marfim para levar para o norte o modelo da beleza peninsular em todo o seu esplendor.

Abeberado do italianismo amoroso, o filho de João Frisch achara as formas da mais apurada arte em que moldurava imagens e sentimentos de profundíssima verdade. Aquela peregrina criança, feita mulher pelo improviso do amor, não podia ser amada senão assim.

No entanto, embasteceu-se novamente a escuridade de Francisco Xavier. Amavam-lhe a filha — disputavam-lha! Queria confidenciar os seus sustos de tio a Isaac Eliot; mas retinha-se, receoso de ser irrisório diante do francês que metia a riso as cautelas, os pavores das famílias portuguesas, e o ostracismo sandeu e gótico em que vegetavam as desgraçadas mulheres de Portugal, desde a núbil até à casada.

Corando a falta com os seus achaques, espacejou as reuniões, dissaboreando Antónia que, em vez de velar as fingidas moléstias do tio, fechava-se no seu quarto a reler o poema... os poemas e as prosas de Josse Frisch.

A diminuição das visitas motivou a necessidade de se comunicarem pela escrita os namorados. Até ao dia em que o padre providenciou para não se verem a miúdo, Antónia esquivou-se a responder; mas, depois da prevenção, o pejo cedeu ao poderoso impulso da saudade. Seria melhor que se vissem; mas não aconselho nem argumento com a prática. A teoria do padre ainda hoje voga com as resultas de então.

De maneira que eles, quando se entreviam, na sala, nos raros saraus literários da rua do Outeiro, tinham já expendido caligraficamente as essências das suas almas, e talhado, por todos os horizontes da imaginação além, as suas esperanças até se encontrarem com a profundidade do céu. E o que não tinham escrito completavam-no com os olhos.

Eliot havia percebido que se amavam, e segredou ao padre:

— Cuidado! A sua sobrinha trouxe de Odivelas fermento de amor. O prussiano é poeta, e há de fasciná-la porque não mente. Nada há que recear quanto à solução deste meio-amor, meio-brinquedo, porque o pai vai-se embora e o filho também; não obstante, se a menina ficar ferida, estes ferimentos dão que fazer, quando as mulheres doentes de fantasia vivem na perigosa reclusão das senhoras de Lisboa.

— Que hei de eu fazer? diga-me o doutor se não seria melhor tê-la sempre reclusa! As cautelas que me aconselha, Sr. Eliot, justificam os costumes de Portugal.

— Que há de fazer? — volveu o francês. — Aumentar o número das suas visitas quando Josse Frisch se ausentar. Reunir na sua casa tantos homens idóneos para amarem sua sobrinha, que ela não escute exclusivamente uni, nem conserve na memória o nome daquele que mais requintadas finezas lhe incensou. Em França vive-se assim. Quatro homens à volta de uma mulher são quatro sentinelas que se espiam uns aos outros; de modo que ela, por fim, aborrece-os todos.

Eliot dirigiu-se de moto próprio ao sábio alemão, segredando-lhe os dissabores secretos do padre Xavier, causados por umas inteligências amoriscadas da sua sobrinha com Josse Frisch.

— Não há dúvida que eles se amam — conveio o honrado prussiano. — Eu sou o confidente do meu filho. Ele confessa-se a mim em todos os seus grandes e pequenos actos de coração e espírito. Ainda me não foi preciso penitenciá-lo. Pelo que respeita ao seu afeto nobilíssimo à sobrinha do muito estimável Sr. padre Francisco Xavier, não tenho de que o arguir. Pelo enquanto, este recíproco amor é uma iniciação de duas almas cândidas, que em breve se afastam; quando, porém, mais sérios vínculos os prendessem, creio que nunca os desatariam desonrosamente.

— De acordo — obtemperou o cavaleiro professo da ordem de Cristo. — Mas o meu bom amigo Xavier não teme desonras, receia sofrimentos — o que já é bastante em tio sobremodo extremoso. Porém, dizendo-me o Sr. João Frisch que a sua partida de Portugal não se dilatará, são pouco de temer os resultados desta paixão nascente; mas a meu ver, poética e demasiada entusiástica.

— Nem poética nem entusiástica; diga «verdadeira» que é bastante. Nós, os alemães, consumimos poucos adjetivos, ao inverso dos senhores enfronhados no luxo latino. O meu filho ama e é amado verdadeiramente. Assevere isto ao nosso respeitável Dr. Francisco Xavier; acrescente, porém, Sr. Eliot, que o meu filho não se exime de ser honesto desculpando-se com o seu amor. Poderia talvez desonrar-se, quando amasse menos. Em suma, passados quatro dias, iremos agradecer a hospitalidade do generoso português, e abalaremos caminho da nossa terra. Josse Frisch bem é de ver que leva saudades penosas da galante menina que lhe fez a primeira luz no coração; mas, como e valoroso e tem hombridade viril, cavará no próprio seio até arrancar de lá a imagem que, ainda mal, lhe perturbou os dias felizes. O esquecimento resultante do tempo e da dignidade no meu filho será correspondido pela menina Antónia, com a diferença de ser nele esforço o que na mulher é costume. Afinal, se a saudade é cautério, a ausência é bálsamo. Vá, pois, o Sr. Eliot sossegar o seu amigo; que eu, como padre cristão, peço a Deus que a estimável sobrinha do Sr. Xavier, quando houver de dar a sua alma legitimamente a um esposo, a boa sorte lho depare virtuoso como Josse Frisch.

Comunicou Isaac Eliot estas decorosas falas ao padre, glosando-as com facécias à francesa. Ria-se o médico do aprumo dogmático do alemão, preconizando a honestidade do filho como se ali se estivesse nutrindo Catão 2° para assombro do orbe depravado, O neto de Ângela achou graça ao filho da turca, e entrou com ele a arrolar as pessoas que deviam frequentar a sua casa, em conformidade com o alvitre do seu amigo.

— Um elemento imprescindível — observou Eliot — são as mulheres. Necessitamos algumas senhoras de esmerada educação com as quais D. Antoninha conviva, já para a precaverem contra as entrepresas do amor, insinuando-lhe as insídias que ele usa, já para lhe desviarem o espírito da atenção demasiada que as mulheres aplicam aos homens, se a sua sociedade é toda composta deles.

— Tem razão, doutor — condescendeu o padre. — Essa espécie já me tem preocupado; mas o senhor conhece as minhas relações de sociedade. O infortúnio fez à volta de mim um deserto. Desatei os laços de amizade e parentesco há treze anos. Onde quer o doutor que eu vá procurar senhoras que me visitem?

— Eu terei a honra de lhas apresentar, logo que estes sábios nos cedam lugar a uma ignorância mais recreativa.

Enquanto o médico e o padre recenseavam os futuros ornamentos da renovada sociedade, Antónia lia em poucas linhas o resumo do diálogo do francês com o alemão. Josse Frisch, informado pelo pai, pediu-lhe licença para se despedir de Antónia. O velho, que já então o era muito além dos sessenta, contemplou comovido as lágrimas do filho, e disse-lhe amargurado:

— Sejam menos amargas as lágrimas que chorares quando teu pai te faltar, meu filho. Não te vi tantas, quando, há sete anos, assistimos ao enterro da tua mãe. Chora, sê fraco, sê homem; mas, na sequência da vida, sê cauto. Quando vires mulher que te dispute à ciência, teme que ela também te vença na inteireza do dever, e lembra-te sempre que a primeira que amaste foi mais chorada que a tua santa mãe.

O francês, se o ouvisse, motejá-lo-ia.

O velho afastou-se para acondicionar os seus livros e papéis. Josse escreveu, e foi esperar na botica do seu patrício Jácome Valebelt, morador no Canto da Cordoaria Velha, que o seu escravo medianeiro recebesse a carta.

Na carta do consternado jovem havia uma cláusula que estancou as lágrimas de Antónia. As frases eram estas pela alma da nossas mães te juro que voltarei a Lisboa sozinho, e bem livre para ser escravo teu; e, depois, ou sairás daqui minha esposa, ou eu acabarei os meus dias desgraçados onde tu possas ir chorar sobre as minhas cinzas.

Passados os quatro dias aprazados pelo ilustre viajante, os Frisch despediram-se do padre Xavier. O pai perguntou por D. Antónia, que não viera à sala. Xavier, carregado no rosto, respondeu que a sua sobrinha estava febril, e ficara de cama, por ordem do Dr. Eliot.

Josse abaixara os olhos sob um lance de vista aspérrimo do padre, cujas palavras secas, breves e sacudidas, acusavam a ira do seu carácter desabrido.

O sacerdote luterano, atentando no abatimento do filho, fitou-o com severidade, e disse, voltado para o padre:

— O abatimento do meu filho não confessa alguma ação baixa. Todos os homens de bem começam as suas lides com o mundo, abaixando a cabeça à tirania da injustiça.

Xavier não replicou; fez a sua última cortesia, e mandou o seu escudeiro acompanhar os dois senhores.

Mas o escudeiro e João Frisch mantiveram-se enfiados quando viram Antónia sair de improviso ao patamar da escada, e lançar-se arquejante de soluços nos braços de Josse. O velho pegou mansamente das mãos de Antónia, descingiu-lhe os braços do pescoço do filho, e murmurou:

— Antoninha, espere que a vontade de Deus se manifeste pelo andar do tempo.

CAPÍTULO XXIV

Quando Antónia voltou desfeita em choro à sua alcova, encontrou o tio na antecâmara. O tapete abafara o estrupido da ponta metálica da perna artificial, ou ele acintemente palmilhara com o pé único as casas intermédias.

— Pensei que estavas na cama! — disse ele dissimulado.

— Donde vens?

— Venho... de... fui à sala... — gaguejou Antoninha.

— Da sala venho eu, menina. Ou eu estou invisível ou tu.

E, chamando o escudeiro ao corredor, perguntou-lhe:

— Acompanhaste os estrangeiros?

— Sim, senhor.

— Quem viste na escada?

O criado inclinou a cabeça para uma banda e coçou-a por ambos os lados.

— Entendi. Vai-te.

E retirou-se para o seu quarto resfolegando bafejos tropicais, e batendo com a perna de pau rijamente o compasso da respiração sacada por arrancos.

Três lancinantes saudades mortificavam Antónia naquela hora — Josse Frisch, o mosteiro de Odivelas, e o seu querido amigo André Guilherme. As três dores, porém, convergiram numa só, expressada em poucas palavras: «Sou órfã; não tenho pai nem mãe!» Esta dor reviveu-lhe a saudade de Paulo Xavier, cujo retrato ela tinha pendente do seio. Chorou muito, e pediu à alma do seu pai que a socorresse. Era uma aflição pueril, mas tão entranhada que a morte lhe parecia benefício do céu.

Entrou o médico, sondou-lhe o pulso, receitou-lhe um calmante, e dilatou-se a dizer-lhe frivolidades em francês. Antónia ouvia-o com aborrecimento.

Contou-lhe Eliot que passara a noite numa festa de noivado, em casa das Sr.^ Caldeironas, meninas de fidalgo nascimento, uma das quais casara com o seu amigo e patrício Tomás d'Arta, gentil-homem da Picardia, que fugira de França por motivos religiosos e abraçara o catolicismo para casar com D. Maria Teresa Caldeirão. Acrescentou que já obtivera do padre licença para lhe apresentar estas nobres senhoras, uma das quais, D. Leonor, anjo de catorze anos, era uma das mais prendadas e encantadoras meninas da capital; e ele esperava que Antoninha simpatizasse com Leonor, tanto pela consonância dos espíritos ilustrados, como pelas analogias da formosura.

Perguntou-lhe Antónia se ele tinha ido a Odivelas na semana passada, e se D. Catarina e D. Paula se queixaram da sua falta naquele mês.

Eliot, sorrindo, respondeu que ele a desculpara com D. Catarina de Castro, contando-lhe a historiazinha de uns amores de primeira primavera, e que a freira, com os olhos cheios de lágrimas, exclamara: «Ah! pobre criança!»

Antónia trejeitou a menos equívoca explosão de zanga, quando o francês acompanhou de uma gargalhada seca a dolorosa reflexão de D. Catarina.

E retirando-se de ímpeto, disse que ia dormir, porque tinha sono.

Isaac Eliot retirou-se vexado da descortesia, e foi queixar-se ao padre, desculpando-a, ainda assim, e aconselhando novamente a sociedade de senhoras para que a menina aprendesse na prática a civilidade que não se estuda nos livros, e se polisse, desbastando-se das indelicadezas resultantes do muito mimo e de escassa familiaridade com damas.

— Já me lembrei — alvitrou o padre — dar-lhe como companheiras mais assíduas as irmãs de André Guilherme, que são meninas dignas de tal irmão.

— Gente de baixa laia?

— Não são fidalgas; mas também não têm os vícios dessa classe. São excelentes raparigas que receberam do irmão lições de virtude.

— Isso não obstante — volveu Eliot — a família Caldeirão, além do berço ilustre, vale muito pelas graças da sua seleta sociedade...

— Ora diga-me, doutor; essas Sras. Caldeironas, ou Caldeiroas, não são filhas de Francisco Caldeirão da Veiga Cabral, um fidalgo que solapou o seu imenso património e casou com...

Deixá-los esmiuçar na vida das Caldeironas, enquanto nós, em resumo, relataremos o que é do interesse desta história.

Coisa digna de reparo é a intervenção repetida da família Veiga Cabral no destino de Maria Isabel Traga-malhas, e da sua trineta D. Antónia Joaquina Xavier, como ao diante veremos. Na Filha do Regicida, João da Veiga Cabral, fugindo com a viúva de Domingos Leite Pereira, mudou o cenário da tragédia, restaurando pelo milagre do amor a dignidade da esposa. Oitenta anos depois, veremos a funesta influência que uma Veiga Cabral atuou no destino da bisneta de Ângela.

O seguimento deste capítulo ameaça enfados e razoáveis espreguiçamentos. Livre-se dele o leitor, se quiser. Eu é que não posso, obtemperando às perversas corrupções de Ponson, esquecer-me de que sou, neste caso, historiador, e exorcizo e abomino as execráveis tentações de romancista.

Vamos ao génesis dos Caldeirões.

Em 1585, Filipe II aforou de fidalgo um Manuel Caldeirão, de Lisboa, mercador opulentíssimo, oriundo das Astúrias. Por 1583, se obrigara o argentário a enviar anualmente cinco naus à Índia, dando-lhe el-rei oitenta mil cruzados mortos, e dezasseis mil cruzados cada ano por cada nau. Instituiu Manuel Caldeirão três morgados, e casou com Guiomar Caldeira. Nunca se casaram apelidos tão conformes! Havia, nesta caldeirada, predestinação.

André, filho destes, enxertou-se no tronco ilustre de Furtados de Mendonça; Rodrigo casou num dos ramos dos ínclitos Noronhas; Brites, em Elvas, no morgadio do Esporão, com Luís Mendes de Vasconcelos; Leonor, com o desembargador Jerónimo da Veiga Cabral, filho do tristemente famoso Tristão Vaz da Veiga, que entregou a Torre de Belém, por cinco mil cruzados, ao duque de Alba.

Aí está como Veigas Cabrais se incorporaram em Caldeirões, e o sangue destes se injetou nas artérias de levantadas prosápias. Então, como hoje. Dinheiro, o invicto!

No primeiro quartel do século XVIII, a varonia das duas famílias identificadas estava em Francisco Caldeirão da Veiga Cabral, residente em Lisboa. Este fidalgo, administrador de três poderosos morgadios, foi muito rico, libertino, perdulário, viveu femealmente como paxá, e à hora da morte casou com uma das suas ilustres vítimas, D. Mariana Bembo de Sousa, filha de Fabrício Bembo, da qual tinha três filhas.

As famílias ostrogodas da corte reprovaram o casamento do morgado dos Caldeirões com a filha do Bembo, oriundo da Itália; todavia, século e meio antes, casava, em Vila Real de Trás-os-Montes, outro Fabrício Bembo com a irmã de um certo João Lopes, a cujo filho Afonso deu foro de cavaleiro e armas D. Filipe I, em 1853. Pelo que, os Bembos cronologicamente eram coevos no brasão em Portugal com os Caldeirões; afora isso, os primeiros ufanavam-se do seu ascendente o cardeal Bembo, conforme em bom latim lho outorgavam as cartas passadas pelos senadores de Cremona em 24 de Novembro de 1545:

...Bemborum familia, quae non solum apud nos nobilitate prestat, sed etiam Venetiis cui aetate nostra maximum addidit ornamentum Petrus Bembus... cardinalatus dignitate a Paulo III, etc.

Este latim e outros perderam-se no pleito instaurado contra suas primas pelo mestre de campo João da Veiga Cabral, linha segunda que vivia ricamente em Vila Real. Fundamentando a demanda no casamento desigual do seu tio e nas condições dos vínculos, esbulhou-as de três morgadios. As três meninas aguardavam o patrocínio dos seus numerosos primos. Às suas salas, as mais faustosas e alegres no reinado de D. Pedro II, apenas entraram os oficiais de justiça com ordem de despejo. Primo, ou amigo, nenhum.

Eram três meninas tão distintas pelo acaso da origem como pelos predicados da beleza física. As feições morais agouravam mal. Tinham brilhado na desordem e no desperdício. Ostentaram-se como formosas, sem resguardo nem astúcia, à espera de maridos quando viram vazios os contadores do seu pai. O desbarate entrou pela fazenda e pelas almas.

D. Joana, a mais velha e malograda morgada dos Caldeirões, salvara um vínculo insignificante alheio às cláusulas dos outros. Esta amparava mesquinhamente as irmãs. D. Maria Teresa, que era bela e doida, casou com o aventureiro francês Tomás Darcet (ou de Arcet, como ele se dizia) pavoneando-se de fidalgo picardo com raízes nas cruzadas, e vivia em Lisboa da esgrima, equitação e outras prendas. A terceira e mais nova, D. Leonor, era prodigiosamente linda, tinha catorze anos quando casou sua irmã, e estremava-se das outras pela inocência. Inspirava piedade aos mesmos que se afastavam daquela família decaída. Deploravam-na no guine do perigo; mas ninguém lhe ministrava o pão tutelar da honra. Os que se avizinhavam dela, carpindo-a, iam intencionados a perdê-la.

Isaac Eliot, amigo de Tomás Darcet e a sua visita, amava Leonor. A paixão aconselhava-o a um enlace honroso. Desde que se declarou ao marido de Maria, desmentiu a presunção geral de ser casado com a francesa. Esperava-se que Leonor perfizesse quinze anos para esposar-se com Isaac Eliot, que orçava pelos trinta e dois.

Eis aqui, pelo enquanto, o que importa saber-se das Sr.^ Caldeironas, aconselhadas ao padre Francisco Xavier para lhe polirem a sobrinha, quando nenhuma família de bom nome as admitia às suas salas, por isso que elas já não tinham salas — e bastava esta desgraça para que os amigos e parentes do seu pai não discutissem se elas conservavam a dignidade.

Leonor sabia que o seu cunhado e irmãs lhe tinham já deliberado o destino. Conformara-se, porque os seus vestidos estavam poidos, as suas mantilhas no fio, e o seu pescoço e pulsos eram nus de gargantilhas e braceletes. Mas, no recôndito da sua alma, aborrecia Isaac Eliot.

CAPÍTULO XXV

As senhoras Caldeironas, as duas irmãs do noviço André Guilherme-meninas devotas — e a viúva e filhas do historiador francês Jacques Quem de la Neufville, falecido em Lisboa em 1727, criaturas desempoadas e logreiras: tais eram as relações que substituíram os filósofos na sala do doutor Xavier.

Estas senhoras cortejavam Antoninha com admiração da sua beleza e do seu soberbo património; todavia, as irmãs do noviço, estranhas e escrupulosas no meio das gárrulas francesas e das duas Caldeironas, consultaram o mano frade se lhes iria bem tal sociedade.

André Guilherme respondeu a suas manas que se desviassem de tais donas; escreveu a Antoninha perguntando-lhe se o tio endoidecera; e escreveu ao padre, rogando-lhe que não empestasse o ar em que a sua inocente sobrinha estava alimentando o espírito.

As irmãs não voltaram à rua do Outeiro, e confessaram-se ao seu diretor espiritual de comunicarem por meio de gestos e palavras com as Caldeironas. Antoninha retraiu-se aos ares familiares das importunas visitantes, não pagando as visitas. E o padre Francisco Xavier mostrou a carta do noviço a Isaac Eliot.

O médico leu e disse:

— Este homem é um asno acabado. Se em vez de injuriar Pessoas ilustres lá do valhacouto do convento, estivesse cá fora o birbante, eu lhe verberara a face com um chicote, ou o mandaria esbofetear pelo meu pajem Henrique Rutier, que tem queda especial para esbofetear portugueses petulantes. Veja o doutor que bonito frade se está formando neste biltre de língua viperina!

— Não exagere, Sr. Eliot! — acudiu o padre — André Guilherme não insulta ninguém nesta carta. Zela a virtude da minha sobrinha, e presume que as Caldeironas e as Neufvilles não respiram ares muito puros.

— Aí é que está a calúnia! — replicou o médico — a sua sobrinha não é mais ingénua que Leonor Caldeirão; e as irmãs, posto que não aspirem a engrossar o número fabuloso das onze mil virgens, portam-se como fidalgas.

— Mas olhe que as fidalgas, por via de regra, doutor, não se portam bem. O senhor já sabe que eu fui dos saraus destas senhoras, quando elas eram meninas e já prometiam pagar muita tolice ao dízimo.

— Mas Leonor é um anjo! — retorquiu o francês com a veemência de leal paladino.

— Leonor nasceu depois que eu frequentei a casa do seu desbaratado pai; e note que a consideração de eu ter sido dos obsequiados por esta família nos dias prósperos é grande parte na condescendência de a receber na minha casa. Peço-lhe, porém, que seja equitativo com o pobre André, verdadeiro amigo da minha sobrinha, e incapaz de caluniar. Ele conhece, sem o praticar, este mundo de Lisboa, e faz das Caldeironas o conceito ruim que elas, pela sua má sorte, granjearam. De Leonor tenho grande dó. E, se me consente intrometer-me nas intenções reservadas do seu coração, peço-lhe que apresse o desfecho ou o fecho destes seus amores; e, depois, aceite para si também o conselho do meu frei André.

— Não me guio por frades, doutor! — retrucou Eliot, sorrindo — Frades é que eu não consentirei de portas adentro, quer eu case com Leonor, quer com outra. Frade em Portugal conheci um só digno de respeito; e a esse tive eu o desgosto de cortar uma perna.

O padre apertou-lhe a mão reconhecido, e replicou:

— Ora vamos, ora vamos, não é tanto assim. Há muito frade bom, e André Guilherme há de sê-lo ótimo. Verá, doutor.

— Na minha casa, não.

— Mas vê-lo-á, se quiser, por essa moirama a resgatar cativos.

— E cativas... — acrescentou o sarcástico semi-turco.

Continuaram regularmente as senhoras Caldeirões e Neufvilles a alegrar o salão do padre com as suas palrices e prendas. D. Joana, a quem chamavam ainda a morgada, cantava, tangia o violino e dançava minuetes e sarabandas picadas com o lascivo desnalgar-se de uma andaluza. Os seus cantares eram motetes, tarambotes e xácaras de que vamos dar exemplo com a Modinha da Sécia, em que D. Joana era consumada artista. Eliot rebentava de gáudio quando lha ouvia cantar. Foi ele quem pediu a Modinha da Sécia, para alegrar as duas meninas, Leonor e Antónia, retiradas a um canto da sala.

A morgada pegou da violinha e garganteou muito afetada e trejeitosa as seguintes coplas que a música, porventura, fazia menos detestáveis:

Eu canto a Sécia

Do rico, que é facécia

Quando fala de estalo

Na quinta e no cavalo,

Na ópera e no jogo,

E, vomitando fogo,

Engole a quantos vê.

Porém, sabem porquê?

Por parecer que é muito,

Mas ele nada é.

O padre, que conhecia as trovas de as ter ouvido quinze anos antes em assembleias de loureiras, com que o famoso Campolide enviscava a roda dos rapazes dinheirosos, arrugou a testa, e volveu os olhos a Antónia.

A Caldeirona continuou, depois de preludiar no instrumento uns langorosos sustenidos que deviam de ser os requebros da guitarra fadista que as senhoras de hoje em dia fazem gemer:

Do peralvilho

É a sécia, e do casquilho

Vestido de mil cores.

Na véstia fitas, flores,

Peitos à francesa,

Gravata à inglesa.

Quase descalço o pé.

Porém, sabem porquê?

Por parecer que é grave

Quem sabe que o não é.

Bravos do médico, risadas das francesas, novo prelúdio com os ademanes do pátio das comédias, e a continuação:

Quem a Sécia canta

Tem dor de garganta;

E geme em falsete

E afaga o topete

E dá gargarejos

Que envolve em solfejos

Do seu sol, fá, mi, ré;

Porém, sabem porquê?

Por parecer de Itália

Mas ai que não é.

Ai! a sécia do nobre

Desdenha do pobre

E diz: «fado meu!

Quem te conheceu

Como eu conheci

Mas porque então me vi

Hoje ninguém me vê!»

Mas sabem porquê?...

Por ter coração,

Percebe você?

Eis aqui, como amostra de prendas, a mão de verniz que devia polir a educação social da filha de D. Catarina de Castro.

Antónia Joaquina ouvira sem entreabrir um sorriso complacente a insulsa canção, e pela primeira vez observava os meneios lúbricos de cabeça, braços e cintura que a desenvolta, neta de Caldeiras e Caldeirões exibia.

Desfeita a assembleia, disse o padre ao médico:

— Eu já ouvi aquilo cantado pela célebre Paulina da Madragoa, nas bacanais da rua de S. João, em casa do Terra. Que mágoa me faz ver assim abatida a filha de Francisco da Veiga Cabral!

— Ah! portugueses, portugueses! — exclamou Eliot — quem vos espanejara a poeira dos olhos! Vá a Paria, doutor, vá a Paris, e ouvirá as grandes damas da corte de Luís XV cantar tonilhos, seguidilhas de Espanha, e dançar as mais libidinosas sarabandas!

— Não irei a Paris ver isso — volveu o padre — nem tampouco outra vez consentirei que a minha sobrinha assista às tramoias teatrais de D. Joana. Não reparou que a menina parecia vexada?

— Se é tão inocente, quanto me persuado que é, não estava vexada. O vício aborrece tão somente aos que o conhecem. Inocentíssima é D. Leonor, e não se escandaliza de ouvir a irmã; pelo contrário, diante de pessoas íntimas, dança um sarambeque tão boleado que é um encanto de olhos.

— Feia, feia coisa, doutor! — recalcitrou o padre — Se a quer para esposa, vá-lhe jarretando essas tendências para sarambeques.

— Não que eu quero esposa que me agrade e alegre — replicou o francês — Péssimo sistema este dos maridos portugueses! Tornam as esposas chumbadas, tristonhas e sonolentas como umas lerdas despenseiras, por amor da moralidade; e vão-se gozar a vida com as amásias lestas, joviais e espertinadas para toda a casta de brincadeira! Ora eu prefiro estar divertido com a minha mulher a ir comprar os risos e as folias a casa das meretrizes. Antes quererei que ela me salte o sarambeque e me caia nos braços suavemente cansada, do que me resmungue impertinentes queixumes quando eu me recolher alta noite com saudades de uma concubina fresca e alegre.

— À francesa... — retorquiu Xavier.

— Vocês, os portugueses, se farão franceses afinal como o seu rei, que se veste, e come, e pensa, e ama à francesa.

— Assim será; mas eu quero que a minha sobrinha se eduque para marido português. Hei de procurar-lho em família ainda ilesa do contágio que por aqui nos deixou a de Saboia, a esposa dos dois irmãos. Há aí muito fidalgo que representa o velho Portugal, e vive sequestrado dos mananciais da corrupção de Lisboa. O dote da minha sobrinha, cento e cinquenta mil cruzados, quando for conhecido, há de ter muitos competidores, e eu darei a preferência aos titulares que vivem nos seus solares provincianos.

— A preferência, meu amigo, será bom que a dê sua sobrinha. Não vá sacrificá-la a algum rabicho do tempo dos Afonsos que vive no seu paço solarengo da montanha com o capelão que lhe explica os animais antediluvianos da sua pedra de armas, e apenas se deixa ver do sol e dos feudatários quando se embrenha pelos matagais a matar porcos bravos. Cautela com esses casamentos calculados sobre ridicularias das gerações que pertencem à mitologia.

— Lá em França são as filhas que escolhem os maridos? — interrompeu o padre.

— Em França escolhe o coração das filhas, e a razão dos pais. Mal por mal, se a escolha do coração é errada, antes isso que a violência imposta à filha na aceitação de um marido odiado. O que lá não há é a crueldade de sepultar as filhas no claustro, onde elas, muitas vezes, ressurgem para a devassidão, e vingam-se dos pais e das leis, em nome da natureza ultrajada. O doutor Xavier deve saber muitas histórias desta ruim espécie...

— Porque mo pergunta?! — acudiu o amante de Catarina.

— Porque sou o seu maior amigo, porque devia ser o seu mais íntimo confidente. Seria possível ignorar eu, o médico das mais gradas famílias da corte, o que é notório na roda ilustre em que floresceu o gentil Francisco Xavier? O que tenho feito, como discreto respeitador de todas as dores recalcadas no seio, é nem sequer dar vislumbres de querer violar o seu segredo. Qualquer homem vulgar me teria dado o prazer de consolar as lágrimas ocultas da sua saudade; mas o Sr. Xavier é tão extraordinariamente honrado e infeliz que nunca balbuciou o nome de Catarina de Castro, na efusão da sua dor, com receio de que eu lha adivinhasse. Mas, pois que chegamos a este lance supremo de franqueza — prosseguiu Eliot, abraçando-o, quando falarmos de Antoninha, sem testemunhas, diga expansivamente: «minha filha».

O padre colheu-o calorosamente nos braços, e murmurou por entre soluços:

— Eu nunca poderia ser mais seu amigo do que sou neste momento... Sinto-me menos só neste mundo, desde que tenho um irmão a quem possa falar na minha filha...

O lance de se reabraçarem seria virtualmente sublime da majestade dramática, se no peito do francês não levedasse, naquele instante, uma volumosa massa de infâmia, cifrada nestes algarismos: 150 000 CRUZADOS.

CAPÍTULO XXVI

Cresceu a preponderância de Isaac Eliot no afeto e nas intimidades do padre. Conversavam até altas horas da noite. Xavier contou-lhe a história dos seus antepassados desde Domingos Leite. Deliciava-se repetindo-lhe as miúdas particularidades do seu amor a Catarina. Era eloquente e interessante, porque represara a exuberância da sua mágoa, desde que o irmão se fora à Índia, e o conde do Rio se refusava a escutar-lhe recordos pecaminosos.

Das confidências do ex-varatojano passou Eliot facilmente às da freira bernarda. O padre autorizou-o a declarar-se único fiel do segredo, porque lhe era consolativo ouvir as frases repassadas de saudade que D. Catarina dizia ao médico em resposta de outras que o médico inventava ou refazia. Mediante a intercessão do velhaco, obtivera a freira que a filha a visitasse semanalmente, acompanhada da sua aia, e algumas vezes também do médico.

A menina, sempre ignorante do segredo do seu nascimento, contava ingenuamente à freira o seu amor a Josse Frisch, mostrava-lhe os versos e as cartas, chorava de saudades, e jurava professar naquele ou em outro convento se Frisch não voltasse.

Mas bem sabia ela que o seu amado pensava em voltar. O boticário alemão do canto da Cordoaria todos os meses lhe remetia cartas de Berlim, e recebia as respostas. D. Catarina admoestava-a a distrair-se de coisas ainda impróprias dos seus poucos anos, e a precatar-se contra grandes penas, se ao tio repugnasse tal casamento; no entanto, a comiserada religiosa prometia-lhe empenhar o valimento do médico em abrandar o tio, quando fosse tempo.

Antónia dissuadia o intento da freira, desde que Eliot, aludindo aos seus amores infantis, apodara com remoques o poetastro alemão. E, afora isto, nas idas a Odivelas, Antónia ouvira do médico expressões parecidas com as de Josse Frisch, quando ele, a medo, aventurava as primeiras balbuciações do galanteio. Esta segunda revelação afligia Catarina, prefigurando-lhe a desgraça da filha, se o médico a disputasse ao outro. Bem ou mal avisada, aconselhou à menina dissimulação, e artes de enganar, fingindo-se indiferente para o alemão, e desentendida para o francês.

Neste em meio, o cunhado de Leonor Caldeirão apertava o patrício a satisfazer os votos da noiva e das suas ilustres manas; a menina, porém, ainda espicaçada pelos estímulos da necessidade, retraía-se às amabilidades do médico, vencida por instintiva implicância. Ele, ao seu pesar, adorava-lhe o desdém, e a fidalga isenção na pobreza. Antónia, comparada a Leonor, no tocante a beleza, desmerecia muito; e, ainda nas finas graças da corte, a palaciana Leonor avantajava-se muito. Se o confronto lhe fosse penoso, a filha de Catarina consolar-se-ia ouvindo dizer que a mais nova das Caldeironas era a mais formosa menina de Lisboa, e que uma irmã de D. João V, indigitada a princesa mais linda da Europa, vendo Leonor, dissera que nunca vira viva nem pintada criatura tão perfeita. Mercadores opulentos e fidalgos alcançados pensaram na felicidade legal de se apossarem daquela joia; mas desviava-os a nomeada das irmãs, a entrada de forasteiros franceses e italianos na casa, e o viver um tanto airado e patusco daquelas abastardadas senhoras. Em compensação, o médico de mais voga, cavaleiro professo com tença, aparentemente rico pelo luxo da sege, da libré, dos pajens e das relações com a principal nobreza, era bom partido, e forte esteio à ruína suprema das três senhoras desvalidas e do professor de equitação e esgrima sem discípulos nem poldros.

Todavia, o médico, pesando o encargo de uma família afeita às pompas e ao desconcerto, vergou um pouco; e, neste dobrar-se, O coração premido deu de si o aleijão de comparar Antónia a Leonor, pondo no regaço da primeira, entre flores, cento e cinquenta mil cruzados, e no regaço da segunda, também entre flores, as áspides das irmãs. Nós gracejamos com o confronto; mas ele, quando se decidia por Antónia, ajoelhava mentalmente, pedindo perdão a Leonor. Não amava, sequer por amor ao dote, a filha do padre; mas cento e cinquenta mil cruzados, naquele tempo, dotariam a esposa de um marquês; a assimilação daquele tesouro infernou-lhe as vigílias; contava moeda a moeda de ouro até treze mil; emborcava a cornucópia fantástica, e via saltarem dentre o monte do metal carruagens, palácios, deleites em refestelada ociosidade, viagens, ostentações no seu país, bailes, mulheres, os seus salões a desbordar de nobres, e ele mesmo, entre eles, nobilitado, e salvo dos enfados da clínica, e do magistério da ciência no hospital real. Eis aqui o que foi.

Mas o cunhado de Leonor importunava-o, já receoso que Antónia galvanizada a ouro deslumbrasse a peregrina noiva, e ao mesmo tempo esporeava a cunhada incutindo-lhe os seus temores. A menina, bem que beliscada no seu orgulho, ria-se, e votava aos deuses infernais que lhe pusessem o noivo nos braços de outra. Isaac Eliot foi informado deste voto pagão. Quis dar explicações mentirosas das delongas no casamento. Leonor, amestrada pela mana que cantava a Sécia, aceitou-as, aprovou-as todas, dispensou-o de lhas dar notícias qualquer que fosse o seu proceder; e, para lhe mostrar que estava tranquila, ofereceu-lhe o pulso, e uma franca risada, redopiando um dos passos mais tocantes do sarambeque. Estas evoluções trituravam os ossos do médico até às medulas.

Por outro lado, Tomás Darcet vingava-se do hipotético cunhado sangrando-lhe as algibeiras com uns chamados empréstimos, e a mana Joana e a mana Maria, sob pretexto de prosseguirem na apelação dos pleitos perdidos, pediam com confiança, porque os interesses eram comuns, sendo ele já contado como da família e co-herdeiro nos bens litigados. Pois todos estes emolientes, capazes de deslaçarem as fêveras mais tensas do coração, eram improfícuos na tenacidade do médico. Leonor desprezava-o, e não fingia o desprezo; e ele, duas vezes vilão, nem se descravizava de uma, nem se afazia à ideia de prescindir dos cento e cinquenta mil cruzados da outra.

E nunca nos seus balanços de fortuna interveio a, conjetura de que o padre prescindiria do seu enlevo de casar a filha com um conde provinciano para lha dar a ele. Não sabemos quantos planos infames o dispensavam daquele dado essencial. O seu único impedimento era a paixão por Leonor, excruciante como a expiação, pesando-lhe sobre a alma como a forte mão de Deus que sustenta os incalculáveis mundos.

CAPÍTULO XXVII

Divulgou-se, ao mesmo tempo, que o médico francês não era casado com a mulher inculcada e aceite em Lisboa como sua esposa; tanto assim que ia esposar-se com a opulenta herdeira do desembargador Paulo Xavier, e já havia posto a francesa em casa afastada.

As duas novidades alvorotaram algumas famílias afreguesadas com o médico, e irritaram os peraltas ricos e ainda mais os pobres, espantados de que uma menina dotada de beleza, educação rara, e cento e cinquenta mil cruzados raríssimos, se enamorasse de um estrangeiro libertino e, para além do mais, herege!

As portas das casas honestas fecharam-se ao concubinário que ousara mentir à sociedade, aproximando das senhoras honradas a barregã. Fecharam-se poucas: tantas como hoje se fechariam. Ao mesmo tempo, os médicos e cirurgiões émulos do francês forjaram calúnias e baleias que o leitor verá formuladas em poemas nas Notas, quando vierem de molde.

Eliot queixava-se do seu pajem valido Henrique Rutier, atribuindo-lhe a vulgarização intempestiva do projetado casamento.

Era Henrique Rutier aquele sujeito cuja destreza em esbofetear portugueses o patrão gabava, quando ameaçou com um tagante o trino Fr. André Guilherme. Trouxera-o assalariado de França, quando lá foi conquistar a fabulosa amante de Um qualquer duque. Figurava trinta anos, era bem apessoado, e bazofiava conhecimentos impróprios da sua posição, O trato mútuo de senhor e pajem mais parecia convivência de amigos. O médico dava-se com ele mão por mão, segredava-lhe os seus projetos, emparceirava-o nas barganterias arriscadas, gratificava-o liberalmente, e atendia-o como a pessoa mais prática na pilotagem de mares aparcelados para quem navega com todos os ventos.

Rutier, com efeito, era um homem de procedência limpa, que mudara de nome e terra para fugir com o pescoço ao carrasco. Em Perpignan o filho de um magistrado fora condenado à perpétua grilheta como falsificador de firmas. Depois, na evasão da galé, matara um guarda, e vingara escapar às perseguições. Em Perpignan chamava-se Alexis Fabre, e em Lisboa Henrique Rutier.

O médico encontrara-o homiziado na Picardia, desprezado da família, às sopas de uns seus parentes, que o eram também remotamente do forçado. Ofereceu-lhe passar a Lisboa; e, sob o título de pajem, mantinha-o no nível de amigo e confidente.

Confessou Rutier que muito de indústria espalhara a nova do intentado casamento por dois motivos graves: primeiro, afastar as pretensões e esperanças das Caldeironas; segundo, publicar hoje o que seria necessário dizer amanhã.

Isaac Eliot achou-lhe razão quanto ao fim; mas da sua paixão por Leonor gemeu umas lástimas tamanhas que o criado, num ímpeto de zelo, disse ao amo, sem prévia licença e muito familiarmente, que era tolo, provando-lho com este argumento:

— Case com a rica, e depois merque a pobre, percebe? Merque todas as Caldeironas, que ainda lhe há de sobrar dinheiro.

Esta ideia não era original. O amo já a tinha concebido; mas sonegou-a com tal qual vergonha do confidente.

A notícia do casamento esvoaçou como se a fama enviasse uma circular a cada família; e então, nas boticas, imagine-se que falario, sendo naquele tempo os boticários a gazeta viva com tantos colaboradores quantas línguas refinadamente mordazes bandarreavam pelas esquinas das duas Lisboas, oriental e ocidental.

O boticário, porém, que mais se impressionou com o boato foi o alemão Jácome Valebelt, medianeiro entre os amores de D. Antónia Xavier e Josse Frisch.

Ainda nessa mesma semana tinha ele remetido à menina uma volumosa carta chegada de Berlim, e transmitido outra não menos compacta ao seu patrício. Raciocinou sobre o caso, e conjeturou que a troca das últimas cartas seria o rompimento dos amores, até mesmo pelo volume. Talvez — inferiu ele — se dessem compridas explicações ou trocassem a mútua papelada. Enfim, o boticário, Ouvindo os frequentadores e calando prudentemente o que podia depor na matéria, aguardou o dia do próximo paquete.

Convém saber que o boticário da Cordoaria Velha odiava Isaac Eliot. Fora o caso que o médico receitara um vomitório manipulado por Jácome. Ora o doente esteve a pique de vomitar a vida. Chamado a toda a pressa, Eliot examinou a poção, e perguntou quem aviara a receita. Foi à botica e injuriou o alemão, chamando-lhe grã besta, e ameaçando-o de o acusar ao físico-mor do reino, porque ele na interpretação dos sinais indicativos das doses confundira onça com oitava.

O doente melhorou com a descarga abundante, graças ao equívoco; mas o médico daí por diante, sempre que formulava para novo doente, recomendava que não se aviasse a receita na botica de Jácome Valebelt, que era um burro assassino. Vulgarizou-se o descrédito do alemão, propalado pelo autorizado médico, e por tal maneira que o pobre homem não vendia nada, e conservava apenas a freguesia do gamão e da maledicência.

Pensava ele um mudar de terra com as suas drogas revelhas e avariadas, quando o acaso lhe abriu oportunidade de fazer-se necessário ao médico inimigo, e refazer a sua fortunazinha esbanjada.

Em tempo competente chegou carta de Berlim para D. Antónia Joaquina Xavier. O boticário relutou com a miséria que o espicaçava, antes de se render à ignomínia; mas os credores afogavam-lhe os respiráculos da consciência, o senhorio intimara-lhe a deslocação dos garrafões, do ervaçal seco que se Pulverizava nas gavetas, e do S. Miguel do balcão que, já carcomido, com a balança na mão e um pé sobre o cornígero Lúcifer, parecia dizer ao dono que as balanças eram as dos seus pecados, e que o diabo, apesar de esmagado no seu peito de pau de nogueira, o levaria mais dia menos dia.

Passava, uma tarde, o doutor Eliot na sua sege. Jácome saiu à rua, fez sinal de parar ao boleeiro; e, acercando-se da portinhola, segredou-lhe que tinha coisa que lhe dizer muito interessante à sua honra.

— À minha honra?! então que temos? — respondeu com sobranceria Eliot.

— Di-la-ei quando vossa mercê se dignar vir a minha casa, ou consentir que eu vá à sua.

— Não duvido ouvi-lo na sua casa. Vou ali ver o marquês de Távora, e ao anoitecer aqui estou.

Neste momento, um negrinho da casa do doutor Xavier parava na testada da botica, esperando que o boticário entrasse. Eliot, reparando no escravo, perguntou:

— Aquele moleque não é aqui da rua do Outeiro?!

— Sim, senhor.

— Que vem aqui fazer à botica?!

— Vossa mercê o saberá logo.

Já os acicates da curiosidade espicaçavam a inquieta curiosidade do médico.

Deu pressa ao lacaio, e despediu-se.

O negro ia procurar a carta de Berlim e entregar outra da sua ama. Jácome respondeu-lhe secamente:

— Não há carta.

O escravo, percebendo a dor que levava à sua senhora, encarou com amargurado espanto o boticário e murmurou:

— Não há!?

— Não há, já to disse.

Passados minutos, Isaac Eliot, que no pátio do marquês de Távora recebera a paga das visitas feitas, e ordem de não voltar, saltava da sege, mandava o boleeiro esperá-lo às Portas de Santa Catarina, entrava na botica e subia ao primeiro sobrado da casa, seguido do boticário reverentemente mesureiro.

Sentou-se num velho tamborete, e o boticário em pé, diante dele, tirou estas vozes do íntimo peito:

— Quisera eu, Sr. doutor, oferecer-lhe uma cadeira digna; mas não a possuo. Algumas alfaias preciosas tive; porém, obrigado pela crueldade com que vossa mercê me desacreditou, vendi-as. Estou muito pobre, e os meus colegas, cuja ignorância vossa mercê protegeu, estão ricos.

Eliot, com a boca escancarada de assombro e cólera, interrompeu, erguendo-se:

— Então foi para isto?!

— Não, senhor, não foi para isto; queira sentar-se e ouvir um homem que paga o mal com o bem, e que, em troca do descrédito que lhe deve, quer salvar a sua honra, ou proteger os seus interesses arriscados. Ouvi dizer que o Sr. doutor casa ou pretende casar com a sobrinha do padre Francisco Xavier, a qual herdou do seu pai...

— Sim... — atalhou Eliot, impaciente e aguilhoado pela desfeita que acabava de sofrer no pátio dos Távoras — então que tem a dizer-me a tal respeito?...

— Que essa rica herdeira ama outro homem e é dele amada com o maior ardor e com a firme esperança de que há de ser seu esposo...

— Quem é?... o frade trino? — acudiu o outro turvadíssimo.

Sorriu-se o boticário e respondeu:

— Não sei de que frade trino me fala vossa mercê! Se eu lhe digo que a pessoa espera ser esposo de Antoninha Xavier, já vê que não se trata de frades, salvo seja!

O namorado, e invencível rival do Sr. doutor Eliot, é um jovem prussiano...

— Frisch?

— Esse mesmo, Josse Frisch, filho do sapientíssimo João Frisei, e ele mesmo poeta, gramático, filósofo, etc. Já vejo que o conhece, e não lhe deve ser de todo estranho que a menina, há dois anos, se a deixassem ou se ele tivesse o desembaraço de muitos e ela o de muitas, a esta hora estariam ambos em Berlim muito descansados, no gozo dos cento e tantos mil cruzados do desembargador Paulo Xavier...

— Mas essas relações continuaram?!-replicou o médico, esbugalhando os olhos cintilantes de lumes felinos.

— Continuaram, continuam e continuarão, se...

— Como é que se correspondem? — atalhou Eliot.

— Carteando-se; pois como há de ser?

— Quem recebe as cartas? é o que eu pergunto.

— Eu. Recebo as dele e remeto-as a ela; recebo as dela e remeto-as a ele. Dito isto, é escusado juntar que depende de mim continuar ou interromper o comércio epistolar destas duas avezinhas, que estão ganhando pena para voarem. Contaram-me que o Sr. doutor ia casar com a herdeira. De mim para mim pensei eu logo: se o casamento depender da vontade dela, este boato é uma história; e se o doutor Eliot, (disse eu na ausência) está fiado nalguma promessa da menina, ela engana-o; e eu então, em paga do mal que me faz o doutor, vou desenganá-lo para que se precate e combine as coisas de modo que a ave não bata as asas.

Demorou-se Eliot a mordiscar as unhas e a roer-lhes o sabugo, guinando feiamente os olhos de lado a lado.

Tinha meditado o que quer que fosse.

Depois, erguendo-se, apertou a mão de Jácome, e disse, sacudindo-lha:

— Obrigado. Serei grato ao seu aviso, remediando o mal que fiz.

— Saibamos então: — volveu o boticário — a última carta que recebi de Berlim posso dar-lhe o destino das outras, ou retê-la?

— Ah! o Sr. Jácome tem no seu poder uma carta de Frisch? — exclamou Eliot agitado por novo plano.

— Que chegou ontem; e tenho outra de Antónia que chegou hoje.

— Dá-mas?

— Não, senhor: mostro-lhas.

E, sacando-as da algibeira interior da véstia, acrescentou:

— Ei-las aqui.

Eliot conheceu no sobrescrito a letra de Antónia.

— Franqueza! — volveu o médico — Isto é um obséquio ou um negócio?

— Como?

— Dá-me essas cartas ou vende-mas?

— Franqueza! Vendo-lhas, Sr. doutor, para me indemnizar das drogas que não vendo há cinco anos, por causa da difamação com que vossa mercê me afugentou a freguesia. Quando um homem mente à confiança de outro, e faz isto que eu faço, é que a desgraça O aperta. Preciso dinheiro, mas pouquíssimo em proporção do serviço que lhe faço. Quero um por cento.

— Não o entendo... Um por cento?! de quê?

— Se a namorada de Josse Frisch tem cem mil cruzados, eu receberei como gratificação de a desencaminhar de Frisei para vossa mercê, a centésima parte, mil cruzados, quantia inferior às minhas perdas de cinco anos; mas bastante para mudar de terra e pagar dividas; porém devo estipular uma condição óbvia: a minha percentagem entra em caixa quando as cartas saírem da minha algibeira para a do Sr. doutor.

— Amanhã respondo — concluiu Eliot — mas considere o negócio tratado.

CAPÍTULO XXVIII

— As cartas por mil cruzados são baratíssimas — encareceu Henrique Rutier batendo as palmas.

— Contando com a tua habilidade, que eu gratificarei com outros mil cruzados — acrescentou Isaac Eliot.

— Diga lá o seu plano a ver se concordamos.

— Concordamos sim, meu Henrique. Plano aqui há só um: imitando a letra de Frisch, dirás a Antónia o bastante para ela se julgar esquecida ou desprezada.

— Isso! — afirmou Rutier.

— E imitando a letra de Antónia, dirás a Frisch que obstáculos insuperáveis a obrigam a casar à vontade do seu tio, etc.

— Tal qual. Pensamos os dois pela mesma alma. Esse et etecetera é exclusivo do meu engenho. Se as letras se fingirem facilmente, discursarei a propósito dos deveres dos filhos e das sobrinhas. Ele dirá coisas sublimadas só inferiores às coisas superfinas que ela há de expender.

— És o rei dos velhacos! — aplaudiu o filho da sarracena batendo-lhe no ombro duas cariciosas palmadas.

O boticário, concluída a veniaga, renovou as drogas e os créditos, obrigando com súplicas o médico a restabelecer-lhos. Eliot acedera aos rogos que eram equívocas ameaças de desfazer a perfídia, avisando secretamente D. Antónia Rutier aconselhava todas as concessões ao traidor enquanto o casamento se não fizesse e encarregava-se na extrema apertura de arpoar O segredo no bucho do boticário com duas estocadas. O certo, porém, foi que Jácome inventou por esse tempo um «unguento para impigens de humor frio» e uns «rebuçados para obstruções do bofe» com aprovação do cirurgião — mor do exército português e cavaleiro professo na ordem de Cristo, o doutor Isaac Eliot, bem conhecido da nobreza lusitana, dizia o anúncio da Gazeta.

Ensaiando a mão primorosa na imitação das letras, Henrique mostrou ao amo a primeira prova. O médico hesitou em distinguir as cartas verdadeiras das imitadas. A destridade do falsificador justificava a sentença que o condenara a perpétua grilheta nas galés de Touion. «Mas — dizia ele com tal qual filosofia bebida nos frenologistas — que culpa tenho eu, se a natureza me aperfeiçoou tanto a bossa?»

Resumidamente, das duas cartas, que serviram aos ensaios de Rutier e nortearam o plano de Eliot, constava que Josse Frisch obtivera licença do seu pai e comissão da academia de Berlim para continuar em Portugal as suas investigações científicas nas ciências naturais; não vinha, porém, a Portugal antes do ano seguinte, 1730, porque só então seu pai recolhia das suas renovadas excursões a Inglaterra e Irlanda. Esta carta denunciava propósitos algum tanto arrojados e menos conformes ao conceito de perfeição que o douto progenitor formava da candura do rapaz. O intento de se casarem parecia matéria deliberada. Depreendia-se do fraseado das duas cartas que a vontade do padre e do tutor seriam fraco impedimento ao santo enlace dos amores contrariados. Entre outras expressões usuais da paixão vulgar, Josse escrevera as palavras rapto e fuga com a desassombrada franqueza de quem pensa segredá-las à mulher amada e amante pela sua parte, a menina, com raro resguardo em anos inocentes, omitia na sua carta o consenso em fugir; mas entregava-se ao destino, e fundava a sua confiança na cega fatalidade, acrescentando estas linhas:

...Tenho tido aflições, que me cortam o coração, desde que o médico me diz palavras semelhantes às tuas, e se fica a olhar para mim muito firme à espera que eu lhe responda, ou a ver se me lê no rosto o amor que te tenho e a raiva que ele me faz. Tenho muito medo à amizade que o meu tio ganhou a este francês... E o seu único amigo. Não está contente senão com ele. Em dia que o não veja ninguém o atura. Até hoje nada te disse a respeito do médico para evitar que te inquietes; nem te deves inquietar, meu amado Josse; mas quero que lá saibas que eu vivo cada vez mais mortificada. O que me vale é o extremo carinho da freira que me dá esperanças e alento, prometendo-me a proteção que me daria a mais estremecida mãe. Contemos com ela; também te quer muito, por ver quanto eu te amo; e não devemos contar menos com o valimento da D. Paula, que faz o que quer com o meu tio, não sei porquê. Oxalá que a tua primeira carta me diga que arranjaste modo de vir para Lisboa, com licença do teu pai. Se torno a ver-te, meu Josse, morrerei contente, se não puder viver feliz. Esta poesia que me mandaste mostrei-a à minha freira. Ela chorou, e disse-me que a faziam chorar os versos em que tu me figuras morta e vens chamar-me à sepultura. Que triste pensamento! Não penses desgraças tamanhas, meu amado Josse! Deus há de permitir que me leves para o teu país cheia de vida e contentamento. Cedo ou tarde assim há de acontecer...

Este fragmento, encerrando o passado e o esperançoso futuro de Antónia, não podia ser mais explícito. Eliot colheu aí bastantíssimos elementos com que gizar o seu plano. Ele nos dirá oportunamente o itinerário que traçou em consulta com Henrique Rutier.

Entretanto, Antónia, assustada com a falta da carta, escrevia outra, e desoprimia-se a chorar na grade de Odivelas.

D. Catarina fantasiava as consolações triviais do costume; extravio no correio, ou retardamento na remessa; mas pressagiava desastre. As pessoas que padeceram muito avultam agoureiramente as desgraças alheias. Que diremos das mães na condição de Catarina?

O padre, apesar de perspicácia de pai avaro da sua filha, nem de leve suspeitava os desígnios do médico. A compostura respeitosa do francês na presença de Antónia era tanta, que Francisco Xavier, por vezes, reparando nos modos gélidos do seu médico e na gravidade da filha, dizia de si consigo: «Parece que se detestam!»

Uma vez disse ele a Eliot:

— O doutor trata esta menina com umas cerimónias que já raramente se usam com as damas de idade madura. Olhe que ela fez há poucos meses catorze anos...

— Mas como aos treze já amava, afiz-me desde então a considerá-la senhora — respondeu Eliot.

— Já amava! — replicou o padre em tom jovial — Não amava, brincava. O primeiro amor de uma menina é a vingança de uns arrufos com a boneca; é uma diversão pueril. Os arrufos passam, e a menina volta às suas bonecas.

— É coisa que sua... filha — perdão! — bonecas é coisa que a sua sobrinha nunca teve, desde que eu a conheço.

— Tem-nas no espírito: brinca e folga com as suas fantasiazitas como nós os do sexo duro com os fantásticos espetáculos das nossas ambições de ciência, riqueza, glória. Creia que a minha sobrinha está tão afastada da criancice do tal amor como eu estou corrido do cabedal que fiz dessa rapaziada.

— É cedo para se arrepender, meu caro amigo do coração... — objetou o francês.

— Não gosto do ar com que me faz a advertência, doutor! — acudiu o padre desassossegado — Sabe alguma coisa?

— Do coração humano... bastante.

— E do coração da minha sobrinha?

— Quem conhece um conhece-os todos. As variedades são acidentes casuais das circunstâncias. É o barro com diversas cores; mas tudo barro.

— Nada de figuras, Sr. Eliot. Linguagem de amigo. Sabe se a minha sobrinha se carteia com o alemão?

— Não sei.

— Qual é então a base das suas desconfianças?

— O coração humano — insistiu Isaac.

— O Sr. é especulativo da pior filosofia! Defendo minha sobrinha dessa suspeita extravagante. Ainda que ela quisesse escrever ao prussiano ou aceitar-lhe as cartas, quem podia ser o medianeiro na correspondência? As visitas de Antónia são as poucas que o doutor sabe; e não visita ninguém, salvo as religiosas de Odivelas. Quem lhe parece capaz de ser terceiro ou terceira na correspondência? As irmãs de Fr. André Guilherme? as Caldeironas? ou as freiras?

— Não acuso ninguém, Sr. Xavier-retorquiu retraindo-se Eliot — nem afirmo que a Sra. D. Antónia se carteie com o poeta Frisch. Porém, se um dia o acaso nos desenganar, recorde-se então de que eu, sem poder apresentar as provas, desconfiei que esta menina não brincava com o amor tão candidamente como com as bonecas...

— Pois bem... — concluiu o padre — antes que o desengano venha com providências tardias, pensarei em casar Antónia. Verá quantos maridos da melhor nobreza se rivalizam... Corte-se radicalmente o mal, não é assim?

— O casamento forçado... — gaguejou o francês — corta, mas radicalmente não. A mulher que ama outro... não leva em si, nem dá ao marido imposto, a felicidade.

Francisco Xavier ponderou as palavras de Eliot, e balançou a cabeça repetidas vezes, sorrindo.

— Há no coração humano abismos que o doutor ainda não sondou. Está muito novo, e viveu muito na Turquia onde os péssimos costumes, pelos modos, estão armazenados nos haréns; ao passo que em Lisboa andam por aí às soltas e a retalhos... As mulheres são várias...

— Disse lá o meu Francisco 1°, e acrescentou: muito tolo é quem se fia nelas.

— A inconstância da mulher é uma das perfeições deste planeta.

— Filosofia nova!

— Velhíssima, doutor. A constância degenera em tédio, e o tédio é o cancro que rói as frágeis ligações do coração com a felicidade. A variedade remoça a alma, repovoando-a de imagens novas. Isto é tão antigo, que nem eu sei onde Ovídio e Horácio o acharam. Mas a minha questão, vista por outro lado, é menos antiga e mais moralizadora. Se não fosse a volubilidade das mulheres, quantos enlaces desgraçados produziria um imprevisto choque de olhos e corações? Quantos casos sabemos nós de donzelas que aceitaram o convento como holocausto do seu amor contrariado pelos pais; e, à volta de poucos dias, aceitaram os maridos que os pais lhes escolheram? Que valera a razão dos pais, se a paixão das filhas fosse rebelde e duradoura?

— Mas — atalhou o francês — se a inconstância da donzela se continua nos hábitos da esposa?...

— Exceções não são argumentos — replicou o padre — A depravação do adultério é peste que lavra pouco em Lisboa. Os maridos portugueses castigam briosamente.

— E são degolados ou enforcados, quando se vingam.

— Se matam mulheres inocentes...

— Seria inocente uma D. Úrsula de Odivelas que foi encontrada com um frade trino?! — perguntou Eliot.

— Era; e, porque era inocente, o comendador Brás da Costa seu marido foi degolado.

— Ouvi dizer o contrário, quanto à candura da dama.

— Não lho digo eu, que mais ou menos conheci todos os figurantes dessa tragédia, passada em 1710. Já lá vão vinte anos! parece que se passou ontem!... Eu lhe conto: Foi meu contemporâneo, no colégio das artes em Coimbra, António Coutinho de Lacerda, o mais belo rapaz daquele tempo, e um dos mais antigos fidalgos deste reino.

Este jovem amava D. Úrsula César, da arrogante prosápia dos Mascarenhas. Era filho segundo; mas esperava herdar os grandes haveres do seu tio D. José Pereira de Lacerda. Entre as duas famílias estava pactuado o casamento, quando Úrsula, vendo acaso, em Lisboa, Brás da Costa, capitão de cavalos, e galã de famosas aventuras, encovou a dignidade senhoril e a honra do juramento nuns abismos do coração que o doutor Eliot parece desconhecer. Após a notícia da perfídia, o meu pobre amigo António de Lacerda recebeu a segunda e mortal punhalada. Úrsula casou, e António de Lacerda morreu ao mundo vestindo o hábito de frade trino. Depois embarcou-se para Argel a resgatar cativos, e por lá se ficou três anos a servir os miseráveis no hospício português. No discurso dos três anos, a pérfida expiava duramente o seu desprimor de fidalga e de mulher transgressora de sagrados juramentos. O marido enfastiara-se dela até ao ódio, e volvera-se às suas afeições antigas que o repuseram na velha libertinagem. Úrsula compreendeu que a sua desgraça era um castigo; queria morrer; mas pedia a Deus e às pessoas compadecidas que lhe dessem modo de pedir perdão a Fr. António de Lacerda. Os seus próprios parentes, logo que os frades da Redenção recolheram, pediram instantemente a Fr. António que perdoasse a Úrsula. Ele jurou pela cruz do seu hábito que lhe perdoara no dia em que fez profissão. A enferma instou pela sua presença. Queria que ele visse aquelas descarnadas faces, aqueles olhos apagados, aquela transfigurada imagem do crime e da ingratidão. Esquivara-se ainda o frade, enviando-lhe por outrem palavras de muita caridade e esperança de ainda se recobrarem das penas da vida na glória prometida aos que muito choraram. Instou de novo a inconsolável e exasperada senhora. Moveu-o a autoridade do provincial Fr. António da Fonseca. Foi finalmente à quinta de Odivelas, onde D. Úrsula de Mascarenhas residia. Alvoroçada com a nova, a mulher de Brás da Costa, fiada na cavilosa ausência do marido em Lisboa, saiu a recebê-lo na primeira sala. Não sei o que passou naquele conflito. O que todos souberam foi que Brás da Costa assomou inopinado à porta da sala, quando a esposa estava de joelhos aos pés do frade; e, arrancando da espada, traspassou o coração de Fr. António de Lacerda. Úrsula perdeu o alento. O marido ia matá-la, quando alguns parentes dela o investiram e desarmaram. Gritava o homicida que colhera de sobressalto os criminosos em adultério; mas, D. Francisco de Mascarenhas, da casa de Óbidos, que solicitara a vinda de Fr. António de Lacerda, e o acompanhara, amordaçou o caluniado como se amordaça um molosso e levou-o de rojo até o entregar aos esbirros. A infeliz dama, recuperando os sentidos, e sabendo que o seu desgraçado amigo estava morto, chamou os fidalgos e o clero da terra para que lhe ouvissem a sua derradeira confissão. E, com as avançadas da morte já a regelarem-lhe o peito, referiu tudo que provava a santa inocência do mártir. Ela rendeu o espírito a Deus no dia seguinte, e Brás da Costa sobpôs a cabeça ao cutelo do carrasco quarenta dias depois: tão rápida correu a justiça de mãos dadas com a vingança pública. Aqui tem a história do frade trino: é assim que o doutor a sabia?

— Pouco mais ou menos — respondeu desdenhosamente Eliot.

— Já vê que em Portugal...

— É preciso cuidado com o carrasco... e com os frades... — acrescentou o francês sardonicamente.

— Diz bem, doutor. Acautele-se dele e deles.

— Não terei contendas com tal gente por tais motivos. A mulher, que houver de ser minha esposa, há de ser honesta.

— Mas não precisa casar e matar os amantes da sua mulher. Basta-lhe publicar suas ideias a respeito dos frades... que dois carrascos lhe prometo eu a míngua de um.

— A propósito de frades — volveu Eliot — que é feito daquele Fr. André Guilherme que abocanhava as Caldeironas?

— Está na província de Entre Douro e Minho pedindo esmola para a redenção dos portugueses cativos em Marrocos.

— Admiro que não viesse despedir-se do doutor e da sua sobrinha!

— Não pôde. Recebeu à noite ordem de partir na madrugada do dia seguinte para a sua missão. Aqui tem a carta de despedida.

Eliot leu mentalmente: Desculpe vossa mercê ao frade obediente a falta do amigo fiel. A minha querida discípula uma saudade muito cordial. — Fr. André.

Fechou o francês a carta pelas dobras muito devagar e murmurou:

— Estes frades...

— Que têm estes frades?

— O império da melhor parte do mundo...

— Da parte mais iluminada do mundo, quer dizer o Sr. Eliot.

— Não, senhor: da mais corrompida.

— Como assim? o que não dirão hereges!

— O poder do clero agiganta-se ao mesmo passo que a depravação dos costumes professa ainda o terror do inferno — replicou enfaticamente o luterano — Quando se apagar o inferno, extinguem-se os frades.

— Cuidado, doutor! — acudiu mais faceto que escandalizado Francisco Xavier — Não repita isso em presença do meu escudeiro, se me não quer dar o dissabor de o ver assar.

CAPÍTULO XXIX

Em Berlim e em Lisboa, simultaneamente, receberam Antónia Xavier e Josse Frisch cada um sua carta.

A do prussiano era lacónica. Começava desculpando-se de não haver escrito no correio anterior; a sua dor fulminara-o. Explicando esta dor, compendiava em frases curtas e recheadas de interjeições, a violência irresistível que o pai lhe fazia, casando-o com uma parenta rica de quem era tutor. Vaticinando o porvir que o esperava, sorria à Parca e a chamava como redentora. Henrique Rutier, sabendo que Frisch era poeta, assentou que o termo genuíno do caso e da pessoa era Parca em vez de morte. Isaac aprovara o alvitre do pajem, laureando-o com uma gargalhada. Concluía, depois de algumas frioleiras usuais colaboradas pelo médico, advertindo Antónia que não lhe escrevesse, porque já não teria tempo de receber em solteiro a sua resposta, e tão depressa casasse iria em comissão da academia à Escócia.

A carta ida de Portugal para Josse Frisch era mais extensa, porque Antónia escrevia os caracteres garrafais da época, facílimos de imitar. Rutier, vaidoso do seu engenho, gozava em dobro o prazer de compor quatro páginas de má novela por avultada gratificação.

Falsificando, porém, o dizer singelíssimo de Antónia, teceu um enredo com as suas peripécias desgrenhadas de exclamações, de apóstrofes, de raptos e até de monólogos delirantes; mas a urdidura do entrecho não honrava a fantasia de Rutier, bisavô de alguns modernos romancistas do seu país. O seu tio (contava a menina em linguagem já plangente, já ramalhuda) desconfiado da continuação do seu amor, tratara em lhe arranjar marido tão cautelosamente que ela — a infeliz! — vira pela primeira vez um fidalgo de Braga que ao mesmo tempo lhe era apresentado como noivo. Desmaiara, dizia ela, e, tornando a si, exclamara as lamentações que reproduzia na carta com prodigiosa memória. Eliot achara desnatural a reminiscência dos clamores fraseados em conceitos e trocadilhos; mas Rutier, o autor rebelde à razão e à natureza, defendia a sua obra, desfazendo no gosto um tanto moirisco do patrão. E riam ambos, nestas contendas do realismo contra a retórica, até lhes doerem as ilhargas.

Consumara-se a infâmia.

Do efeito destas duas cartas diremos já a porção de angústia que coube à filha de D. Catarina de Castro.

Leu e não duvidou. Aquela era a letra de Josse. O papel era diverso das cartas dele: mas semelhante diferença despercebeu-a a alma atribulada na transformação da sua vida, no instantâneo anoitecer do seu dia apenas alvorecido. Foi ao mosteiro de Odivelas, mostrou a carta às três religiosas, que a confortaram: mas havia uma só que chorava com ela.

D. Paula Perestrelo e a irmã valiam mais como consoladoras. Ungiam-lhe a ferida do coração com os bálsamos triviais, incitando-a a escolher novos afetos, picando-lhe o amor próprio, insinuando-lhe o desforço do orgulho, encarecendo-lhe enfim a formosura e o dote.

— Se não tens um marido poeta — dizia soror Paula — terás uma coroa de condessa, minha filha!

— Quem diria que o tal fazedor de versinhos de pé quebrado havia de sair-se assim como qualquer tendeiro bestial que casa com uma parenta endinheirada! — observava D. Maria da Luz, tentando a cura pelo método, ainda hoje vigente, de afidalgar as aspirações de Antónia.

Nada obstante, a bisneta de Ângela, voltando para Lisboa, adoeceu, deitou-se, teve febre, e assustou o pai.

Às carinhosas interrogações do padre nada respondeu que revelasse a causa da doença. Eliot assistia-lhe tão assíduo que Xavier, abraçando — o com o estremecimento paternal, exclamava:

— Salve-ma, doutor, salve-ma já que teve a crueldade de me não deixar morrer, antes que eu conhecesse... A minha filha!

Era a primeira vez que o padre vencia, na presença do médico, o seu pejo de sacerdote e pai. Pediam perdão por ele as lágrimas que lhe derivavam nas faces.

Eliot receou pela vida de Antónia; mas, figurando-se a hipótese da morte, cogitou logo nova traça a respeito da herança do padre Xavier. A riqueza de Antónia podia e devia dar a felicidade a alguém, sem necessidade absoluta da vida da sua dona. Duas frases de Henrique Rutier esclarecem as hipóteses de Eliot.

— Dê-me algum papel escrito pelo homem. Quero ensaiar-me a tempo.

Pensavam em forjar o testamento do padre, se ele sobrevivesse à filha.

No entanto, Antónia Joaquina cobrou melhoras quando leu uma carta de soror Paula, avisando-a de que a sua amiga D. Catarina de Castro sofria por amor dela, tanto que se receava pela sua vida. Galvanizou-a aquele santo amor. Não conhecera outro, desde que Paulo Xavier a deixara menina. O amor de Josse Frisch era-lhe uma recordação infernal, um complexo de sentimentos em que sobressaía o ódio.

O padre, quando a viu fora do leito, beijou as faces de Eliot, cingiu-o ao peito freneticamente e exclamou:

— Devo-lhe a minha filha!...

— E eu devo-lhe um conceito que não mereço — disse cavilosamente modesto o doutor — Deus, sendo bom como é, não roubava a um pai tão extremoso uma filha tão amável. Eu por mim não fiz mais que incutir-lhe no espírito a vontade de viver para amparo do seu tio.

— É um anjo! o doutor é um anjo!... — balbuciava o padre enxugando as lágrimas.

A importuna frequência do médico irritava os nervos da convalescente pela sua parte nada tinha que agradecer à medicina. Os remédios receitados por Eliot mandava — os ela emborcar na pia dos esgotos. Era-lhe odioso aquele homem que, na ausência do padre, e com a liberdade de médico, devassando-a nos segredos do coração, deixava ao seu pesar perceber que os adivinhava; e ao espanto de Antónia respondia com algum galanteio desta espécie boçal:

— O amor é feiticeiro.

A infâmia bestificava-o, rosto a rosto da vítima.

Cuidou Antónia que, refugiando-se na quinta de Camarate, descansaria da surda luta da raiva em que a punha o médico. Pensava que ele raras vezes iria ao campo.

Pediu ao tio que a deixasse ir para a quinta passar o verão. O padre condescendeu alegremente, inferindo da petição que as conjeturas de Eliot, quanto à correspondência amorosa, desvaneciam-se de todo, pedindo-lhe a filha um viver ainda mais solitário e desatado de relações.

Em Camarate, agravou-se a sombria tristeza de Antónia. Às pessoas aflitas o silêncio dos montes e dos arvoredos parece que lhes apura a sensibilidade íntima quando a alma chora. A soturna mudez do céu e terra como que reveste de formas sepulcrais as saudades e esperanças. O decantado murmúrio dos arroios e a toada murmurosa das selvas são frases gastas e desbotadas que já tiveram certa valia prosódica e bucólica nas pastorais de Rodrigues Lobo e Álvares de Oriente. Os desgraçados que se embrenham nas aldeias só lá encontram o refrigério do aniquilamento, quando o enojo os dissolve.

Ainda assim, Antónia queria morrer naquele ermo, e repousar no jazigo de Ângela e de Francisco Mendes Nobre, seus bisavós, que apenas conhecia tradicionalmente de lhes ver os nomes no epitáfio. O padre, afligido, chamava Eliot todos os dias, embora conhecesse a repugnância de Antónia. Vingava-se ela fugindo para Odivelas; porém Eliot, em nome da ciência, induziu o padre a desconsentir nesses longos passeios a cavalo que extenuavam a enfraquecida compleição da filha.

A proibição autorizada pelo médico sobre-excitou Antónia. Subjugados os ímpetos da cólera, voltou a febre, a palidez, o quebrantamento. Amiudaram-se por isso as visitas do doutor, e renovaram-se nele os receios de que a enferma se consumisse na febre ética. Ao mesmo tempo, Francisco Xavier queixava-se de angústias no coração, turvações, ânsias que o espertavam de noite sufocado pela tosse. Originava estes padecimentos em remotas dores morais; porém, asseverava que uma noite, assistindo à filha, que dormia ofegante, pensou que ela estava na agonia da morte, e então sentira e ouvira estalar-lhe o que quer que fosse no coração. E desde aquela hora nunca mais descansara sobre algum dos lados.

Eliot depreendeu que o padre tinha lesão grave, denunciada no pulso.

Por esse tempo, perguntou o médico a Henrique Rutier:

— Como vão os ensaios?

— Bem: e como está a jovem?

— Mal, e o pai pior.

— Pois, a respeito da letra — disse o pajem — não lhe dê preocupação. Trate o doutor de arranjar o rascunho de testamento, e veja lá como faz isso, percebe? Olhe que a minha perdição devo-a à bestialidade de um herdeiro; mas o parvo foi também condecorado com a grilheta. Veja lá, isso de testemunhas e de tabelião como se faz. Será bom que o padre faça um testamento, e que o doutor seja o encarregado de o apresentar. Depois, passe-mo legal, que eu o tornarei legalíssimo. Cautela! Olhe que na Ribeira das Naus também há grilheta...

CAPÍTULO XXX

Por este tempo recolhia ao seu convento o sobrinho de D. Feliciana com as esmolas colhidas Entre Douro e Minho para resgate de cativos. O padre redentor Fr. José de Paiva, muito afeiçoado ao virtuoso André Guilherme, pedira ao provincial que lhe cedesse como companheiro à moirisma aquele operário de vontade fervorosa e forças juvenis que o adjuvassem na sua cansada velhice.

Deferido o requerimento, o mestre de Antónia apenas poderia deter-se oito dias na capital, enquanto se aprestava para a viagem a nau de guerra Nossa Senhora da Lampadosa.

Visitando a mãe e as irmãs, soube que o padre Francisco Xavier e a sobrinha passavam o estio em Camarate, por causa da enfermidade de Antónia, que não prometia longa vida. Uma irmã de André, casada com um abastado mercador chamado Alberto Borges — e a mais íntima de Antónia — segredou ao irmão uma história de amores, como origem da doença.

— Deve ser perigosa doença quando se tem o coração bem formado — observou o jovem trino profundamente recolhido. — Irei vê-la amanhã. Tens lá ido com as tuas irmãs?

— Algumas vezes, desde que as Caldeironas deixaram de ir; mas o médico francês, que lá está sempre, mostra-nos tão má cara que o meu marido a muito custo me deixa ir, e a nossa mãe desgosta que as filhas solteiras lá vão. O tal Eliot dizem-se por aí dele horríveis coisas...

— Deus sabe o que é verdade — atalhou Fr. André.

— E não corre por aí que ele casa com Antónia?! Será possível?

— Nem sequer é extraordinário.

— Um homem que andava aí a passear na corte com uma concubina...

— Assim dizem; mas não repitas os boatos que correm à conta do francês. É caridade ouvir em silêncio, e pedir a Deus que encaminhe os transviados...

— Então já sabias que aquela francesa não era mulher dele?

— Não sei nada certo, minha irmã. O que me dizes da doença de Antoninha pesa-me muito; mas se tão cedo os desgostos a mortificam, bom será que o Senhor a chame na idade dos anjos.

Quando Fr. André transpôs o portão da quinta chamada «dos Nobres» estavam o padre, Antónia e o médico no patamar da escadaria à hora de sesta.

Eliot viu-o primeiramente, e disse:

— Olá! temos frade!...

Antónia, como nunca vira André Guilherme com hábito, e a distância era grande, não o reconheceu logo; porém, tanto que Francisco Xavier conjeturou quem fosse o frade, a doente ergueu-se de golpe, galgou os degraus, e correu ao encontro de Fr. André com as faces rutilantes de júbilo febril. Ia abraçá-lo, quando ele a susteve tomando-lhe as duas mãos; e, abaixando-as com branda violência, disse com a voz trémula de comoção:

— Como está senhora perfeita a minha discípula!... Julguei que vinha encontrá-la enferma!... Louvado seja Deus, as cores são excelentes; e quem assim corre decerto pode fugir à doença!

— Venha de lá, esse abraço, Sr. Frei André! — exclamou o doutor Xavier descendo a coxear alguns degraus para recebê-lo nos braços.

O trinitário abaixou a cabeça a Eliot, que lhe correspondia com certo jeito de gravidade mais ofensiva que o menospreço. E a fim de lhe patentear sem demora a sua desconsideração, Eliot, estomagado ainda por amor das Caldeironas, despediu-se logo, relançando-lhe um olhar de través.

O frade não pôde reter uru gesto de espanto quando viu de perto o aspeito doente e lívido do padre.

— Tem padecido, Sr. doutor?! — perguntou ele.

— Bastante desde que a nossa Antoninha sofre; mas o doutor Eliot não faz grande caso disto. O que é, está aqui; e, a falar verdade, não está em bom sítio... — e, dizendo, apontava o coração, e tirava a custo respirações fundas. — Ponto é que a pequena se restabeleça, que eu, à proporção que ela for ganhando a antiga saúde, irei também arrijando.

— E a menina que sofre? — voltou o frade — As cores são tão boas!... Que lhe dói, Sra. D. Antónia?

— Nada... — respondeu ela, sorrindo daquele triste modo que têm os risos, se as lágrimas ao mesmo tempo ressumam nas pálpebras.

E ficaram largo espaço silenciosos. Antónia voltara o rosto para esconder as lágrimas. O padre lia no rosto compassivo de Fr. André o mesmo receio que o excruciava, quanto à doença fatal da filha.

— Vamos para dentro que o calor aperta — disse Francisco Xavier movido por súbita ideia.

Antónia seguiu-os; e, quando eles começaram a falar da próxima saída dos trinos à redenção dos cativos em Mequinez, a menina saiu para avisar a despenseira de que havia um hóspede...

— Hóspede por três dias; não sou um simples hóspede de um jantar — disse Fr. André Guilherme.

— Sim?! — exclamou Antónia — Graças a Deus que vou ter três dias alegres no campo!

Quando voltou, o quarto do padre estava fechado por dentro, e Fr. André com ele em conversa de que apenas se ouvia fora um murmurinho.

Estava Xavier contando a Fr. André o caso amoroso de Antónia com o filho do protestante João Frisch. Contava o que sabia, que era tão somente o exórdio da história; mas Presumia sabê-la toda, exceto a impressão que o prussiano deixara na alma da filha.

— Não sei; — juntava o padre — mas o doutor Eliot dá-me a entender que o amor da pequena foi mais grave do que eu pensei, e deixa-me suspeitar que há ou houve correspondência... Eu não posso acreditar que uma criança tivesse coração capaz de um amor sério nem força para se rebelar contra a minha vontade.

— Mas que rebelião houve?

— Que houve? ora imagine uma correspondência... talvez um plano de se casarem contra minha vontade, quando ela for maior ou eu descer à sepultura...

— Isso não é rebelião! — contrariou o frade.

— Não é?!

— É submissão.

— Fr. André continua a exercitar o seu engenho no sofisma da aula de filosofia? — perguntou Francisco Xavier entre risonho e agastado.

— Não, senhor; eu professo a verdade do sentimento e a da expressão. Se a Sra. D. Antónia se rebelasse contra seu tio, não esperaria pela maioridade, nem pela morte dele. Tem quinze anos, tem um património indisputável, e tem a lei que em Portugal franqueia facilmente a evasão das mulheres que escolhem maridos repugnantes aos pais ou tutores. E, pois que a Sra. D. Antónia continua submissa ao seu tio, não se rebelou — submeteu-se se vossa mercê chama rebeldia à paixão paciente e muda que se entranha e chora, desacerta a palavra, ou quer ser nos actos morais da sua sobrinha uma segunda consciência. A Sra. D. Antónia, se padece por amor de alguém, e em silêncio devora a sua saudade, é um raro exemplo de obediência nesta cidade onde todos os dias voga a notícia de um casamento judiciário.

— Mas o receio que me atormenta hoje é... perdê-la, Fr. André!... perdê-la... ou ma leve um marido, ou a morte!... Faça-me um favor... Arranque o segredo ao coração de minha... sobrinha... saiba o que é que a mortifica... desengane-me.

— Não me pede um serviço honesto, Sr. doutor Xavier — disse com urbana austeridade Fr. André — Nada perguntarei a sua sobrinha do foro íntimo. Isso pertence ao seu diretor espiritual, e ainda assim com reservas que respeitem a inviolabilidade de terceiros. Se a Sra. D. Antónia, que eu prezo como a minhas irmãs, me disser o que vossa mercê ignora, o Sr. Xavier continuará, a ignorá-lo, salvo se a revelação denunciar um perigo que eu só por mim não possa remediar.

— Pois bem, Sr. Fr. André Guilherme faça de conta que ela é sua irmãzinha. Aconselhe-a, desfaça-lhe as quimeras perigosas. Lembre-lhe que é muito rica...

— E que importa ser muito rica?

— Importa que eu medito dar-lhe marido de família ilustre, abrir-lhe as portas de todas as casas onde a vida se passa alegremente.

— A felicidade não é isso — replicou Fr. André — Vossa mercê por aí andou, e saiu de lá desgraçado. Eu não direi a sua sobrinha que é rica de dinheiro enquanto ela me parecer rica dos tesouros da virtude. Perdidos estes, dir-lhe-ei então que é rica da moeda com que se podem resgatar culpas convertendo-a em remediar desgraças alheias, estancar lágrimas, fechar abismos para os quais a desesperação arremessa muitos criminosos.

— Ó Fr. André — atalhou o padre — conversemos um pouquinho mais humanamente. Não vamos nessa toada dos Exercícios espirituais do padre Afonso Rodrigues da Companhia. Eu desejo que a minha sobrinha seja virtuosa; mas não pretendo encarreirá-la no beatério. Quero-a boa para o próximo; porém desviá-la-ei de se imolar ao remédio dos outros, privando-se das regalias do seu património. Que pensava o Sr. padre Fr. André?... que eu folgaria de ver os bens dos meus passados aí convertidos pela minha sobrinha na fundação de algum convento de freiras? Não, senhor. Protesto contra quem lhe incutir semelhante desperdício de juízo e de dinheiro...

— Vossa mercê é que está desperdiçando palavras... — contestou Fr. André com o rosto jovialmente sossegado — Eu não aprovo nem reprovo que a Sra. D. Antónia funde mosteiros de religiosas; mas reprovaria (se me dessem ousio para tanto) que ela fundasse uma família irreligiosa e eivada de origem ruim. Como vossa mercê me disse que lhe procura marido ilustre a fim de lhe abrir as portas da alegria, eu hesitei — mas não o disse — em dar como acertada a escolha de um marido fidalgo, posto o intento simplesmente na vida alegre que vive a nossa fidalguia no tempo atual se vossa mercê me dissesse que procurava para sua sobrinha marido virtuoso a fim de a felicitar com os contentamentos da virtude, um tal propósito parecer-me-ia melhor escolhido...

— Quer então que eu vá a Lisboa com a lanterna de Diógenes?...

— Não, senhor. Parece-me, porém, prudente que vossa mercê não se apresse a procurar marido às escuras, abrindo concurso a opositores à posse do património da sua sobrinha. Afirmo-lhe que Diógenes, se voltasse hoje ao mundo, apagaria a lanterna como coisa inútil. Queira dizer-me, Sr. doutor Xavier. Não roa a palavra... O processo é este: o pretendente expõe o seu direito ao Vigário geral; este manda comparecer a noiva na sua presença; e, se o que ela diz frisa com a exposição do noivo, recebem logo ali licença de se casarem». Descobriu más qualidades nesse estrangeiro que a sua sobrinha amou? Seria indigno dela? Quem sabe se a felicidade, que este mundo pode dar, a daria ele à Sra. D. Antónia?

— Essas perguntas não me parecem suas! — atalhou o padre — Estou espantado, Fr. André Guilherme! Que quer concluir?

— Concluo, Sr. doutor, que seria prudente indagar se o estrangeiro é honrado, se a sua sobrinha o ama, se ele merece tal amor; e depois...

— E depois?!...

— E depois... deixá-los casar.

— Está muito verde! — exclamou o doutor disfarçando a zanga com uma risada áspera — Afinal, frade! completo frade! Os senhores formam lá na sua imaginação um mundo para o seu uso particular. Já por lá andei, já por lá andei, padre André Guilherme!... Isto cá, fora dos umbrais do mosteiro, é outra vida; as coisas configuram-se de outro feitio. Ninguém dá uma menina com cento e cinquenta mil cruzados a um valdevinos que se viu duas ou três vezes, e teve artes de cativar uru coração inocente com versos. A moda dos Macias namorados não pega segunda vez. — E cessando de rir, prosseguiu: — Mas, fale-me sério, Fr. André! Acha que eu devia privar-me de Antónia, dar-lhe o seu dote, e entregá-la assim ao filho de um sacerdote calvinista, vê-la ir para a Prússia, e... adeus... lá vai... acabou-se! Isto depois de tocar as fronteiras da velhice, sem ter tido juventude, sem ao menos ter conseguido ser amado desta criatura, que tem sido o flagelo do meu coração, como o Sr. padre André Guilherme sabe! Ora, pelo amor de Deus! Não é forçoso que os desgraçados sejam também parvos. Seria estúpida e criminosa tolerância deixar-me eu ir a sabor da vontade de uma rapariga que se apaixonou pelos sonetos e pelos cabelos louros de um forasteiro! Casá-la! essa é boa, Sr. Fr. André! Dar uma menina formosa e um saco de ouro ao primeiro adventício!... Ainda não endoudeci!... Se ela endoudecer, a minha obrigação é medicá-la, não é casá-la... Mas não tenho medo da loucura de Antónia. Está curada... Se sofre, não é disso; é porque a sua compleição é fraca. Não come nada, nem obedece ao médico... Quer morrer? morra muito embora, que morto estou eu já, e mais me pesa sobre o peito o futuro dela do que há de pesar a pedra da sepultura...

Nesta variação de expressões agora magoadas logo irónicas, umas vezes envenenando o sorriso, outras embebendo as lágrimas no lenço, discursou largo tempo o doutor Francisco Xavier sem ser interrompido. Fr. André escutou-o com os braços cruzados sobre a cruz escarlate do hábito branco, até que ele concluiu desta forma:

— Enfim, meu amigo, converse com Antónia, aconselhe-a, sonde-lhe o coração, veja se lá descobre o que ela esconde de mim como da mais indiferente pessoa do seu conhecimento. Se o Sr. Fr. André Guilherme a encontrar disposta a aceitar esposo, eu lhe darei azo de o escolher entre os que mais podem lisonjeá-la.

— Não é de esperar — disse o trinitário — que os pretendentes se ofereçam à eleição do Sr. doutor Francisco Xavier e da noiva quando é fama que o cirurgião Eliot, que se supunha casado, será o esposo da Sra. D. Antónia...

— Isso não tem fundamento nenhum — contraveio o padre nada irritado e ligeiramente admirado do boato — O doutor Eliot nunca pensou em tal casamento, nem eu, nem minha sobrinha. Esses planos não se escondem nem disfarçam; nem o meu prezado Eliot, que é a honra em pessoa, ousaria calculá-los a ocultas de mim. Ele sabe que eu o prezo tanto que lhe não levaria a mal apaixonar-se pela sobrinha do homem que lhe deve a existência. Além de quê, tenho observado que o doutor com Antónia é sério como um severo parente, e ela pela sua parte, se o não aborrece, decerto o não ama. Como estas fábulas se inventam em Lisboa!... Talvez lhe dissessem, Fr. André, que o Isaac Eliot quer casar com a Leonor Caldeirão... Dessa sei eu que está ele cativo e enfeitiçado; e razão tem, se a formosura é bastante razão para que os homens desnorteiem e naufraguem no casamento... Pena é que aquela tão linda menina seja irmã das outras... Foi dela provavelmente que Fr. André ouviu falar, ou quem lho disse trocou o nome da minha sobrinha pelo da outra...

— É possível — condescendeu Fr. André Guilherme — todavia, não é natural que diversas pessoas se enganassem juntamente. Entretanto, Sr. doutor, se um dia Isaac Eliot lhe pedir sua sobrinha, rogo-lhe com as mãos erguidas que... não lha dê.

— Porque me diz isso com tanta veemência? — acudiu o padre.

— Se eu não sei dar a razão porque o sinto, mal poderei dizer-lhe a razão porque lhe peço que não case Antónia com Eliot.

— E deu a entender ainda agora, que a desse ao prussiano!... Não percebo!... Fr. André tem ares de vidente; e, se vai nessa esteira, perde-se nas restingas da visionice!... O meu fradinho, não adelgace tanto o espírito! Lembre-se que a carne é três partes da natureza humana...

André Guilherme, contemplando serenamente o ex-varatojano, disse entre si:

— Se Deus é misericordioso com as irritações dos grandes desgraçados, com que direito lhe perguntarei eu se perdeu o juízo?

CAPÍTULO XXXI

Depois de jantar, o filho de S. João da Mata, emboscando-se com Antónia na floresta da quinta, pediu-lhe que contasse como a um irmão extremoso as suas mágoas, se sentia necessidade de conselho ou de consolação.

A menina começou com a eloquente e íntima confissão das lágrimas.

— Assim, não quero, Antoninha — disse o padre — Chorar choram as pecadoras; a inocência ignora, não peca. Antónia quer dizer-me que ama um jovem estrangeiro, contra vontade do seu tio. Deseja esquecê-lo, e não pode...

— É verdade... — interrompeu Antónia soluçante — não posso esquecê-lo, e... tenho-lhe ódio... porque me enganou... vilmente.

André Guilherme estremeceu, fez-se lívido, e articulou sufocado:

— Como?... Enganou-a!... que diz, Antónia?!

O frade entendera a palavra com a intenção que usa dar-lhe a mulher do povo — expressão simples que significa a desonra com que a infâmia paga a confiança numa promessa. A filha de Catarina ignorava o sentido triste e plebeu do vocábulo, e era justo portanto o espanto que lhe fizera a desfiguração, o pasmo, o anseio interrogador do seu querido mestre.

E quando ele, aturdido com o silêncio de Antónia, repetiu:

— Enganou-a?... pois a menina...

Ela, sem ainda compreender a agitação do frade, ampliou o queixume:

— Jurou que eu havia de ser sua esposa, jurou-mo pela alma da sua mãe, e mentiu cruelmente...

— Mas... — redarguiu o trino ainda incerto e embaraçado na delicadeza da investigação — essa promessa era feita de viva voz ou por cartas?... Conversavam e carteavam-se?

— Sim...

— Conversavam... onde?

— Na sala das visitas.

— Quando seu tio saía?

— Nunca lhe falei senão na sala em que estava meu tio.

— Ah!... — exclamou Fr. André Guilherme, com tal ímpeto e desafogo que a exclamação parecia um grito de júbilo.

E, voltando ao seu natural meigo e ao mesmo tempo circunspecto, prosseguiu:

— E razões fortes teria esse rapaz para violar o sagrado juramento por alma da sua mãe? Seria obrigado pela autoridade do pai? Que motivo deu ele?

Antónia tirou da algibeira da saia de cetim branco matizado de flores um maço de cartas e disse lagrimosa:

— Aqui tenho as cartas todas e os versos. A última que recebi é esta — e entregou-

lha.

Leu o jovem a carta falsificada por Henrique Rutier, e disse:

— Este homem amá-la-ia, Antoninha? Veja lá que não se iludisse, menina...

— Porquê? — interrogou ela com espanto.

— Acho esta carta escrita com extraordinário juízo. As pessoas que amam raciocinam menos discretamente. Verdade é que ele por aqui fala na Parca; — prosseguiu o frade, sorrindo, enquanto no espírito atento de Antónia raiava uma luz que ao mesmo tempo lhe iluminava o entendimento e queimava o coração. — Porém que medo ou desejo pode ter da morte este prudente jovem que não só deixa de casar para obedecer ao pai, mas também não quer que as cartas de Antoninha vão perturbar a sua felicidade, e para isso recomenda que não lhe responda? Menina, este homem não lhe merece as lágrimas, nem as saudades. As paixões infelizmente podem mais que os deveres. Se Josse Frisch — continuou o padre Fr. André, lendo a assinatura da carta — em vez de obedecer ao seu pai, resistisse rebeldemente, e escrevesse neste papel injúrias contra a tirania paterna e arrebatados protestos de eterna firmeza no seu amor, então, Antoninha, dir-lhe-ia eu: «Este rapaz não é bom filho, porque desobedece; mas pode ser bom esposo, porque ama.» Porém, à vista desta carta, não hesito em lhe afirmar que a pessoa que isto escreve era um impostor quando lhe escreveu outras com fingida sensibilidade.

Fr. André Guilherme, convencido das razões que expunha e da conveniência delas, demorou-se pensando em todos os argumentos no propósito de começar assim a aliviar as mágoas da saudade, chamando a dor ao amor-próprio. Entendia assim o esperto frade que as doenças da alma ganhavam com o sistema derivativo dos vesicatórios nas dores do corpo.

A suposição saiu-lhe bem lograda. Antónia replicava-lhe com as poesias e as cartas anteriores à última. Das poesias, posto que bem feitas, ria delicadamente o frade, como sempre riram, e hão de rir, enquanto o mundo for mundo, todos os frades e leigos e até os próprios poetas chamados a julgar pleitos de amor sobre tais documentos. Quanto às prosas, dizia o mestre de Antónia Xavier que eram escritas com a mesma pena que rabiscara os poemas, e mereciam igual crédito, desde que o poeta se desmentira na última carta, que era a primeira sinceramente escrita.

Quando Antónia defendeu derradeiramente a sua saudade com o argumento das lágrimas, Frei André recorreu às consolações religiosas, contando com o triunfo nesse campo. A menina, percebendo o pensamento do seu mestre imperfeitamente, disse que de muito boa vontade iria professar em Odivelas.

— Não lho aconselho — contestou Fr. André. — A menina pensa que eu lhe lembrei a religião dos mosteiros como remédio à sua dor; não, Antoninha: a religião que lhe aconselho é a de fosso Senhor Jesus Cristo; é a religião que se exercita no seio da família, na obscuridade do lar doméstico, na dedicação às pessoas que nos amam. Se Antónia tivesse mãe e pai não praticaria o desamorável acto de os deixar e fazer-se freira, vingando-se neles da ingratidão desse estrangeiro. Não tem pais, mas veja que está aí seu tio, com o coração cheio do amor de pai e de mãe...

— É verdade... — balbuciou Antónia.

— E que rosto desfeito e doente lhe encontro! O seu tio parece-me muito ameaçado do próximo fim!...

— Disse-me o doutor Eliot que o meu tio pode morrer de um momento para o outro por causa de uma lesão no coração. Choro com pena dele, porque já me disse que sentira formar-se a lesão, que o há de matar, uma noite, que passou à cabeceira da minha cama, e pensou que eu estava em agonias da morte.

— Aí tem forte motivo e sagrada obrigação de não afligir seu tio...

— Mas... — contraveio Antónia — o que eu queria era que o meu tio me não falasse em casamento. Já três vezes me disse que era tempo de tomar estado, e que me há de arranjar um marido muito fidalgo, e que eu hei de ir à corte. Quando lhe ouço isto...

— Que lhe responde?...

— Choro; fujo de ao pé dele, e perco-lhe a amizade.

— Não tem razão — redarguiu o frade com um severo artifício, porque reprovava o casamento arranjado com perspetivas de fidalguia e corte, e reprovava também que Antónia por tal motivo desamasse seu tio. — Não tem razão para perder a amizade que deve a um segundo pai, ainda que ele forme da felicidade ideia raras vezes exata, pensando que a fidalguia e a corte dão as alegrias honestas e moderadas, únicas ainda compatíveis com os costumes do nosso tempo. O seu tio, quando houver de a casar, não há de obrigá-la a ver pelos olhos e a sentir pelo coração dele. Arranjar marido, é um modo de falar. Quer dizer que há de promover o seu casamento, Antoninha, admitindo a sua casa pessoas dignas; e eu também me inclino a crer que as mais dignas serão as que por serem de origem nobre houverem recebido melhor educação. A classe mecânica tem honrada gente; mas Antoninha, na convivência das senhoras de Odivelas, ganhou uns costumes e gostos que sem violência não podem quadrar com o viver da gente média. Além disso, a sua educação formou-lhe de certo modo o espírito; e o seu grande património dá-lhe direito a não procurar a felicidade nos bens da fortuna do marido.

— Mas eu não posso ficar solteira? — replicou Antónia com a simplicidade do coração de quinze anos — Diga ao tio que me deixe assim ficar...

— E, se o seu tio morrer?... — atalhou com débil argumento o frade.

— Se o meu tio morrer, ficarei solteira na minha casa. Todos me dizem que sou rica... Então quem é rica por força há de casar-se?! Isso é quererem que eu deseje ser pobre, para me deixarem em paz... Mas se eu fosse pobre tinham de querer casar-me então com algum homem rico... Enfim...

O frade sorriu ao dilema da discípula, e não lho refutou porque respeitava a lógica, e odiava o sofisma.

E, conversando pouco depois com o doutor Francisco Xavier, repetia-lhe a argumentação de Antónia, e dizia-lhe:

— Deixe-a estar solteira.

— À espera do prussiano?

— Não se fala do prussiano...

E referiu-lhe o contexto da carta, asseverando-lhe que não havia que recear do estrangeiro.

O padre exultou; mas energicamente impugnou que Antónia professasse, ou sequer entrasse em mosteiro como secular.

— Os conventos — exclamava ele — são académias de corrupção. São prostíbulos! Fr. André Guilherme, quando ensinava minha sobrinha, quis obstar que ela fosse a Odivelas com a sua tia; recorde-se...

— Sim, senhor.

— E então? porque era?

— Porque aos parlatórios dos mosteiros concorrem brilhantes vadios e libertinos que empestam O ar daquelas casas, Eu não quis insultar as religiosas que ali vestiram forçadas o hábito com a condição de o mancharem e rasgarem quando quisessem, em despique da violência que lhes fizeram. Sei que muitas para ali entraram inocentes e lavadas em lágrimas; porém, como a mortificação não lhes estava no seu natural, enxugaram as lágrimas, e arrancaram da cara as duas coroas de virgindade e de martírio. Elas, qualquer que seja o seu desastre, são sempre desgraçadas com direito à desculpa; mas quem não deve esperar perdão de Deus são os homens que lhes levam os engodos da perdição... e...

— Cale-se, Frei André! — bradou o antigo amante de Catarina estendendo o braço até lhe tocar os lábios.

Neste lance, o frade trino retraiu a sagrada cólera, e compadeceu-se do homem que vituperara de academia de corrupção e prostíbulo o mosteiro que lhe dera uma mulher imaculada, e lha recebera dilacerada de condenações.

CAPÍTULO XXXII

Dois dias passados, Fr. André recolheu à nau aprestada para a Barberia. Durante a hospedagem do virtuoso frade, o médico não foi a Camarate, porque, dizia ele depois ao seu fascinado amigo Xavier:

— Rompe-se-me o fígado em borbotões de bílis quando encaro aquele frade! Não está no poder da minha vontade refrear este ódio secreto, ódio de instinto, não sei como lhe chame...

— Pois é injusto... — defendeu o padre — quero dizer... Não acrescentou o que queria dizer. Ocorreu-lhe subitamente que o frade, rogando-lhe que não casasse a sobrinha com o médico, pagava com ódio igual a Eliot. Esta recíproca repugnância entre os dois, que apenas se tinham encontrado raras vezes sem se falarem, dava que cismar ao padre. Sondou o ânimo do seu médico a razão natural de tamanha aversão, mas o francês não a podia dar, senão com estas vagas palavras:

— É o ódio que a natureza não explica entre certos animais.

Discorrendo por diversos assuntos, vieram às atoardas que corriam em Lisboa, a respeito dos novos amores de D. João V com a rival temida de soror Paula. Dizia-se que a freira estava completamente acalcanhada e desgraciada. Constava que ela, afrontada pela ingratidão do monarca e pelas risadas insultantes das religiosas suas inimigas, ia sair do mosteiro, e passar-se à ilha do Faial, onde tinha parentes e grandes haveres comprados em nome de uma sua aia com os dinheiros do seu liberalíssimo amante, etc.

Atalhou o padre o relatório dos escândalos, dizendo que era prudência desprezar os boatos forjados à tarde no Rossio ou nos pátios das comédias pela maledicência dos faceiras ociosos; e, ao intento, acrescentou como prova da falsidade das baleias:

— Pois não me disse Fr. André Guilherme que em Lisboa toda a gente repete que o doutor Eliot vai casar com a minha sobrinha?

— Logo vi que essa nova devia trazer-lha o frade... — disse o médico, mais risonho que torvado.

— O frade repetiu o que ouviu — replicou Xavier — não creio que ele inventasse a mentira...

— Mas a que propósito se saiu ele com a novidade?

— A que propósito? não me recordo... — respondeu o padre deslizando da verdade por delicadeza com o seu amigo. O que eu quero fazer notar ao doutor é que em Lisboa se maquina muita calúnia. Já aquele famoso sábio D. Francisco Manuel de Melo disse: «Lisboa é muito grande, é mata espessa, onde se criam monstros de disforme malícia». Porventura, o doutor, ou eu ou minha sobrinha demos ocasião a que se inventasse tal casamento? E, para além do mais, quando é público e notório o seu galanteio à Leonor Caldeirão, por amor da qual o doutor declarou sua manceba a francesa que por aí andou considerada como sua mulher!... Mau foi, meu amigo, deixar correr essa falsa conjetura... — desculpe-me arguir-lho. Melhor seria declarar a verdade quando a trouxe de França...

— Fui sincero com o meu amigo, e com poucas mais pessoas.

— Pois sim; mas eu e essas poucas mais pessoas não representamos a sociedade. Que fará, agora vossa mercê, se casar com a Caldeirão ou com outra? Como há de honestamente explicar o engano que fez às famílias que admitiram na sua casa a francesa? Sou tão seu amigo, que até essa estouvanice da sua vida de rapaz me tem tirado o sono. A mim parecia-me que seria acerto mandá-la para França, com algumas dúzias de moedas, a fim de evitar conflitos escandalosos quando o doutor Eliot houver de casar-se.

— Não penso em me casar, Sr. doutor Xavier; — afirmou o médico solenemente — mas penso em remediar o desatino de permitir com o meu silêncio que a francesa passasse pela minha esposa. O remédio único é afastá-la de mim, e não mais dar azo a que a sociedade me acuse por mancebias impróprias da gravidade da minha profissão. Sacrificarei todos os meus haveres a este acto de reformação de costumes. Dar-lhe-ei quanto possuo a esta mulher, e ficarei com a honra e com o esforço no trabalho até me ressarcir das prodigalidades expiatórias da minha desonestidade.

— Nem tanto ao mar, nem tanto à terra! — modificou o padre — Privar-se de tudo que adquiriu em doze anos parece-me excesso. Esta espécie de mulheres vendem-se caras; mas o doutor lá conhece o valor dessa que pouco mais ou menos é o das outras da mesma casta. A Lais vendia-se por cem talentos na Grécia; mas os Alcibíades de hoje em dia têm mais talentos, não amoedados, isso é verdade, mas mais apurados para pesar na balança o que se deve a tais aventureiras...

O padre parecia envaidecer-se da sua perspicuidade quando aconselhava o médico, e dava-se ares jactanciosos de quem apalpara o âmago das coisas e das pessoas desprezíveis. O doutor simulava ouvi-lo com a respeitosa anuência de aluno inocente, e trejeitava uns jeitos de arrependido, descompondo os cachos da cabeleira com gestos de aflição e ódio de si próprio.

O ex-frade das penhas do Varatojo, condoído daquelas figurarias doloridas, lembrava-lhe que todo o homem era tributário da loucura, e raros homens tão cedo revertiam à vereda pedregosa da honra.

— E porque não há de o doutor casar com a galante Leonor Caldeirão, se a ama como eu sei que há dois anos se amam? — perguntou o padre.

Isaac Eliot assoprou um suspiro longo, pôs as mãos na testa descaída, levantou-se de salto, e não respondeu.

— Que tem, doutor?! — disse Francisco Xavier, inquieto.

— Não está bom? Ofenderam-no as minhas palavras a respeito da francesa?

— Não, meu caro amigo, não! — respondeu Isaac, sobrepondo no peito as mãos em cruz e inclinando a cabeça a um lado com os olhos descaídos. — Quem primeiro me condena e acusa sou eu, e quem me quis salvar a tempo deste vilipendioso remorso foi o Sr. doutor Xavier quando há dez anos me admoestou a ser cauto, a desatar-me dos laços desta mulher que mais tarde seria estorvo à minha felicidade. Cumpriu-se a sua profecia, Sr. Xavier. O meu descrédito faz estrondo em Lisboa, desde que o pajem Rutier estouvadamente divulgou que eu ia casar e que a francesa não era, portanto, minha mulher. Hoje, quando eu queria as bênçãos e os respeitos públicos, acho-me até indigno da indulgência dos meus tolerantes amigos. Agora que eu quisera ter um coração puro como a consciência dos santos para poder aspirar à posse de uma menina sem mácula, vejo-me tão manchado, tão conspurcado na sordícia dos vícios, que não ousarei mais levantar olhos para um rosto iluminado dos resplendores da inocência.

O padre escutava-o maravilhado da ideia, do tom, da postura teatral do homem; não o interrompia porque o monólogo era estudado, fluía torrencialmente, e não dava ansa a interrupções.

A julgar do introito, é bem de entender que o francês apontava o discurso ao intento de se declarar apaixonado por Antónia; mas, se fosse coerente na tramoia, como é de supor, acabaria por se declarar indigno dela.

O discurso, porém, foi cortado pela entrada do escudeiro, que participou estar no pátio o pajem Henrique Rutier, procurando o amo para negócio urgente.

Eliot desceu ao terreiro, onde o pajem o esperava com o cavalo à rédea e espumejante de suor. Conversaram em francês por alguns minutos alvoroçadamente. O médico mandou ao seu lacaio negro que embridasse os cavalos, subiu à antecâmara do padre, inventou o estado perigoso de um doente importante, e galopou para Lisboa à espora fita.

Esperava-o já, no pátio da sua casa o boticário Jácome Valebelt.

— Suba, Sr. Jácome — disse o doutor; e, quando galgavam rapidamente as escadas, perguntou:

— Está cá o homem, heim?

— Em pessoa.

— Deixe-o estar: nós cá estamos também.

Entraram na sala. Eliot estirou-se sobre uma preguiceira almofadada, arrojou as esporas, o espadim e o chicote, enxugou as camarinhas do suor, e disse assoprando:

— Diabo!... estou cansado!... Custava-me menos fazer uma anatomia de florete na arca torácica do seu patrício que dar esta estafa ao meu corpo e aos meus cavalos. Então que diz lá o poeta?

— O Sr. doutor leva isto de vítor-feição; mas eu agouro desgraças...

— Algum desafio? está bem aviada a Prússia. — E riu-se às gargalhadas, atirando com a perna para a espalda do canapé.

— Conte lá isso miudamente. Quando chegou ele?

— Esta manhã. Eram onze horas no relógio das Chagas, e estava eu ao balcão, quando vejo entrar o Frisei com uma cara de defunto, e a vista derramada como a dos doidos...

— Feio espetáculo!... o Sr. Jácome sentiu despegar-se-lhe a espinhela, heim?

— Confesso que os joelhos me jogaram um com o outro. A consciência...

— Faz jogar os joelhos?

— E a penúria faz jogar a honra — acrescentou Jácome. — A cara do infeliz jovem era o espelho do meu crime... Fez-me compaixão, palavra!

— Vamos à história, e no fim cantará os seus salmos penitenciais. Que lhe disse ele?

— Perguntou-me se D. Antónia Xavier já tinha casado. Respondi que não me constava; mas que por aí se dizia que brevemente casava. Perguntou-me com quem. Disse-lhe o nome do Sr. doutor. Ele pediu-me um golo de água, bebeu-a sentado, e perdeu a cor. Pensei que desmaiava. Ia-lhe chegar um vidro de sais, quando ele repeliu o vidro. Depois levou as mãos as faces, baixou a cabeça, e chorou com tamanhas ânsias que me afligiam. Fiz-me de novas... que remédio! Perguntei-lhe que razões se deram para acabarem assim uns amores tão propiciamente começados. — Eu não dei nenhumas — respondeu ele; e mostrou-me a última carta que recebera de D. Antónia, quero dizer, a carta escrita pelo seu criado. O patife tem engenho! Comparei-a com outra que o Frisch me mostrou, a última em que a menina lhe dizia as mais derretidas ternuras. Falsificação mais perfeita só o pulso do diabo seria capaz de a fazer! O pobre rapaz, mostrando-mas ambas, uma ao lado da outra, dizia-me: — Como é possível que dentro em quinze dias esta cruel mulher escrevesse estas duas cartas! — Eu encolhia os ombros, e dizia: «mulheres, mulheres!»

— Quero vê-la, casada, ou solteira! — exclamou ele, afogado pelas lágrimas — quero ver com que rosto ela me encara...

— Mau! — interrompeu Eliot exagitado.

— Mau? péssimo! então já não se ri, Sr. doutor? Eu não lhe disse ainda agora que futurava desgraças? Se ele chega a vê-la, se derem explicações, se se descobre a traição! Que será do senhor e de mim? Que escândalo, que vergonha e que infâmia!

— Deixe-me pensar! — bradou o francês — não me aturda com as suas exclamações.

— Eu não o quero aturdir, doutor; mas sinto dizer-lhe que não me acho em bons lençóis. Somos três os perdidos; mas o mais execrável dos três sou eu, se isto vem a descobrir-se. Mandei-o chamar a toda a pressa, para ver como vossa mercê se tira e me tira deste aperto; que eu, se lhe não vir saída...

— Que faz.... Vai confessar a sua infâmia para que lha perdoem? — interrompeu Eliot colérico.

— Ora essa! Ainda mais ouvirei!... O senhor tem coisas...

— Então que quer dizer?

— Quero dizer que, se vossa mercê não remedeia isto, vou fugir de Lisboa, e fugir do reino; em primeiro lugar, porque atraiçoei um homem que fiava de mim as suas cartas e as da sua noiva; em segundo lugar, porque eu participei da falsificação do seu pajem entregando as cartas verdadeiras; em terceiro lugar, porque fui eu quem mandou entregar uma das falsas a D. Antónia, e enviei a outra ao meu patrício; em quarto lugar...

— Porque você recebeu quatrocentos mil réis pela traição...

— Isso é desgraçadamente verdade...

— E inventou umas mixórdias que eu lhe aprovei...

— Ninguém mas compra, Sr. doutor, desde que os créditos de vossa mercê perderam a aura pública... e, a falar-lhe verdade, estou quase tão pobre como era...

— E quer que eu o enriqueça, não é verdade? — atalhou Eliot rolando de esguelha os olhos coruscantes de raiva.

— Não, senhor, não quero que me enriqueça...

— Que quer então? despache!

— Que me salve destes apuros, pois não percebe? Ora faça de conta que Josse Frisch descobre onde está a rapariga...

— Você disse-lho?...

— Se eu fosse tolo!... mas pensa o doutor que ele já não o sabe a esta hora? Faça de conta, digo eu, que ele vai à quinta. O padre é coxo e está em casa. A pequena anda pela quinta. Eis que o vê. Caminham um para o outro... Sim, isto são favas contadas. Queixam-se ambos ao mesmo tempo. Mostram as cartas, descobre-se a falsidade delas. O Frisch vem ter-se comigo, e...

— Quebra-lhe a cara...

— Esse pouco! mas o caso não fica aí. Eu sou levado ao corregedor para declarar quem falsificou as letras...

— E você, está claro, diz quem as falsificou...

— O que eu não quero é chegar a esses extremos, Sr. doutor se vossa mercê fareja remédio a isto, quero dizer, se está, na sua astúcia, modo de fazer que eles nunca mais se encontrem, bem vamos; mas, se vê que artes e manhas não Podem valer-nos, então, o melhor é eu pôr-me ao largo quanto elites; porque, não aparecendo eu, está vossa mercê mais seguro de não ser incomodado por causa da falsificação.

— Quer dinheiro, já o percebi...

Jácome deu aos ombros, alongou os beiços e esbugalhou os olhos — expressão feia, mas eloquente da necessidade que o forçava à segunda cobrança.

Neste lance, Isaac Eliot viu por entre as cortinas de uma alcova a cara de Henrique Rutier que lhe fazia um gesto afirmativo.

O amo, pestanejando duas vezes, inculcou ao pajem que ficava inteirado.

— Diga o dinheiro que quer — disse Eliot ao boticário — , mas peça pouco, porque eu não tenho muito.

— Dê-me vossa mercê o que entender, pesando na sua consciência duas ponderosas considerações: primeira, que a minha ausência fecha as portas às indagações da justiça no caso desgraçadíssimo de se instaurar devassa por crime de falsificação; segunda, que eu, se não fosse homem de bem, podia ocultar que chegou Josse Frisch, e deixá-lo ir deslindar o enredo com D. Antónia, ou, como vossa mercê disse há pouco, contar-lhe as razões que me arrastaram ao crime, e merecer-lhe o perdão, remediando o mal em que tive cumplicidade.

— Quer então o Sr. Jácome que eu pese na minha consciência essas duas considerações?...

— Sim... dizia eu... que...

— Já sei o que disse... Não me repita.

Se o boticário fosse menos parvo que velhaco, o tom das últimas perguntas de Eliot gelar-lhe-ia o sangue nas veias; e, se ele tivesse visto a cara sinistra do forçado de Toulon por entre as cortinas interiores das vidraças, é de crer que espiasse a oportunidade favorável de escapulir-se.

— Pesei na minha consciência as duas considerações ponderosas — disse, volvidos poucos segundos, o filho da agarena, sentando-se um tanto orientalmente nos almadraques de uma otomana — Pela primeira — isto é, pelo favor de se ir embora do reino, fechando a brecha às indagações do corregedor — recebe o Sr. Jácome cem mil reis. Acha pouco?

— Já disse vossa mercê que pesasse na sua consciência...

— Mas que lhe parece o fiel da balança? acha que o prato da tal «consideração» desce, e o dos cem mil reis sobe? Veja lá...

— O doutor está a gozar! — observou o boticário meio risonho, e meio agastado — O caso merece mais circunspeção do que vossa mercê pensa...

— Bem sei. Mestre Jácome quer lembrar-me que a segunda «consideração ponderosa» sobe muito de valor; porquanto está no seu alvedrio desfazer o que fez, salvar-se da cumplicidade pela denúncia, e atirar-me a mim e ao meu pajem ali para o Limoeiro.

— Não digo tanto... nem pensei tal maroteira...

— As maroteiras são como os tremoços: quem come um come um cento. Se você fez a primeira, é regularmente lógico que faça dez a fio. Mas diga-me cá: eu convidei-o à feia ação de entregar as cartas que lhe eram confiadas? Não foi você quem mas vendeu por proposta sua?...

— Essas perguntas que fazem à questão...?

— Fazem que eu, se entrasse em juízo, diria que o infame fundamental neste criminoso enredo foi o amigo de Frisch que me ofereceu a venda das cartas por quatrocentos mil reis...

— Mas eu não sabia que o intento do Sr. doutor era falsificar a letra delas...

— Não obstante, aceitou a mensagem de as mandar falsificadas ao seu destino, estipulando a cláusula de que eu lhe aprovaria uns rebuçados para obstruções de bofe, e um unguento para impigens de humor frio...

— Homem! — interrompeu o boticário estomagado — Está aí com umas ironias que me fazem subir a mostarda ao nariz! Se não quer pagar a minha saída de Portugal, ou, por outra, se não quer pagar o meu silêncio, fique-se muito embora, que eu farei o que me parecer.

— Não se zangue, mestre Jácome — volveu com sarcástica brandura o médico — Estava eu a pesar a segunda «consideração» que é a do silêncio, como você acaba de dizer. Essa do silêncio requer mais dourada mordaça... Veja lá: duzentos mil reis? com cem são trezentos; com quatrocentos que recebeu, são setecentos. E os rebuçados? e o unguento? Onde irá isto montar? Sente-se, e espere um pouquinho que eu vou buscar o dinheiro.

E saiu da sala a um corredor, e entrou numa porta lateral correspondente à alcova por onde Rutier espreitava e ouvia todo o diálogo.

Entre Eliot e o pajem trocaram-se poucas palavras.

Rutier passou da alcova à parte mais interior da casa. Desceu ao pátio onde dois negros davam ferro à pelagem dos cavalos empastada de suor, e disse-lhes que os cavalgassem e passeassem a passo, porque pareciam resfriados; depois, mandou o preto cozinheiro à praça da Ribeira comprar uma ave que o seu amo apetecera. Tudo isto se operou tão rapidamente que o boticário não reparou na demora.

Na ausência dos três criados, Rutier fechou a porta da rua sem estrondo. Depois subiu de mansinho a escada que dava para a sala, e assomou à porta quando Jácome, de pé, e próximo da porta, soletrava a legenda francesa de um painel pendurado na parede.

À aparição silenciosa e súbita do pajem, o boticário estremeceu e balbuciou:

— Olé, sor Henrique! você meteu-me medo!... Não lhe ouvi os pés.

Proferida a última palavra, foi traspassado por um espadim do peito às costas, e estirou-se sobre o dorso resfolgando uns rugidos surdos, que o assassino fez calar repetindo as estocadas na garganta e ventre.

Eliot assistiu à breve agonia da Jácome; e, palpando-lhe o peito, asseverou, como perito, que estava morto.

— Este homem vinha a perder-nos! — disse Eliot justificando o homicídio à sua consciência inquieta.

— Depois filosofaremos sobre as vantagens de o matar — observou o prático Rutier — Ajude-me a tirá-lo daqui antes que o sangue encharque na alcatifa e antes que os escravos cheguem.

Pegaram do cadáver ensopando-lhe nos golfos de sangue algumas toalhas. Levaram-no da sala para um quarto ao rés da rua, e estenderam-no sobre uma grande banca tapizada de lona encerada. Depois, fecharam a porta, e abriram as que estavam fechadas.

Na tarde desse dia, Isaac Eliot, professor de anatomia no hospital real, ordenou ao mordomo que mandasse a sua casa um determinado cadáver para autópsia. Não era a primeira vez que o professor era louvado por semelhante solicitude no seu magistério.

O cadáver conduzido do hospital de Todos os Santos foi levado ao mesmo anfiteatro, onde o outro fora depositado. Durante a noite, Eliot e o pajem espostejaram ambos os mortos. Ao romper da aurora, o esquife do hospital recebeu os membros desarticulados e golpeados dos dois cadáveres. Os chamados «homens da tumba» não indagaram se o doutor pedira um, se dois defuntos da enfermaria. Tomaram o esquife repleto de carne espatifada, e, antes que o sol apontasse, já a pá do coveiro recalcara a última camada de terra no campo em que a Misericórdia, fora de portas, enterrava os que morriam nos hospitais.

CAPÍTULO XXXIII

— Deu-me preocupação a sua falta ontem, doutor! — dizia o padre Francisco ao seu médico — O meu amigo, para além do mais, saiu daqui incomodado com aquela palestra de moral que eu, pessoa tão incompetente, quis fazer-lhe. As suas últimas palavras, duras e cruéis consigo mesmo, estranhei-as, e, a bem dizer, pareceram-me desarrazoadas. O doutor Eliot, se não tem na sua vida mais vícios dos que lhe conheço, pode afoitamente dar-se como exemplo de honestidade à juventude relaxada da corte. Essa rapazice da concubina francesa, a não se dar a irreflexão de vir com ela à praça, seria caso para jactância e não para desdouro. E assim mesmo, doutor, visto que o amigo a estabeleceu em casa afastada, deixe correr seis meses, que tudo estará esquecido e perdoado, mormente em estoirando algum outro escândalo; e, se Deus quiser, os escândalos hão — de estoirar às dúzias, enquanto o rei, o infante D. Francisco e os próceres da corte não acamarem de corroídos, ou a podraga lhes não algemar os pés. É verdade, o seu doente melhorou?

— Qual doente?

— Pois não me disse antes de ontem que o seu pajem o chamava a toda a pressa?

— Ah! sim... era o conde de Tarouca, atacado de asma... Está melhor.

— Pois eu passei uma cruel noite com as minhas palpitações... Não pude adormecer deitado, e só de manhãzinha consegui passar pelo sono aqui nesta poltrona. Foi Deus que o trouxe, porque estou sozinho. Antónia foi esta manhã para Odivelas...

— Tem a certeza disso? — atalhou precipitadamente Eliot.

— Se tenho a certeza disso? que pergunta essa, doutor! Aqui está um bilhete de soror Paula Perestrelo, pedindo-me que deixasse ir a menina passar três dias com as suas amigas... Que tem? esse seu rosto incute-me desconfiança!

— Sr. doutor Xavier — disse o médico pausadamente — Vossa mercê tem a certeza de que soror Paula e soror Catarina aconselham honestamente sua sobrinha?

— Tenho a certeza que moralmente posso ter... Porquê? — A ansiedade do padre crescia à proporção que o médico exercitava uma calculada serenidade — Porquê? — instou Xavier.

— Sabe se essas senhoras aplaudiram ou favoreceram o galanteio da Sra. D. Antónia com o alemão Frisch?

— Nada sei; mas que temos nós com essa já esquecida puerilidade?

— Esquecida?!

— Sim... O padre Fr. André Guilherme deu-me a sua palavra de que era tudo acabado.

— Mentiu-lhe o frade.

— Mentiu? Não posso crê-lo, doutor. Juro-lhe que Fr. André Guilherme é incapaz de mentir.

— Então, sou eu o caluniador...

— Pode estar enganado, e seduzido pela aversão que tem ao frade.

— O meu dever é desmenti-lo... — redarguiu Isaac Eliot — porém, doutor, antes das provas, ouça-me, e perdoe-me já de antemão, porque eu sei que as feridas da minha alma, em vez de o apiedarem, vão irritá-lo contra mim. Comecei pelo mais repugnante da minha confidência, para que mais tarde a coragem me não falte. Eu amo sua sobrinha, amo — seja verdadeira em tudo a minha linguagem — amo sua filha, há três anos. Nunca houve paixão mais recalcada no peito, nunca homem algum fez maior esforço por afogar nas obscuras lágrimas os embriões de um amor fatal como o impossível, e pesado e angustioso como o grilhão dos forçados por toda a vida. Nunca ousei dizer-lhe meu nobre amigo, que amava sua filha; nunca ousei dizer-lhe a ela mais que umas tímidas e indefinidas palavras recebidas com a indiferença da inocência ou do desprezo. A minha tortura silenciosa era tanto maior quanto eu sabia que a Sra. D. Antónia amava outro homem; e que, apesar das aparências, a correspondência entre Lisboa e Berlim continuava todos os correios. Como deixaria eu de suspeitar e espiar esta correspondência, se eu, amando tão cegamente sua filha, esqueci os deveres de cavalheiro, e fiz-me espião do meu próprio martírio, não para me queixar, mas para me flagelar? Porventura, denunciei-a eu, Sr. Francisco Xavier? Não. Apenas, há pouco tempo, deixei-lhe suspeitar que os dois namorados se carteavam; e, quando vossa mercê desabridamente exigiu as provas, eu, refreando a vaidade e a paixão, respondi que não as tinha...

— E tem-nas? — interrompeu o padre grandemente exaltado.

— Lá vou, doutor. Não lhe mostrei então as provas, e já as tinha. Se eu sou incapaz de caluniar os meus inimigos, como havia de caluniar a mulher adorada, amada como esposa, como irmã, como filha, como criatura que se acendrara na frágua ardente da minha alma! Não mostrei as provas, porque era honra minha apresentá-las somente na última hora do perigo, quando entre o perdê-la para sempre e perder um amigo como o Sr. doutor Xavier me restasse o recurso supremo de os salvar a ambos, embora ficasse eu detestado dela para sempre. Eu esperava essa hora, e desgraçadamente...

— Diga!... — exclamou o padre arquejante.

— A hora chegou. Josse Frisch está em Lisboa...

— Em Lisboa! que me diz?!

— Se não estiver em Odivelas a esta hora... Por isso eu lhe perguntei se as duas freiras protegeriam o galanteio da sua filha.

— Eu vou mandar chamar Antónia a Odivelas! — bradou Francisco Xavier, erguendo-se da poltrona com dolorosos esforços.

— Espere! — contrariou Eliot — Nada de imprudências inúteis. A crise não urge tamanha precipitação. Se Frisch vem raptar sua filha, como presumo...

— Raptar minha filha!...

— Sim, se a vem raptar, não teve ainda tempo bastante para preparar a empresa..

— Mas eu vou já escrever ao corregedor, aos ministros de el-rei e ao próprio D. João V...

— Espere, doutor. Não escreva a ninguém. Conhece as leis portuguesas. Se o meirinho eclesiástico aqui mandar buscar sua filha, o remédio é entregar-lha para depósito. Confie-se em mim. Vossa mercê zela-a como pai, e eu, deixe-me dizer — tenho-a aqui no coração despedaçado, e sinto que para mim o final desta tragédia há de ser a morte; mas hei de morrer lutando enquanto o pai de Antónia me não disser: «Dou a minha filha a Frisch». Diga-mo já, que eu ajoelharei aos seus pés renunciando para sempre à mão da sua filha...

— Nunca! nunca darei minha filha a tal biltre!... Jesus! parece que a morte me estrangula... mas... como sabe que ele a vem raptar?...

Eliot tirou de uma carteira duas cartas. Abriu a primeira, e ofereceu-a ao padre.

— É a letra de Antónia — disse Xavier.

E leu sofregamente.

Nesta carta havia os seguintes períodos:

Bem me custa dar o passo da fuga; queria não dar esse desgosto ao meu tio que está doente e acabado; mas, se não há outro meio de nos unirmos, cumpra-se o destino, meu querido Josse.

Vivo muito aborrecida, muito saudosa e desgraçada. Desde que meu tio me fala em casamento, volto a sentir por ele a repugnância que lhe tinha em pequena. A morte do meu pai foi uma calamidade enorme. Tenho tutor; mas nem sequer o conheço; estou sujeita a este padre que tem impertinências insofríveis. Se me aceitassem em Odivelas, eu iria parra lá até que tu voltasses a Lisboa... Vem depressa, meu amado, vem depressa resgatar-me deste cativeiro... Se te demoras, receio que me encontres morta...

— Esta carta é escrita por Antónia! por ela! pela minha filha, que eu adorava! Ó ingrata! ó perdida! — exclamava o padre a gritos desentoados lavado em lágrimas, com a mão direita apertada ao coração.

— Coragem, doutor! — acudiu Isaac Eliot — Chore porque a razão das lágrimas é sagrada: mas não desanime, não se tema de que lhe roubem a filha, enquanto o meu braço ou o meu cadáver puder ser um baluarte contra o ladrão. Agora, aqui tem uma carta de Josse Frisch para sua filha.

O padre não a pôde ler de cego pelas lágrimas.

Leu Isaac a parte mais positiva e menos lírica da carta. Dizia assim:

Obtive que a Academia me envie a estudar o reino vegetal na Península. Aceitei a comissão como pretexto pura que o meu honrado pai não desconfie dos meus intentos. Quem aí me chama és tu, minha adorada Antónia, meu primeiro e último amor. Não me chama tua riqueza, e hei de justificar-me aos teus olhos e aos do mundo trazendo-te, meu querido tesouro, para a minha pátria, e levando-te aos pés do sacerdote enfeitada com as joias da minha mãe. Os poetas são metidos a riso pelo seu desprendimento das realidades que se pesam no balcão das bestas que injuriam a inofensiva independência das almas bafejadas pelo ar fragrante do céu...

Eliot interrompeu-se para interpor esta observação:

— Veja que tolo este! que maravalhas aqui vão, doutor! com este cascabulho de palavrório que os tais poetas embelecam os incautos espíritos das crianças!

— Leia, leia! — disse o padre impacientado com o comento.

O médico começava um novo período; e, se o achava poético e inútil ao ponto essencial do rapto, passava adiante, dizendo:

— Trapalhadas — barafundas — asneiras!

Afinal topou com o derradeiro que era o mais expressivo:

A hesitação da tua última carta a respeito da fuga diz-me o Coração que já te não prende, Antoninha. Confia-te a mim, que devo ser o teu mundo. Se eu sou a tua vida, como nesta carta me dizes, as considerações que te estorvam de fugir parece que dizem o contrário. Se tivesses um pai adorado ou mãe estremecida, infame seria eu se quisesse deslumbrar esses santos amores. Mas eu sei que pelo teu tio apenas sentes amizade, e pela senhora do convento a tua ternura, minha querida Antónia, é a necessidade que tens de acariciar no seio do teu coração órfão aquela religiosa que te chama sua filha e te beija com um ardor que te era desconhecido.

O médico regougou uns sons nasais, que significavam estar lendo de fugida períodos de frioleiras. O padre, erguendo a cabeça de sobre as mãos em que a descaíra, disse impetuosamente:

— Tenho visto... Dê-me essas cartas...

— Aqui tem as cartas; mas, se me permite, pergunto o que tenciona fazer com elas.

— Não sei, hei de pensar... Primeiramente, vou mandar buscar Antónia...

— E depois? tenciona fechá-la à chave num quarto para que o alemão a não veja!

— O alemão! — respondeu o padre fremente de cólera — o alemão, se aparecer nos arredores desta casa, há de ser espingardeado; e ela... pois que pensa o doutor? ela, se me resistir, se tentar fugir, amarro-a a uma argola de ferro como se faz a uma negra. A desaforada! ousar dizer ao amante que não podia sofrer as minhas rabugices! e autorizá-lo a dizer-lhe a ela que sente por mim apenas amizade!...

— A paixão desvaira-o, Sr. doutor Xavier... — contraveio Isaac Eliot em tom de mágoa — a sua filha não deu motivo a que vossa mercê lhe chame desaforada. Esse epíteto quadra somente às mulheres impudentes. Se Antoninha o não amou, como as filhas amam, quem teve a culpa? A culpa teve-a quem lhe ensinou a dar o mágico e dulcíssimo nome de pai a um que não o era. A palavra e não a natureza é que gera a ternura filial. O carinho e a convivência de quatro anos com o seu irmão Paulo alhearam de vossa mercê o coração da sua filha. Apelo, em nome dela, para a sua alta sabedoria e brilhante razão, doutor!

— Defende-a?! — retorquiu o padre. — A boas horas me vem com esses argumentos, Sr. Eliot!... Vamos ao que importa, que é evitar que Antónia fuja... O primeiro passo é tirá-la de Odivelas...

— Se ela correr perigo lá, isto é, se Erisch a procurar em Odivelas; mas é mais natural que a procure aqui; e, nessa hipótese, o mais acertado é deixá-la lá estar os três dias pedidos, e os mais dias que for necessário, até sabermos o destino do prussiano. Se me dá licença, vou hoje a Odivelas; verei as duas religiosas e Antoninha. Ao primeiro lanço de vista, lerei no íntimo de todas.

— Faça o que quiser... — condescendeu secamente o padre, quebrado por desânimo profundo e pelas interiores angústias do coração congestionado.

O médico tomou-lhe o pulso, e murmurou:

— Não está bem isto... Se se deixar esmagar pelo ligeiro infortúnio porque está passando, meu querido amigo...

— Quer dizer que morro?... — acudiu o padre aflito.

— Pode morrer...; e, se tamanha desgraça sucede, eu não verei o resto, porque vou imediatamente para França, visto que perdi o meu primeiro e único amigo; mas, depois, a sua filha e a sua riqueza... serão de Frisch.

— Isso é atroz! — rugiu o bisneto de Maria. Isabel Traga-malhas — isso é atroz, doutor... Não quero morrer! não me deixe morrer! Salve-me segunda vez... peço-lhe com as mãos postas...

Eliot abraçou-o; e, falseando a comoção, balbuciou:

— Não morrerá!... mas reaja, esforce-se, abra o peito a um raio de esperança... pense na felicidade de ainda ver sua filha casada com um homem digno, um homem em cujos braços vossa mercê possa reclinar-se como está nos meus...

Francisco Xavier olhou a fito no rosto do médico, cingiu-lhe um braço à volta do pescoço, tirou-o para si enternecidamente, e disse:

— Quer casar com a minha filha, doutor?

— Se eu pudesse chorar, responderia — tartamudeou Eliot.

— É supérflua a pergunta e a resposta... Sabe como eu adoro sua filha; mas nenhum de nós sabe se ela me odeia. A certeza de que eu me faria amar à custa de idolatrias e carícias, essa tenho-a eu. Estremecê-la-ia como pai, porque ela tem quinze anos, e eu trinta e seis. Aconchegá-la-ia do meu seio em raptos de amor louco, de paixão delirante!... Oh! Sr. Xavier! se eu ainda velarei os dias ditosos da sua velhice com os desvelos de filho!...

— Eu dou-lhe Antónia!... — repetiu o padre com entusiasmo, com alacridade, escandecido o rosto de súbitas exaltações, e os olhos cravados, fascinados, no rosto do médico. E prosseguiu a vozes intercaladas pelo ofegar da respiração enferma: — Se ela o não ama, amá-lo-á quando o conhecer... É uma criança... Naquela idade os corações são de cera... O ardor de uma afeição faz delir as imagens que lá deixaram as outras... O doutor há de saber fasciná-la; verá, desde que for sua mulher, como ela o estima... O amor virá depois... É sempre assim... Sei centenares de exemplos...

— Mas... — interrompeu Eliot.

— Que é?...

— Violentá-la... impor-lhe um marido!... E, se ela me desprezar as Lágrimas da paixão... Se se deixar morrer de inconsolável tristeza...

— Não sabe nada do coração humano... — replicou o padre.

— Homem! tenha orgulho, tenha confiança em si! Veja que venceu o mais soberbo dos pais, o homem que projetava dar a sua filha uma coroa de marquesa!... E receia não dominar um ente fragilíssimo... uma rapariga de quinze anos!...

— Pois bem! — exclamou Elliot, como sacudido por inopinado impulso — Serei o marido da sua filha! — E, ajoelhando, beijou a mão do padre.

CAPÍTULO XXXIV

O defunto boticário prometera a Josse Frisch indagar a residência do padre Francisco Xavier, e nessa fingida diligência saíra da botica, despedindo-se do patrício, quando foi procurar Eliot.

Voltou o prussiano três vezes nesse dia à Cordoaria Velha.

O praticante Valebelt esperara o patrão para jantar ao fim da tarde; e no dia seguinte, e nos três sucessivos Josse Frisch passou o mais das horas acantoado na botica, à espera do seu conterrâneo. O praticante não denotava grande estranheza do caso. Dizia ele que o seu patrão, às temporadas, ia luxuriar nas relvas de Queluz com alguma sécia escolhida na rua dos Vinagreiros ou nas encruzilhadas dos «Fiéis de Deus», e por lá se mantinha espojando-se em cabriolas de parçaria com Baco e Vénus.

Ao quarto dia, quando o prussiano aconselhava o praticante a pedir notícias do patrão pela Gazeta de Lisboa, entrou na botica Henrique Rutier, e perguntou ao rapaz:

— Está cá o Sr. Jácome?

— Não, senhor. O meu patrão saiu há quatro dias e não voltou.

— Foi à terra? ou está fora da terra?

— Não sei dizer-lhe. Ninguém sabe onde ele está. Agora mesmo me dizia aquele senhor que botasse um anúncio na Gazeta.

— E lembrou bem: ou pedi-lo pela Gazeta ou responsá-lo a Santo António da Sé.

E, gracejando, reparava na pessoa indicada pelo praticante.

Reconheceu-o.

— Este senhor não é português — disse Rutier, cortejando Frisch com um ademão cavalheiroso.

O prussiano, como visse um homem bem maneirado, de capa e volta, cabeleira e espadim, correspondeu ao cumprimento erguendo-se, e respondeu:

— Sou estrangeiro.

— Logo me quis parecer — volveu Rutier em francês — A cor da sua epiderme e dos seus cabelos afirmam que tenho a honra de falar com um vassalo da sua majestade Frederico III da Prússia; e não seria grande penetração conjeturar a nacionalidade do cavalheiro, encontrando-o na botica do honrado prussiano Jácome Valebelt.

— Sou prussiano — disse laconicamente Josse Frisch.

— E eu sou francês. O Sr. viaja?

— Viajo.

— Escolheu má terra. Portugal não tem que ver nem que estudar. Há muitas festas de igreja. Gosta de festas de igreja? de novenas? de lausperenes? de jubileus? Tem disso todos os dias. Teatros aqui é coisa que ninguém vê e ouve sem o desejo de ser cego e surdo. Lisboa é uma cidade velha e corrompida, mas feia como as velhas corruptas. Os estrangeiros, que aqui aportam por engano, morreriam de fome, se não existisse a hospedaria francesa do largo dos Remulares. Isto aqui são as ruínas da Mesopotâmia cheias de camelos. Esta gente é selvagem, e veste-se à francesa, porque o país é frio. Se nascessem na África, andariam de tanga. O gentio baixo traja capote com que encobre o arcabuz que aperra aos viandantes assim que anoitece. De noite é perigoso sair quando não há lua. As ruas de Lisboa são canos de esgoto, escuras como as masmorras da Cova da Onça. Enforca-se gente todas as semanas. Quando descansa o carrasco, trabalha a Inquisição. Digo-lhe isto na minha língua. Se lho dissesse na deles, este rapaz ia denunciar-nos: eu era queimado porque falei, e o senhor era queimado porque não falou. As mulheres são boçais e canhestras. Os maridos, quando sabem que elas farejam amante pelos raros das adufas, esganam-nas, e depois, ou fogem, ou são degolados.

Aqui a melhor sociedade é a dos sapateiros, porque são quase todos franceses...

— Está em Portugal há muito tempo? — interrompeu Josse Frisch.

— Há dez anos.

— Admira que se afizesse a tão ruim terra...

— Entretenho-me a analisá-la, tapando o nariz, como meu amo, o Dr. Isaac Eliot faz quando corta cadáveres apodrecidos. Estou aqui por afeição ao grande médico francês. Nunca ouviu nomeá-lo?

— Ouvi.

— Talvez em Berlim? Há ano e meio que aqui estiveram em Lisboa dois sábios prussianos, João Frisch, e o seu filho Josse. Estes sapientíssimos viajantes frequentavam a casa do Dr. padre Xavier, onde o Sr. Eliot concorria também. Talvez esses alemães levassem a Berlim a fama do grande médico... Pois, senhor, brevemente sairemos de Portugal. O Sr. Eliot casa um destes dias com uma das mais ricas herdeiras de Lisboa, com a sobrinha do tal padre Xavier. Feito o casamento e liquidado o dote que monta a 400 000 francos, ou 150 000 cruzados na moeda de cá, safamo-nos. Pechincha, hein? E noiva galante, uma franga de quinze primaveras, capaz de destilar em sonetos quinze poetas.

E cascalhou uma gargalhada.

Neste momento, Josse Frisch ergueu-se de golpe, deu um passo para Henrique Rutier, e perguntou:

— Conhece-me?

— Se o conheço? nunca o vi!

— Se me conhece, e tem a coragem de deixar cair a máscara de infame jogral, escarrarei na cara do lacaio de Eliot.

Rutier levou a mão ao punho do espadim, e Frisch abocou-lhe uma pistola à cabeça.

O assassino do guarda das galés e do boticário inerme enfiou, tremeu e gaguejou:

— Eu que mal lhe fiz, cavalheiro?

Frisch saiu da botica. Ia sereno, o pulso batia-lhe as pulsações pausadas da coragem honrada; mas as lágrimas trasbordavam-lhe do coração.

Era hóspede do padre Rafael Bluteau. O professor universitário João Frisch lograva tal nome que até em Portugal ganhara admiradores. Aquele célebre teatino, então nonagenário, prezava o filho do seu amigo, que conhecera em Paris, quando, acérrimo parcial da rainha Maria de Saboia, teve de retirar-se para França.

Josse não revelou a Bluteau o intento secreto que o trazia a Lisboa; porém, quando o coração lhe estalava à míngua de desafogo, depois do conflito com o facinoroso pajem de Eliot, desvendou o mistério das suas lágrimas ao ancião. Bluteau quis indagar em qual das quintas vivia o padre, quis escrever-lhe e até ir pessoalmente procurá-lo.

— Mas que irá v reverência dizer-lhe? — perguntou o jovem. — Pedir ao padre que seja por mim contra a ingratidão da sobrinha?

— Irei pedir-lhe que...

— Não há que pedir, senhor! Eu não venho a Lisboa solicitar a piedade de Antónia: venho simplesmente dizer-lhe que eu jurara por alma da minha mãe ser-lhe fiel. Quero vê-la rosto a rosto; mas desejo vê-la já casada para que ela não pense que eu venho obrigá-la pelos seus juramentos. Se há alguma coisa mais poderosa que a minha desventura é a minha dignidade.

— Com tão nobre espírito — obtemperou o teatino — a mais extremada dignidade, o complemento da honra, é perdoar e esquecer.

— Perdoar, posso; esquecer, não. A religião manda-me perdoar; mas permite que a saudade me atormente, depois que a ferida da afronta estiver fechada.

Bluteau, sabendo que Francisco Xavier residia na quinta de Camarate, informou o hóspede. Absteve-se de o aconselhar, porque fiava muito da prudência do jovem, e bastante das distrações científicas. Prometia-lhe apresentá-lo na Academia dos Anónimos, na Academia dos Aplicados, na Academia latina e portuguesa, na Academia Real da História, nos saraus eruditos do 4° conde da Ericeira, etc. O douto velho imaginava que nenhuma paixão de amor, por mais de ferro que fosse, ousaria resistir àquelas diluentes academias.

No entanto Josse Frisch, avençado com um servo do convento de S. Caetano, onde era hóspede, averiguava em Camarate o dia do casamento de Antónia Xavier. O informador peitado era o quinteiro ou feitor da quinta dos Nobres.

CAPÍTULO XXXV

O padre Francisco Xavier escreveu ao tutor de Antónia pedindo-lhe urgentemente a sua presença. Era o tutor magistrado austero e católico intolerante. Chamava-se Joaquim Rodrigues Santa Marta Soares e era desembargador. Tinha cinco filhas em diversos conventos, sacrificando quatro à veleidade de uma que se deixara galantear de certo oficial de marinha holandesa, que não era católico. Com dois traços temos o perfil do tutor de Antónia. Privou-se das cinco filhas, vivia só, tinha as pernas inchadas de gota, ouvia ressonar a escrava preta quando ele gemia com dores, esperava morrer desamparado e talvez sem sacramentos; mas morreria tão bem disposto quanto se pode morrer, imolando-se a si e à sua família, para que uma das suas filhas não casasse com herege. Dizia ele que o seu martírio voluntário havia de ter prémio por todos os séculos dos séculos, o padre começou por expender ao desembargador Santa Marta os amores da sua pupila com um tal Frisch, prussiano, e filho do clérigo calvinista João Frisch.

A palavra «calvinista» desarticulou-lhe a mandíbula inferior Santa Marta abriu a boca, e disse tudo naquele horror silencioso. Prosseguindo, expôs o padre que resolvera compelir a sua sobrinha a casar com o cavaleiro professo da ordem de fosso Senhor Jesus Cristo, o doutor em medicina Isaac Eliot.

— É católico? — perguntou o desembargador.

— Foi huguenote; mas abraçou o catolicismo em Portugal, sem o que não poderia professar na ordem.

— Bem sei; mas cumpre distinguir: há cavaleiros professos judeus, refinados judeus...

O filho de Jorge Mendes Nobre sentiu abalos interiores; e Santa Marta continuou:

— Há cavaleiros professos moiros; há-os luteranos; há-os calvinistas; há-os que não temem Deus nem o diabo; o manto da sagrada ordem dos cavaleiros de Cristo cobre muito maroto, muito impostor, muito malvado que os cárceres do Santo Oficio reclamam. Saibamos se a conversão desse médico foi sincera. Médico em Portugal raro há um que não seja herege.

— Afianço-lhe, Sr. doutor desembargador, que Isaac Eliot....

— Isaac! esse nome é moirisco! — atalhou Santa Marta Soares — Porque não se crisma o sujeito? Esse nome fede a Mafoma... Isaac! É suspeito!... Frequenta os sacramentos?

— Pontualmente.

— Bem. Fio-me no padre Francisco. A minha pupila é filha do meu colega Paulo Xavier, quero-a casada cristãmente; ou se não, tirem-me encargos e escrúpulos de sobre as costas. Desquitei-me de cinco filhas; mal de mim se me sobrecarrego com responsabilidades por filhas alheias. Que mais?

— Além da sua licença como tutor, careço da licença do prelado para que o casamento se possa contrair na igreja de Camarate, sem a prévia leitura de proclamas.

— E os documentos do contraente? idade, batismo, estado, etc.

— Aqui está a certidão do batismo na igreja de S. Domingos, que precedeu a profissão. A certidão de solteiro apresentá-la-ei quando chegar de França. Responsabilizo-me. Há urgência, Sr. desembargador. O calvinista está em Lisboa. Receio que ele me rapte a sobrinha.

— Está em Lisboa?! quê?

— Sim, senhor; está em Lisboa.

— E o Santo Ofício onde é que está? Escreva aí o nome do homem e a morada. O

padre sabe que o calvinista está em Lisboa, e deixa-o andar às soltas?

— Não me importa a religião do homem; o que eu quero é livrar minha sobrinha da contaminação dó herege.

— De acordo; mas, se ao mesmo tempo, puder arrancar a alma desse réprobo às presas de Satanás, purificando-lha no tribunal da fé, o padre faz-lhe um bom serviço, e purga a sociedade de um monstro, se ele morrer incontrito e relapso, etc.

— Sr. desembargador — obviou o filho do hebreu, e o amante de Catarina de Castro — rogo a vossa senhoria que me não aconselhe tal vingança. Estou muito enfermo, muito próximo da sepultura; não quero, à hora da morte, ouvir gemidos. Vossa senhoria sabe que eu sou filho do seu colega Jorge Mendes Nobre, que o Santo Ofício atormentou. Não sei se o meu pai era um extremado católico: sei que era honrado e inofensivo. Deixemos o calvinista. Deus o iluminará. Logo que a minha sobrinha esteja casada, o rapaz decerto vai para a sua pátria, e não nos empestará a nossa com as suas doutrinas. Deixá-lo ir. Conheci-lhe o pai, o sábio João Frisch. Foi minha visita, e era um honrado velho... e era, sobretudo, pai. Ser-me-ia acerba a agonia da morte, se nos delírios da última febre entrevisse o aspeito de João Frisch a acusar-me da morte do seu filho...

Raiaram-se de lágrimas os olhos do doutor Xavier.

O desembargador, quase compungido, atalhou a comoção, dizendo:

— Está bom, está bom... Que o leve o diabo ao herege para onde não faça mal. As licenças mande-as buscar amanhã a minha casa. Vou daqui à Relação eclesiástica, e tudo ficará hoje em ordem.

No decurso dos sucessos referidos, D. Antónia Joaquina estava em Odivelas. Finda a licença dos três dias, soror Paula rogou ao padre nova concessão. O doutor Eliot oferecera-se para medianeiro do pedido, e conseguira nesse acto que Antónia lhe agradecesse a fineza com um sorriso. Facilmente percebeu o espião que a vinda de Frisch era ainda ignorada.

Francisco Xavier consentiu; mas pedia a soror Paula que lhe enviasse sua sobrinha, quando ele a chamasse ao seu leito de moribundo. Exagerava muito de plano a doença em harmonia com a traça combinada; porém, o médico suspeitava que o padre inconscientemente dissesse a verdade, O saco aneurismático entumecia-se, os acessos da tosse acordavam-no em anseios de asfixia, os sintomas ameaçavam-no de morte súbita.

Obtidas as licenças do eclesiástico, mandou o padre buscar instantemente a sobrinha.

D. Catarina, desde que Eliot lhe asseverara a perigosíssima lesão de Francisco Xavier, sentiu-se abrasada em ânsias de lhe assistir no transe final. As feições odiosas do singular coração daquele homem desvaneceram-se, escurentou-as um raio de luz do passado, a saudade do gentil Xavier de dezasseis anos antes. Pedia secretamente a Paula que lhe alcançasse licença para ir despedir-se do grande desgraçado, que, se a não tivesse encontrado, seria àquela hora um homem feliz. A desdenhada amante de D. João V impedia com bons conselhos o desatinado desejo; rogava-lhe que não repusesse na evidência as esquecidas fragilidades da sua juventude. Catarina sucumbia envergonhada e contrita; mas, a espaços, escandeciam-na uns frenesis que faziam recear perturbações profundas no seu juízo. Estes lances passavam às escondidas de Antónia Joaquina; todavia, uns dizeres estranhos da sua querida freira, os resguardos de Paula, e uns misteriosos olhares de Maria da Luz insinuaram-lhe desconfianças, que ela não ousava formular, dos antigos amores de Catarina com o seu tio Francisco Xavier.

Conduzida a Camarate, achou o tio no leito, e só. Nos seis dias de separação, desfigurara-se, mirrara-se, as pálpebras descaídas e transparentes davam-lhe o aspeto cadaveroso. Quando sentiu o rugir dos vestidos da sobrinha, esforçara-se, e sentou-se encostado ao espaldar do catre. Dir-se-ia que daqueles lábios trémulos ia irromper a indignação, o queixume, o vitupério. Não. Chorou copiosamente abraçado na filha. E ela, vertendo lágrimas que ele contemplava, arfando em delícias de se ver chorado, beijava-a, dizia-lhe palavras quebradas por soluços.

— Vou morrer, Antónia! — disse ele, recobrado da comoção — Não te quero deixar remorsos; mas já sabes quando a minha fatal doença começou. Não chores. Escuta-me. Queria acusar-te; não posso, tudo te perdoei; mais ainda te perdoaria, se mais me tivesses ofendido nas tuas cartas ao estrangeiro Frisch... Bem vi que perdeste a cor, filha. Esse pejo é o apelo da tua inexperiência para a minha razão. O que eu te não perdoaria... era... que fugisses da tua casa com um desconhecido... que deixasses teu tio a chorar-te a ti e à tua desonra. Entre ti e esse infame que te convidava a transpor o limiar da tua casa por cima do cadáver do teu tio, interpôs-se a Providência. Não irás, filha, não irás onde vão as mulheres perdidas, aos braços de um amante, pela porta da... prostituição. Foi a Providência. Mentiste-me, quando me dizias que não te correspondias com o sedutor. Mentiste quando há dias disseste a Fr. André Guilherme que tudo estava acabado...

— Não menti a Frei André! — exclamou Antónia.

— Mentiste!

— Juro que não menti! juro por alma do meu pai!

— Juras? por alma de... O teu pai?... Olha o que disseste, Antónia! Olha que eu posso provar-te que juras falso.

— Não pode — insistiu Antónia com veemência. — Eu já não tenho correspondência alguma com Frisch.

— Dá-me aquela papeleira preta!... — exclamou sobre-excitado, apontando para o contador sobre o qual estava a papeleira.

Antónia ergueu-se trémula, ia pegar da papeleira, quando o padre bradou com a voz rouca e desfalecida:

— Não tragas! Tenho compaixão de ti... e de mim... Não posso ler... nem poderia infligir-te a tortura... de te obrigar a ler... o que escreveste de mim.

Antónia fitava-o com os olhos perplexos de terríveis dúvidas.

— Senta-te... Senta-te... — volveu ele — Deixa-me descansar... Não posso falar... Espera...

Passados minutos, o padre, humedecendo os lábios e a língua em goles de água, prosseguiu mais sereno e composto de rosto.

— Não mentiste, Antónia?

— A Fr. André Guilherme, não, meu tio.

— Aceito o teu juramento por alma do teu... tio.

— Do meu pai! — emendou ela — meu tio está vivo, graças a Deus.

— Vem cá! — rouquejou o padre — Chega-te aqui bem perto do meu coração... Assim... Agora, escuta, filha. Essa alma por quem juras era do teu tio Paulo... O teu pai... é outro maior desgraçado que ainda vive... sou eu.

Antónia estremeceu nos braços do pai. Não vociferou o menor som, nem sequer o ah! — interjeição convencional de todas as grandes dores, de todos os júbilos surpreendentes e solenes assombros. Aquele silêncio era um como eclipse da razão, um pasmo de todas as faculdades. A súbita demência deve ser assim uma paralisia moral.

— Ouviste? percebeste, minha filha? — perguntava ele, circunvagando a vista com receio de ser escutado.

E ela, como nos sonhos, ouvia-o sem poder apurar, dilucidar na consciência o valor daquelas palavras.

— Não me respondes? — tornara o padre, sacudindo-a amoravelmente.

— Respondo — balbuciou Antónia. — Eu pensei... que o meu pai... tinha morrido...

Estas palavras, que denotavam um profundo abstraimento, uma reconcentração de memórias e saudades, soaram dolorosamente na alma do pai. Ele esperava uma explosão de lágrimas e carícias, quando a filha, ao sair da estupefação, em vez de o ver a ele, viu a sombra daquele a quem amara como pai. A sua natural resposta à invocação do padre, como não podia ser o arrebatamento do amor filial, era a expressão do assombro. Ela pensava que o seu pai estava morto. Rejubilaria como louca se lhe dissessem: Esse homem, a quem chamavas pai, sem o ser, não naufragou: é vivo.

CAPÍTULO XXXVI

Chegara o médico.

Antónia, aturdida e vacilante como se fugisse de um ambiente sufocador, passou à antecâmara da alcova.

Cortejou-a o médico, e perguntou:

— Está mal seu tio? Vejo-a tão perturbada, menina!

— Eu? não tenho nada... O meu tio é que está muito doente...

Eliot entrou na alcova, inferindo da perturbação de Antónia que o padre antecipara o plano.

Ora, o projeto deplorável era simular-se o padre em perigo de vida, colher de sobressalto Antónia, ilaqueá-la na terribilidade do espetáculo da morte, coartar-lhe as resistências, levá-la enfim como um autómato, sem consciência nem relutância, a ajoelhar-se no arco do altar-mor ao lado de Eliot.

O padre, vendo entrar o médico, e interrogá-lo com os olhos suspeitosos, franziu o sobrolho. Era-lhe mais grata, naquela hora, a presença da filha, apesar da inerte mudez que tão desamoravelmente respondera à abrupta revelação do seu Segredo.

— Temos que conversar, doutor — começou Francisco Xavier. — Olhe que Antónia não mentiu a Fr. André Guilherme quando afirmou que as suas inteligências com Josse Frisch eram de todo acabadas A mim mo jurou ela com as mais sagradas cláusulas, agora mesmo.

— Nesse caso, as cartas que vossa mercê possui seriam falsas? D. Antónia negou que fosse sua a letra?

— Não lha mostrei...

— Se assim procedeu, respeitando o pudor da sua filha, fez bem, e beijo-lhe as mãos pelo heroísmo com que se houve, deixando-se dominar pelo decoro e pela piedade.

— Andarão aqui algumas cavilações que nós não possamos rastrear? — volveu o padre meditativo.

— Cavilações de que espécie? Não o percebo bem, meu amigo.

— Intrigas, trapaças, enfim, patifarias de algum inimigo...

— Se bem o entendo, quer dizer que alguém escreveu as duas cartas que entreguei ao doutor...

— Como as pôde o Sr. Eliot haver à mão?

— Comprando-as ao medianeiro da correspondência, como quem compra por baixo preço, a peçonha que havia de matar a honestidade de Antónia e a vida do seu pai. Se eu não comprasse estas cartas, a esta hora sua filha não estaria aqui.

— Quem era o medianeiro?

— O boticário prussiano Jácome, morador na Cordoaria Velha.

— Bem sei... Eu não poderia falar com esse homem?

— Não, senhor. O boticário, assim que Frisch chegou a Lisboa, fugiu para o estrangeiro, com medo de ser descoberto e castigado pelo seu atraiçoado patrício. É preciso que vossa mercê saiba que Josse Frisch, que eu imaginava ser um simples menestrel, é um valentão facinoroso. Há três dias, encontrando-se na botica de Jácome com o meu pajem Henrique Rutier, reconheceu-o como um dos meus domésticos, e, à volta de poucas palavras, sem mais nem menos, meteu-lhe uma pistola ao rosto. O meu pajem, fulminado pelo sobressalto, não resistiu; e, se resistisse, seria assassinado.

— E não o prenderam?! — interrogou o padre espavorido.

— Nem prenderão, porque o patrocinam poderosos padrinhos.

— Quais?

— Só hoje pude colher exatas informações. Josse Frisch está hospedado nos aposentos do padre Rafael Bluteau. Rodeiam-no os homens de letras mais graduados. Escuta-o e recebe-o na sua livraria o Sr. conde da Ericeira. Vossa mercê sabe que el-rei manda todas as semanas saber da saúde de Bluteau, e o padre, quando sai, é conduzido ao paço pelas seges da casa real. Já conhece quem protege o pactuado raptor da sua filha. Mas — pergunto eu — tem ele precisão de a raptar? Tolo seria, se o fizesse. Fugindo com ela, o dote ser-lhe-ia detido através de litígios; casando, levaria a mulher e o património. Não nos espantemos, pois, se de um momento para o outro, a Sra. D. Antónia Xavier se despedir de nós, visto que a está esperando o meirinho do eclesiástico, que a leva a requerimento de Josse Frisch, protegido por Paula Perestrelo, por D. João V, pelo propósito de S. Caetano, por fidalgos de primeira bitola..

— Não se assuste... — regougou o padre — não se assuste, que eu já não luto com a minha filha... é com as Perestrelos, é com o rei, e com os fidalgos... Que tenho eu com esses potentados da depravação e do escândalo?... Nesta casa, o rei sou eu! D. João V!... D. João IV, o amante desaforado da minha bisavó, fez enforcar meu bisavô, que era um marido dos que não usam pontas de ouro como João Lourenço da Cunha. Eu tenho ódio de raça a esta família relaxadíssima dos Braganças! Quando me não queimavam os parentes, roubavam-mos... A minha filha teria milhões, se a riqueza dos Traga-malhas e a dos Nobres se não escoasse parte na guerra da independência e parte nos festins desses canibais da Inquisição. O meu pai e o meu avô foram resgatados dos autos-de-fé à custa de dezenas de mil cruzados; e D. Pedro II, que não saldava as dívidas do pai ao meu avô Francisco Mendes Nobre, deixava queimar um dos meus parentes, e padecer o outro as golilhas que lhe fechavam a garganta e abriam os cofres. Veja-me esse grande devasso que aí reina! Sai de pernoitar em Odivelas, e assiste aos autos-de-fé, e não se afasta da tribuna quando as carnes dos hebreus rechinam na fogueira. Sabe que mais, doutor? Não quero morrer em Portugal!... Tenho parentes na Holanda, e cabedal bastante para me tratar desafogadamente quando a rapacidade de reis e de frades me arrebanharem esses prédios que aí tenho, e esses padrões de juro que aí estão nesses contadores. Horda de ladrões! virão roubar-lhe a filha? O forasteiro Bluteau, que lambia os pés à devassa de Saboia, e alastra as desonradas cãs nos estrados de D. João V, recolhe na sua cela o herege, e absolve-o da infâmia de raptar judicialmente uma criança!... Querem o dinheiro? levem-no! mas deixem-me a minha filha! Ponham à frente da matilha o prussiano. Assaltem esta casa, arrombem estas gavetas, levem tudo; mas não me desonrem, cafres!

O padre, à proporção que bramia, saltava do leito, amparado no médico, e envergava o vestido com vertiginosa celeridade.

— Quero esperá-los, quero ver cara a cara o tal pimpão das pistolas! — resmoneava o padre a impar de cólera e tão rúbido que o sangue parecia ressumar-lhe nas faces.

Antónia que lá ao longe, no seu quarto, ouvira a troada indistinta daqueles clamores, aproximou-se e entrou na antecâmara do padre, no momento em que ele dizia com o alento quase exaurido nos braços do médico:

— Afinal... é a minha filha que me mata! Ó Sr. Eliot! que terribilíssima expiação!... Como Deus me tem castigado com a severidade de um cruel demónio!

— Não culpe sua filha, Sr. Xavier — disse o doutor — Antoninha é uma criança, é uma doce alma que a fatalidade quis envenenar... Se o Frisch a não inquietasse no regaço do anjo da inocência, sua filha seria o bálsamo do seu pobre coração ulcerado, meu infeliz amigo!...

O subtil ouvido do médico dera tento de Antónia na próxima saleta. Estas frases que o seu bom ou mau demónio lhe inspirara, ouviu-as Antónia com admiração e contentamento. Desconfiava do despeito recôndito do médico; e detestara-o quando ele lhe suspirara finezas, tendo ela o coração cheio de amor de Frisch. A sua alma era já outra para agradecer as consolações da amizade. Figurou-se-lhe, naquele lance, Isaac Eliot um sincero amigo sacrificado a um falso amor. As expressões afetivas do médico, proferidas na sua defesa e na sua ausência, deram-lhe a reconhecer um bom carácter, e melhor coração que o do outro que a traíra com singular vilania.

O padre passou rapidamente à antecâmara; Antónia já não pôde fugir: titubeou, e disse que chegara naquele instante para saber da saúde do tio. Ela não usou reticências na escolha do grau do parentesco. É que não se lembrava já que ele fosse pai. A revelação ficara-lhe na concha da orelha, e não filtrou ao coração.

— Ia procurar-te... — disse o padre em vozes intercadentes e picadas pelos espasmos da respiração difícil. — Já que aqui estás, ficaremos aqui. Senta-te, Antónia. Sr. Eliot, sente-se também. Antónia, isto vai acabar. O teu maior amigo vai fechar os olhos, cansados, cegos de chorar. Eu choro há muitos anos; há tantos quantos tu contas. É tempo de ir adormecer o sono eterno na sepultura dos meus pais. Antónia, vai-se-te o primeiro amigo; e eu quero deixar-te amparada no coração do segundo. Se queres que as minhas derradeiras palavras sejam as de um pai extremoso que te abençoa, aceita como esposo o Sr. Dr. Eliot, que te adora há três anos, e tem por amor de ti sofrido todas as dores ocultas dos que amam com honra.

Eliot levantou-se: ajoelhou aos pés de Antónia Xavier, e balbuciou:

— O Sr. doutor Xavier disse o que os meus Lábios não ousariam proferir. Sra. D. Antónia Joaquina, se o seu pai falecer — o que Deus não há de permitir tão cedo — e a menina precisar de um amigo dedicado como pai, achar-me-á sem ser minha esposa. Eu lhe peço de joelhos, não a sua mão; peço-lhe a sua amizade.

Antónia contemplava-o... e não respondia. Era como se não o ouvisse. No espanto da vista, ainda assim, havia luz suave; se aquela imprevista cena a angustiasse, o rosto vibraria em contrações, e as lágrimas golfariam, quando o medo e a obediência lhe represassem os gritos.

Eliot esperava de joelhos a resposta. Antónia espertou da sua letargia quando o pai lhe perguntou:

— Minha filha, dás o teu futuro, os teus haveres e o teu coração ao Sr. Eliot?

— Como quiserem — respondeu ela.

O médico beijou-lhe a mão convulsa. O padre ergueu-se com os braços abertos, e exclamou:

— Abraça-me, querida filha! e perdoa-me as injustiças que eu fiz à tua dignidade... Agora, creio que não morrerei tão cedo...

E sentou-se, quase resvalando dos braços deles, chorando, arquejando e empalidecendo.

Eliot sondava-lhe o pulso, e dizia entre si:

— Que horrível desastre, se a comoção lhe rompia o aneurisma nesta conjuntura!

CAPÍTULO XXXVII

Era uma manhã nublosa e parda de Novembro de 1729. O borraceiro da noite gotejava das varas desfolhadas do arvoredo. A revezes, um pegão de norte glacial sacudia as derradeiras folhas que esvoaçavam de encontro às vidraças da casa de Camarate. Nas assomadas dos outeiros ringiam as asas dos moinhos, e os panais, embatidos pelo vento rijo, trapeavam como no compassado arfar da mastreação do navio. As nuvens cor de chumbo estiravam-se na ladeira dos montes; e sobre os pauis e regatos pairava um rolo de névoas alvacentas. Era, pois, uma triste manhã aquela que se seguia à decidida perdição de Antónia Xavier.

O padre andava a pé antes do alvorecer. Estivera até à meia noite com a sua filha e com o médico na sala de espera onde ardiam as brasas do fogão. Eliot saíra àquela hora com o pajem e o lacaio para Lisboa; Antónia entrara no seu quarto; e Francisco Xavier, temendo as ânsias que o afligiam no leito, adormecera na poltrona, acalentado pelo ar tépido da sala..

Quando espertou, tiritava de frio. O escudeiro quis deitá-lo; mas o prior e os padrinhos do casamento tinham sido avisados Para as dez horas da manhã, Não se deitou. Foi o escudeiro aquecer à cozinha o remédio do seu amo, e voltou dizendo que a criada da menina lhe dissera que a Sra. D. Antónia toda a noite passeara no quarto, e ao romper da manhã saíra para a quinta, apesar do frio. Esta nova entristeceu o pai. Outra, Porém, mais perturbadora, lhe deu o escudeiro. A criada que denunciara a saída matutina de Antónia à quinta, acrescentou que, indo ela de uma janela alta da casa ver se a menina andava no pomar, ouvira tropear um cavalo na azinhaga que passava rente com o muro da quinta, e avistara um cavaleiro encapotado chegar e parar em frente da casa, e inclinar-se a conversar com alguém que ela não pudera enxergar; disse mais que o cavaleiro, desembuçando-se para descer do cavalo, deixara ver o rosto, e ia jurar, concluiu a criada, que o sujeito era o estrangeiro de quem a menina gostava; mas declarava que a sua ama, quando o cavaleiro se sumiu, vinha do lado oposto, caminhando muito devagar, e estivera em pé em frente da capela, com a cabeça entre as mãos, como quem chora...

— Vai indagar! vai saber para onde foi esse homem! disse o padre ao escudeiro. E atravessou rapidamente salas e corredores em demanda da filha, que estava no seu quarto lendo e queimando cartas e poesias de Josse Frisch. Assim que ela o conheceu de longe pelo bater sonoro da perna artificial, escondeu as cartas ainda não queimadas e mais o perfumador em que faulavam as cinzas das outras.

— Estás aqui, Antónia? — perguntou ele de fora da porta.

— Sim, tio.

— Posso entrar?

Antónia abrira a porta.

— Que fumo! — notou o padre — Queimaste papéis?

— Sim, senhor.

— Que papéis?

— Cartas...

— Ah!... Saíste já hoje à quinta?

— Saí, tio.

— Onde estiveste?

— Passeei à volta do lago...

— E não estiveste no miradouro que dá para a estrada?

— Estive, sim, senhor.

— Falaste com alguém...

— Com o feitor...

— Quem era um homem que passou a cavalo?

— Não vi homem nenhum a cavalo.

— Mentes!

— Não minto, meu tio.

— Que foste fazer de madrugada ao miradouro?

— Não dormi nada, sentia-me aflita, e saí.

Deteve-se Francisco Xavier enfitando-a com penetrante fixidez; e ela, como cansada de sofrer, sentara-se alquebrada, desviando os olhos da face do pai com um trejeito desabrido de enfado e tédio.

— Estás arrependida do que prometeste ontem? — volveu ele iracundo.

— Não, meu tio: estou às suas ordens.

— Casas obrigada, ou livremente?

— Nem obrigada nem livre: façam de mim o que quiserem.

— Não há dúvida que viste o infame...

— Que infame!? — perguntou ela espantada.

E não depreendeu nada do ofegar silencioso do pai.

Retirou-se o padre. Antónia pensava num sentido para as últimas expressões que ouvira, e nenhum achou.

— Estará ele para enlouquecer?! — disse ela consigo.

Neste momento a criada, que informara o escudeiro, entrara no quarto com o propósito de lhe perguntar se vira aquele estrangeiro louro que ia à rua do Outeiro com o pai. Se lhe faz a pergunta, a noiva de Eliot compreenderia a interrogação acerca do cavaleiro, e as palavras abstrusas do padre, a respeito de um infame; e então lançar-se-ia às estradas em busca de Frisch, e salvar-se-ia. Mas Antónia, de oprimida que estava, queria chorar sozinha; e, vendo entrar a criada, intimou-a com arremesso:

— Deixem-me!...

A criada saiu carrancuda.

Ao mesmo tempo, o escudeiro colhera as seguintes informações: que o feitor, ao romper da manhã, viera do lado de Lisboa; que, meia hora depois, às sete, pouco mais ou menos, chegara um homem a cavalo, e estivera momentos na estrada a conversar com ele; que apeara, e dera o cavalo a um rapaz de alquilaria, e fora a pé para o lado da igreja.

Foi chamado o feitor à presença do doutor Xavier. Não se encontrou o feitor.

Às oito horas e meia apeou Isaac Eliot, com o pajem e dois lacaios pretos. O padre ocultou-lhe as ocorrências com receio de perturbar as coisas bem ordenadas ao seu juízo, bem podia ser que Frisch andasse sondando o terreno; mas que mal poderia advir daí a sua filha? Às onze horas estaria casada. Ainda assim, pintava-se-lhe na imaginação inquieta, ao mais leve rumor, que Bluteau e o rei, e a freira Paula, e a jolda dos ladrões lhe arrebatavam a filha. Sentia-se desassossegado, vertiginoso, atormentadíssimo na alma e no corpo.

Às dez horas chegaram à quinta dos Nobres duas senhoras extração aldeã, irmãs do prior. Vinham para acompanhar a noiva, cheias de vaidade da sua serventia em matrimoniamento de tão opulenta menina. Entraram à sala, onde as recebeu Eliot. Queixou-se uma de obstrução do fígado, indicando o baço; a outra disse que era rendida. Vieram conjuntamente o padrinho e as testemunhas do casamento: eram uns proprietários de Camarate, que também exibiram ao doutor alguma parte dos seus achaques, e todos à uma se congratulavam pela aquisição do médico mais nomeado da capital.

Entrou na sala o padre Xavier com D. Antónia, vestida de seda escura, sem adresses de oiro ou pedras. As senhoras disseram-lhe que eram horas de ir vestir-se de noiva.

— Estou vestida — disse ela, sorrindo.

— Vai muito bem — aplaudiu o padre Xavier — A candura e as flores vão à alma; os enfeites da cabeça e a cor branca dos vestidos são artifícios, vulgaridades tolas.

— Deixe lá, que parece agouro! — disse a indicada para madrinha das núpcias — Noiva vestida de roxo escuro…

— E manto de seda preta! — encareceu a outra — Ó minha Linda menina! vá mudar de roupa! Ao menos ponha um véu branco...

— Superstições... — interveio Eliot.

Chegou o sacristão a dar parte que o Sr. prior e mais o Sr. padre Acúrcio estavam à espera para confessar os noivos, e contou que na igreja já estava muita gente da freguesia, e muitas raparigas com abadas de rosas de inverno, rosmaninho e alecrim, porque não havia de outras flores.

Abalaram todos, exceto o padre, que estava febril, entorpecido e oirado da cabeça. Queria ir; mas o médico proibiu-lho.

Sentou-se ao fogão, e mandou abrir uma janela que dava sobre o espaçoso pátio por onde saíra o pequeno préstito.

Dali viu ele a filha entre as duas irmãs do prior, desaparecer no portão; e chorou. Neste comenos, o escudeiro entregou-lhe uma carta vinda de Lisboa. Era do padre Rafael Bluteau.

O sábio áulico de D. João V expunha ao seu amigo em linguagem comovente a história dos amores da sua sobrinha com o filho do eminente João Frisch. Depois, vinha com grande espanto e mágoa ao lanço em que ela o desliga e se desliga de juramentos sacratíssimos, reciprocamente feitos. Descreve a paixão de Josse, a sua vinda a Lisboa, e o nobre intento dessa vinda. Declara, sob sua palavra de honra, que Frisch não quer perturbar o casamento de Antónia com Eliot; mas tão somente encarar de frente a mulher que lhe matou a juventude e enegreceu o futuro.

Seguidamente, pergunta ao padre Xavier se ele conhece bem o homem a quem vai ligar sua infeliz sobrinha; e acrescenta:

«Eu me abstenho de repetir o que dele me consta por depoimento dos seus mesmos patrícios; porém, se vossa mercê os quiser ouvir depor, aí tem os nomes e residências...

E nomeava uns franceses estabelecidos em Lisboa comercialmente.

E concluía:

«Rogo a Deus que a sua sobrinha seja mais feliz que uma desditosa francesa, a quem ele dava foros de esposa e aí está em Lisboa, recorrendo à caridade dos seus patrícios. Quando comparo, Sr. Xavier, o cirurgião Eliot com o prodigioso jovem, tão douto quanto honrado, tão apaixonado quanto prudente — chego a imaginar, senhor meu, que vossa mercê é vítima de alguns filtros, e sacrifica essa pobre menina que, por desventura sua muito grande, não tem pai, nem tutor ilustradamente religioso. Minta eu como profeta, praza a Deus! mas não posso ter mão do meu espírito que não lhe vaticine grandes remorsos, e remorsos insanáveis, se vossa mercê pôs violência ao coração dessa malsorteada criatura. Padre Francisco Xavier, se ainda é tempo, arranque-a do abismo. Se já é tarde... chore por ela como eu choro por este honesto jovem de quem me escondi para lhe escrever»

O padre amarrotou a carta em ambas as mãos, e murmurou:

— Querem matar-me... Bem sei... É uma conjuração... Acharam impedimento na cúria eclesiástica e no tutor, e vem agora tentar novo expediente... Viestes a tempo, velhacos... Protegeis os luteranos e queimais os hebreus... Talvez o queimásseis, quando ele se apossasse dos meus cento e cinquenta mil cruzados...

Prolongou-se o monólogo, estando o escudeiro à espera da resposta.

— Estavas aí? — disse o padre.

— Espero resposta.

— Diz-lhe lá de viva voz que a minha sobrinha está casada com o doutor Isaac Eliot, cirurgião-mor do real exército, médico da corte, e cavaleiro professo da ordem de Cristo. Diz-lhe isto.

Ouviu-se o toque da sineta que chamava à missa.

— A menina ainda não casou — advertiu o velho criado de Paulo Xavier. — Ainda agora é que vai o padre para o altar.

— Que queres dizer nisso tu?

— Queria dizer, meu amo, que, se vossa mercê recebeu alguma ruim nova, é tempo ainda...

— Vai-te! dá-lhe a resposta que te dei!

Volveram-se-lhe três quartos de hora horrendíssimos. Desenrugou a carta, e releu — a. Figurava-se-lhe agora o venerando Bluteau, diante dele, com as cãs alvejadas por noventa e um invernos. Vibravam-lhe aquelas palavras majestosas no íntimo da alma... «Quem sabe?» dizia entre si. Era terrível aquela interrogação feita à sua consciência hesitante.

— Meu Deus! — exclamara ele; mas a invocação era banal, era o hábito de proferir o nome do eterno Incógnito, quando a exasperação aceitaria o patrocínio do espírito do mal. Havia muito que a Providência fora repulsa das suas agonias e doe seus prazeres.

Entretanto, Antónia e Eliot ajoelhavam no taburno do altar-mor para comungarem. O povo premia-se para mais de perto ver os noivos depois da bênção; metade da igreja estava despovoada; as raparigas, com as saias escarlates e roupinhas variegadas, esperavam no adro, empoleiradas no parapeito, para de lá espargirem a folhagem da rosa e as flores da alfazema e do rosmaninho.

Neste comenos, atravessou o adro um jovem para quem todas olharam, e com vagaroso passo entrou na igreja pela porta travessa.

— Quem é?!

— Que rapaz tão perfeitaço!

— A cara é de estrangeiro!

— Eu antes o queria que ao doutor que apanhou a fidalga.

— Aquele homem — disse uma das sábias — chegou esta manhã, e entrou para casa da tia Francisca Relvas, que é mãe do feitor dos Nobres...

— Eu bem no vi também, quando o acompanhamento entrou na igreja. Estava ele além na devesa do João do Rio, encostado àquele sobro, e embuçado num capote. Eu só lhe vi os olhos e o cabelo, mas não me escapou...

As mais curiosas, que eram todas, entraram também de roldão no templo.

Josse Frisch estava encostado à pia da água benta, suspensa na ombreira da porta travessa.

Os contraentes eram abençoados no mesmo instante que Josse transpôs a soleira da porta, e conservaram-se de joelhos ouvindo os bons ditames do prior acerca dos deveres conjugais. O sacristão furou por entre a mó de povo para ir repicar os sinos, e os criados da lavoira da quinta atroavam os ecos descarregando bacamartes no adro.

— Vão com Deus, e sejam felizes! — disse finalmente o prior.

Eliot e Antónia voltaram-se para o povo que, suspenso da beleza da noiva, não abria passagem.

Henrique Rutier passou para a frente, e disse mal encarado ao povo:

— Então? ficaram embasbacados?

Os camponeses desviaram-se a dois lados, e os noivos desceram a par por entre as alas.

Chegados a meio da igreja, dentre a ala esquerda saiu, com algum esforço, um dos espectadores, e parou em frente de Antónia Xavier.

Era Josse Frisei.

O primeiro gesto de Antónia confundiu-se com o último. Viu-o, reconheceu-o, avançou um passo, retraiu-se com as mãos nas fontes, abriu os lábios e os olhos trementes, suspirou um gemido estertoroso, e resvalou sem acordo aos braços do marido.

Josse Frisch contemplou-a um momento, fitou com o maior desprezo da vida Isaac Eliot, e, desviando-se da clareira entre as duas filas de povo, saiu pela porta transversa.

O prior fez conduzir a cadeira paroquial para se assentar a noiva. Eliot, coadjuvado por três homens robustos, ergueram nos braços a poltrona, e caminharam para a quinta.

Os sinos cessaram de repicar. Havia alarido no adro; as mulheres choravam alto, e algumas clamavam que a fidalga tinha morrido de repente.

O padre debruçara-se na janela contígua ao fogão, quando os sinos festejaram o casamento celebrado. Estava enxugando as lágrimas, e espancando da ideia os agouros do padre Rafael Bluteau. Figurou-se-lhe ouvir um vozear como de choro. Chamou o escudeiro:

— Que ouves tu?

— Ouço chorar, meu amo.

— Vai ver o que é... corre... Os sinos já não repicam... Espera que eu vou... ajuda-me a descer a escada.

A escada, que descia da sala de espera ao pátio, era precipitosa.

Antes de sair, assomaram no portão as criadas da casa, correndo e bradando:

— Vem morta! vem morta!

— Quem? — exclamou o padre.

— A menina! — responderam elas, dando gritos estridentes.

— A minha filha morta! Oh meu Deus! — bradou ele.

E Francisco Xavier correu quanto lhe permitia o aleijão, para O mainel que formava um varandim no topo da íngreme escada. Entreviu então a cadeira cercada de gente a entrar no pátio. Já então devia ver por entre as névoas da morte o corrimão de ferro a que inutilmente quis fincar-se. A perna artificial não se dobrou quando o tronco se acurvava em busca de amparo. Caiu rolando de degrau em degrau, e bateu com a cara num dos pilares de ferro que rematavam o corrimão. E expirou fulminantemente, não da queda que de leve o feriu; mas da rutura do aneurisma. Foi o espetáculo da filha aparentemente morta que o afogou na onda do sangue represado.

Os três segundos, que precederam aquele trespasse, deviam ser a síntese de agonias incalculáveis! O escudeiro afirmara que só lhe ouvira duas palavras: — Matei-a eu!

CAPÍTULO XXXVIII

Eram passados oito dias. Francisco Xavier, o grande desgraçado, apodrecia no jazigo dos seus pais e avós. Josse Frisch, velado em perigosa doença pelo padre teatino, esperava restabelecer-se para voltar ao seu país, e pedia perdão a Deus pelo crime da sua apaixonada vingança. Catarina de Castro, avisada simultaneamente da morte da filha e do desastrado passamento de Francisco Xavier, após o paroxismo de poucas horas, recaiu num espasmo de imbecilidade, perda de memória, rindo e chorando, o idiotismo estúpido, espantadiço, que tem os risos meigos que nos arrancam lágrimas. Quando chegou a Odivelas a nova de que Antónia era viva, Catarina parecia recordar — se, e, beijando soror Paula Perestrelo, chamava-lhe a sua filhinha. A sua desventura era tamanha que as religiosas de Odivelas, suas inimigas, já diziam compassivamente:

— Deus castigou-a, porque, por amor dela, os quadrilheiros do corregedor nos insultaram.

E as mais descompadecidas apenas murmuravam com os olhos nos painéis dos santos:

— Foi bem feito. Agora queremos ver também como acaba a Paula.

— Ela cairá — vaticinava outra — porque lhe faltam as muletas reais.

A caridade tinha limites — os justos limites que a religião bem entendida lhe abalizou. Segundo as mais versadas em teologia ascética, Deus ensandecera Catarina, e partira as reais muletas de Paula.

No entanto, Eliot e a sua mulher viviam na casa da rua do Outeiro.

Concentremos aqui a nossa atenção, porque todos os outros infortúnios derivados da sua desgraça são contingências que pouco fazem ao martírio de D. Antónia Joaquina Xavier.

Profundo torpor, indiferença glacial, uma espécie de sonolência marasmaram a filha de Francisco Xavier. Encarava o marido com medo quando ele a distraía da sua reconcentração, dizendo-lhe palavras de contrafeita meiguice. Havia o que quer que fosse que lhe embaraçava a língua, se pretendia justificar a paixão que o propelira a disputá-la ao rival. Como era muito infame, julgava-se dispensado de dar explicações à mulher, que não lias pedia. Era sua a herdeira. A parte importante da conquista vingara — se. A menor, a vassalagem do coração, nem sequer o ciúme lhe exaltava os quilates. Se a não amava, quando a solicitou de joelhos, que sentimento se havia de esperar depois que ela desmaiou na presença de Josse Frisch?

Entretinha-se na liquidação do património. Eram duas poderosas heranças. A do desembargador Paulo Xavier, que legalmente, no inventário, era o pai de Antónia, e a do seu tio Francisco, arredondavam cento e cinquenta e seis mil cruzados ou treze mil moedas, segundo a computação de um poeta coevo de que faremos menção. Eliot, como é de ver, não alterou a paternidade falsa da mulher. Para quê? Esclarecer o nascimento de Antónia seria litigiar-lhe o dote. Até da sepultura, o nome do legítimo pai viria difamar a filha no meio de tanta corrupção, a moral conservava a máscara carnavalesca.

Os criados do padre conservou-os Eliot, acrescentados com duas das suas criadas. Henrique Rutier, feito o casamento, recebeu avultada gratificação. Sem despedir-se do serviço de Eliot, alugou casa, onde hospedava bizarramente os seus patrícios. Associou-se em negócio de instrumentos musicais com um Estêvão Gautier, morador na rua das Arcas. Tinha cavalo e dois escravos. Era odiado de alguns casquilhos a quem ele disputava com vantagem raparigaças de beleza muito apimentada. Citava-se entre as mais sécias uma Antónia do Sacramento, que há de ter a sua lauda nesta narrativa, oportunamente.

À casa da rua do Outeiro iam as Caldeiroas, exceto Leonor. Tomás Darcet, o francês, marido de D. Maria Teresa, comia e vestia-se das liberalidades de Eliot. A esgrima e a gineta nada lhe rendiam. O patrício adivinhava-lhe as necessidades; e, no auge da sua magnanimidade, estabeleceu-lhe uma farta mesada. Detestava-lhe a dependência, achava-o caríssimo para amigo; mas constituíra-o tacitamente seu alcofa ao pé de Leonor. Estava no alvitre do pajem: Case com uma e merque a outra. Não obstante, a filha de Francisco Caldeirão da Veiga Cabral, a timbrosa Leonor, nunca mais pisou as alcatifas de Isaac Eliot, nem o encarava de frente, se casualmente o encontrava.

Antónia Xavier recebia as visitas, que o seu marido lhe inculcava, coagida. Cresceu o número delas, todas francesas. Lisboa, desde o reinado da mulher de Pedro II, atraíra muitos artistas e mercadores, principalmente, modistas e alfaiates. Afora estes de ordem mecânica, grassava em Lisboa uma peste de aventureiros, que se diziam gentis-homens, vítimas da intolerância religiosa, e queixavam-se de Roma ali às barbas cristianíssimas de S. Domingos. A Inquisição poupava-os e queimava António José da Silva em carne e osso, e Francisco Xavier de Oliveira, menos ardentemente, em estátua.

Antónia lera na Gazeta, vinte dias depois de casada, que a expedição redentora dos padres da Santíssima Trindade havia entrado no Tejo... Elogiava-se aí o zelo e a piedosa indústria com que Fr. André Guilherme auxiliara o resgate de 224 cativos.

Dilatou-se-lhe o coração; consolaram-na as lágrimas; sentia bafejar-lhe vida a vizinhança de uma santa alma.

Não havia alguém que lhe falasse de Frisch; ninguém que lhe explicasse aquele inopinado aparecimento na igreja. Mil conjeturas absurdas e cruciadoras! Que viera ali fazer Josse, depois que a desprezara? Arrepender-se-ia da ingratidão? Era o remorso ou o amor que o arrastaram? Mas, se fora arrependimento, que lhe serviria mostrar-se à mulher que era já de outro? Se ia acusá-la, com que direito o faria, abandonando-a, recomendando-lhe até que não lhe escrevesse mais? Esperava, talvez, que ela se chorasse, apesar da proibição? Era-lhe menos infernal a saudade e a afronta que o envilecer-se a pedir-lhe a esmola do seu amor.

A alguma destas interrogações esperava Antónia que o trino André Guilherme respondesse.

Contando com a fidelidade do escravo, por quem enviara as suas cartas ao defunto Jácome, escreveu ao frade, referindo o processo do seu martírio, desde que ele se despedira em Camarate. Não o convidava a ouvi-la na sua casa, porque seu marido lhe ordenara que desatasse as suas relações com ele e com a sua família. Contava-lhe a aparição de Josse. Pedia-lhe que de algum modo indagasse se ele estava em Lisboa, e lhe restituísse a última carta, que recebera dele, única de quantas possuíra que ainda conservava, delida pelas lágrimas.

Frei André Guilherme, apenas entrou em casa da sua mãe, no regresso de África, ouviu a cadeia de infortúnios que, em tão breve tempo, sucederam na casa de Camarate. A piedade, o amor fraterno impulsavam-no para a rua do Outeiro; mas o receio de piorar o viver da sua amiga, reteve-o. Soube logo que Josse Frisch era hóspede do padre Rafael Bluteau; mas ignorava que ele tivesse aparecido na igreja; porque Isaac Eliot e Henrique Rutier não divulgaram o nome do incógnito jovem, cuja presença o povo despercebeu.

Procurando o prussiano, Fr. André Guilherme ia cumprir um dever incluso nas suas obrigações de padre. Era o seu intento pedir ao jovem que se retirasse, se por causa de D. Antónia Xavier viera a Lisboa; que esquecesse a pobre senhora tão secamente desenganada por uma carta que desmentia todas as outras; argui-lo de imprudente e cruel pela imprudência de se apresentar no templo de Deus quando Antónia era já casada; enfim, todo o seu fito era insistir que saísse de Portugal, responsabilizando-o pelo acréscimo de dores e saudades pecaminosas que sobrepusesse ao infortúnio da infeliz violentamente casada.

Fortaleceu-lhe o desígnio a carta. Respondeu à sua discípula, prometendo acudir-lhe em todas as suas penas, quanto a religião e a amizade lhe aconselhavam. Pedia-lhe que se tivesse com paciência — a arma invencível que todos os reveses prostra, quando a meneia o braço inquebrantável da virtude.

Ao anunciar-se no convento dos teatinos, procurando Josse Frisch, o prussiano saiu a recebê-lo à portaria. Vira-o através do coração de Antónia. Sabia que ele tinha vinte e oito anos. Era uma alma nova. Compreendê-lo-ia; absolvê-lo-ia da tardia crueldade que o levara à igreja, pensando que uma mulher capaz de tamanha perfídia seria incapaz de sucumbir, como Antónia, diante da sua vítima silenciosa.

Fechados na cela do hóspede, Fr. André Guilherme abriu assim o diálogo:

— Ainda que esta mensagem não pareça de frade, como a minha missão é resgatar cativos na Barberia, poderei, sem escrúpulo, ampliá-la na redenção de todos os cativos das paixões funestas. Venho aqui a pedido de D. Antónia Xavier, casada com Isaac Eliot, entregar vossa mercê uma carta que reprova, e torna estranhável o aparecimento do Sr. Josse Frisei no momento em que a Sra. D. Antónia se retirava dos pés do sacerdote que a ligara perpetuamente a outro homem.

— Qual carta? — atalhou Frisch, estendendo a mão arrebatadamente.

— Esta.

Abriu-a o alemão, e apenas leu a primeira linha, gritou:

— Eu não escrevi isto! esta letra não é minha!... Não escrevi esta carta, Sr. Frei André!

E, consoante descia os olhos desvairados no papel, levava a mão à testa entumecida de sangue, expetorava uns brados roucos; e, por fim, quando já lia e não percebia, atirou-se sobre o leito, e curvado, com o rosto nas mãos, exclamou:

— Meu Deus! meu Deus! não me deixeis endoudecer!

— Pois não é sua esta carta?! — acudiu o frade. — Oh! desgraçados, desgraçados! que fostes ambos vítimas de uma traição do francês!

E aquele valoroso jovem, que se defrontara no templo com o celerado Rutier e com o marido de Antónia, caiu de joelhos aos pés de Frei André Guilherme, e soluçou:

— Vá, vá pedir-lhe que me perdoe... se eu lhe matar o marido!...

— Jesus! — disse o frade — que atroz pensamento é esse?! Quem castiga é Deus... O meu pobre jovem, levante-se, ampare-se neste coração que lhe ofereço, para as suas lágrimas e para as lágrimas da minha desventurada irmã. Eu lhe direi tudo a ela... eu o justificarei... Mas... — o frade fez uma pausa, esfregou a testa como quem quer rarefazer a escuridade interior, e disse: — supondo que o Sr. Frisch não escreveu esta carta, é natural que, não recebendo cartas de Antónia, lhe escrevesse queixando-se da falta, ou viesse a Portugal saber o motivo extraordinário do silêncio dela.

Frisch abriu a sua maleta, e, pegando numa carta que era a primeira de um macete, entregou-lha.

— É de Antónia? — perguntou Frei André.

— Não é dela... é uma carta falsa como a que eu recebi... — respondeu ansiado o jovem, apoiando a cara esvaída nas mãos enclavinhadas.

— Com toda a certeza é também falsa... — afirmou Frei André.

Josse ergueu a face, fitou com desespero o frade, e articulou em vozes os soluços que o afogavam:

— Tudo perdido!... irremediavelmente perdido... Já não podemos salvá-la...

— Podemos, Sr. Josse... Dê-lhe o exemplo da resignação!...

Quedou-se momentos em muda agonia, e respondeu:

— Triste exemplo vou dar-lhe...

— Em que pensa, infeliz jovem? — perguntou Frei André com amorável brandura.

— Penso no suicídio...

— Eis aí o covarde desafogo dos que vivem e morrem nas falsas religiões! Eis aí a filosofia das trevas que reduz a alma humana à condição de um tumor maligno que se rompe com a ponta de um ferro!... A famosa sabedoria do seu ilustre pai não lhe ensinou mais nada acerca do destino do homem, Sr. Frisch?

Josse respondera-lhe cravando nele o olhar torvo de ateu, que não pode conciliar um supremo Criador com a imerecida desgraça da criatura.

CAPÍTULO XXXIX

Às quatro horas deste mesmo dia, a criada que Eliot levara da sua casa e constituíra acintemente aia da senhora, ou moça de almofada, como então se dizia, ouvindo tanger a campainha da porta da rua, saiu à janela, e viu pessoa desconhecida que disse queria falar à Sra. D. Antónia.

— Quem lhe hei de dizer que a procura?

Josse não previu a pergunta; porém, forte de carácter e aflito de mais para improvisar subterfúgios, respondeu:

— Josse Frisch.

Maria Miguel, que assim se chamava a criada, desconhecia aquele nome.

Foi ao quarto da senhora, que estava escrevendo a D. Paula Perestrelo, e deu o recado.

Antónia levantou-se alvoroçada, e murmurou como em segredo:

— O quê?! Frisch!?

— Sim, minha senhora, um rapaz loiro, e muito branco, branco de neve...

— Maria! — disse Antónia atropelando as palavras — conte com a minha gratidão eterna por um favor que lhe vou pedir... Aqui tem este anel de diamantes... dou-lho...

— Ó minha senhora...

— Dou-lho; mas não diga que eu falei a esse homem... abra-lhe a porta da sala... sim?... preciso muito falar-lhe... muito...

— Então, minha senhora, para que as outras criadas o não vejam, o melhor seria abrir-lhe a porta do escritório... Não acha? Escusa-se de que o ouçam subir as escadas para a sala...

— Pois sim, Maria... — condescendeu a mulher de Eliot acariciando a aia — Vá abrir-lhe a porta, que eu desço já...

A este tempo, Antónia ignorava ainda que Fr. André Guilherme tivesse falado com o prussiano.

Maria Miguel subia lestamente, quando a ama descia tão trémula e comovida que se amparava contra a parede.

— Ele lá está — disse a aia muito desempenada — Eu fico à espreita na janela... Feche a porta por dentro à cautela. Se eu vir a sege do Sr. doutor, bato três vezes com o tacão no sobrado; mas ele não vem cá antes das onze horas.

— Quem sabe? — disse Antónia.

— Sei-o eu... O Rutier disse-me, há pouco ainda, que ia hoje com o amo ao teatro espanhol ver a Gamarro... Esteja sossegada, minha senhora.

Antónia recuou duas vezes antes de entrar no escritório em que Josse a esperava. Frisch pressentiu-a, e saiu ao limiar da porta. Vendo-a, retrocedeu dois passos para ela entrar.

Ela ganhou alento; e, com os olhos enxutos e voz firme, disse:

— Aqui estou, Sr. Frisch... Que pode querer-me?

— Salvar a minha honra, horas antes de perder a vida. Sou acusado de lhe haver escrito uma carta que não escrevi. A minha letra foi imitada; a minha dignidade é que não podia ser falsificada, se D. Antónia a conhecesse. Não a acuso, porque também tenho de que me acusar...

— A carta que eu recebi não era sua?! — atalhou Antónia vivamente ansiada.

— Esta decerto não era.

Deu-lhe, e prosseguiu, oferecendo outra:

— E esta com certeza também não era da Sra. D. Antónia.

A atribulada senhora abriu a segunda carta, viu a sua letra, leu as primeiras linhas, e exclamou:

— Que é isto, ó Virgem santa! Esta carta não é minha! que Deus me fulmine, se eu a escrevi!... Ó Josse, pelas chagas de Cristo, por alma da nossas mães lhe juro que não escrevi isto.

— São desnecessários juramentos, Antónia — volveu Josse. Ambas as cartas são falsas. O homem de quem as confiávamos, vendeu-nos a este que é seu marido, e fugiu de Lisboa quando eu cheguei... Mas que importam já agora as ignomínias que nos perderam? A nossa desgraça é irremediável, e eu venho pedir-te que me perdoes o insulto que te levei à igreja no momento em que aceitavas a tua coroa de mártir! Se eu soubesse, ó infeliz, que eras como eu a vítima de tão grande infâmia, iria escarnecer o teu infortúnio? Eu decerto havia de te dizer que não faltei ao meu juramento; mas não iria atirar às tuas faces cheias de lágrimas a afrontosa irrisão dos meus olhos enxutos... Perdoas-me, Antónia?

E, ajoelhando, foi compelido a erguer-se nos braços dela, que lhe dizia palavras cortadas por arrancos angustiosos.

— Serenidade, minha amiga! — volveu ele, sentando-a com brando esforço. — Serenidade, que deve ser a justificação dos que se suicidam com a sua razão imperturbada e luminosa. As minhas pobres poesias muitas vezes te disseram que eu faria à volta da minha alma eterna escuridão quando a luz do teu amor me faltasse... Eu só compreendia o teu amor como compreendo as virtudes nas divinas criações que estão mais próximas de Deus. Nunca pensei em te denegrir uma só das tuas canduras de anjo. Nunca desliguei a sagração do amor da virtude social do casamento. Estás casada: perdi-te; podes amar-me; perdida estás para mim e para sempre. A vida assim não a quero: é um inferno, que eu aceitaria como expiação, se me sentisse criminoso. Tenho a minha alma cheia de lágrimas; mas não de vícios. Se há outra vida, quem me condenará porque fugi aos suplícios desta?

— Mas que dizes tu, Josse!? — interrompeu Antónia — Queres matar-te, porque és infeliz? E eu?...

— Ah! tu!? hás de ficar desatada do teu poste de martírio, Antónia! O homem, que nos infamou aos olhos um do outro, há de entrar as portas da eternidade alguns momentos antes de mim! Podes tu amá-lo? podes tu perdoar-lhe?

— Não!...

— Tiveste já o pressentimento de poder aceitar o amor deste homem? Diz-mo pelas tristezas que me impelem à morte... Poderás ainda aceitar resignada a tua sorte?

— Tenho momentos de suave resignação, quando uma voz íntima me diz que hei — de morrer cedo... Olha... sabes? Eu estava casada havia sete dias... era ao escurecer, quando uma mulher desconhecida, coberta de luto, conseguiu que a levassem à sala onde eu estava. Falou-me em francês, e pediu-me uma esmola... Depois que eu lhe dei quanto tinha comigo, disse-me que era uma desgraçada a quem o mundo chamava esposa de Isaac Eliot; disse-me que era certo ele havê-la recebido; mas que, fazendo-se católico, o seu casamento não tinha valia. Depois, disse-me estas terríveis palavras «Senhora, depois que Eliot me atirou ao abismo, de que eu fujo mendigando, é que eu soube dos franceses que vivem em Lisboa, que ele havia assassinado duas mulheres, uma em Constantinopla, outra em França. Não lhe tenho ódio, pobre menina, porque sei que veio de rojo até esta situação; faz-me imensa pena vê-la tão nova e tão rica entregue a um malvado que uma vez me falou da filha do padre como de uma mina de que havíamos de sair todos ricos. Eu queixei-me do ultraje, e ele repulsou-me de um só arremesso à miséria de pedir socorros àqueles que me tinham oferecido os seus coches. Acautele-se — disse ela com muita instância — olhe que ele ama outra mulher, que o domina sobre todas, e na hora em que essa lhe puser um pé no coração, ele é capaz de a matar, senhora D. Antónia, é capaz de a matar para casar com ela». — Foi o que ela me disse, Josse... E eu nem me acautelo nem fugirei à morte, quando chegar a hora...

— Não morrerás às mãos dele, Antónia — contraveio Josse Frisch.

— Não o mates... que eu nada lucro com a morte dele, se me tu faltares, Josse! — clamou ela com arrebatado carinho.

— Não te suicides, que to pede aquela ditosa criança de há dois anos... Dá-me o exemplo da coragem, que és homem, e tens pai, e tens-me a mim que fico sendo a tua irmã, sim, meu querido Josse? Olha... quem sabe o futuro? quem sabe se Deus castigará este mau homem? Eu tenho no céu quem peça por mim... Lá está minha mãe, e o meu pai, e o meu desgraçado... tio, que morreu de repente quando me julgou morta... Não te hás — de matar, não? Enquanto eu souber que me amas por compaixão, hei de ter momentos de alegria, hei de escrever-te muito, e todos os dias. Algumas vezes virás aqui ver-me; quando a saudade me aniquilar, chamo-te, choro e ganho forças para continuar esta vida que tu me hás de fazer cara. Tem esperança, meu querido amigo... Se podes estar em Lisboa, deixa-te estar; mas tem cuidado: olha que este vilão tem um pajem que a tal francesa me disse que era um forçado das galés que falsificara firmas e matara um homem na França... O teu coração que me responde, Josse? Eu já não vejo o teu rosto, que é noite; não posso adivinhar o que se passa na tua alma... Responde-me...

Josse Frisch apertou-lhe as mãos, levou-as ao coração e murmurou:

— E, se eu te arrebatasse neste momento, Antónia!... se fugíssemos...

As mãos de Antónia, e toda ela, tremiam. O corpo convulsionado vacilava, e pendia para onde as mãos eram premidas sobre o arquejar do peito.

Neste instante, ouviu-se o rodar acelerado de uma sege, que parou à porta da casa.

— É ele! — exclamou ela, e fez um arremesso para fugir.

— Não podes fugir de ao pé de um irmão... — e aperrou uma pistola.

Era Isaac Eliot, com os seus três amigos, Jerónimo Fidié, Tomás Darcet e Estêvão Gautier.

Em frente do quarto em que estava Antónia, chamado o gabinete anatómico — (ali fora anatomizado Jácome, o boticário) havia outro mais espaçoso e ricamente decorado, onde ainda se viam as livrarias do advogado Jorge Mendes Nobre e do seu filho o doutor Francisco Xavier.

Era ali que Isaac Eliot recebia os doentes que o consultavam, e os seus amigos mais particulares nas palestras devassas e nas beberagens alcoólicas.

Apearam da calege, e entraram para aquela saleta os quatro franceses. O dono da casa pediu castiçais, garrafas de água-ardente, de Champagne e Madeira. Em tempo competente, veremos que Eliot andava reputado pelos poetas como bebedor afamado de água-ardente, e tão convicto das virtudes medicatrizes desta poção que a receitava em todos os achaques resistentes ao leito de jumenta.

Bamboavam-se em poltronas; e bebendo a froixo, altercavam confusamente acerca de jogo e comediantes espanholas. Do falario estrídulo depreendeu Antónia que o seu marido, depois de grande perda, viera a casa prover-se de dinheiro para nos intervalos dos actos encher o tempo numa casa de tabulagem contígua ao teatro; e, quando a hora do espetáculo — que até ao ano anterior fora sempre de dia — aproximava-se, Isaac Eliot mostrou aos seus amigos um trancelim de ouro com relógio inglês, dizendo que o levava de presente à Gamarra, e jurava tirá-la ao marquês de Gouveia e a D. Valentim da Costa de Noronha.

— Foi o relógio que me deu meu tio no dia dos meus anos... — segredou Antónia a Josse Frisch.

E subiram-lhe as lágrimas do coração que perdoava ao pai, àquele funestíssimo algoz da sua felicidade.

Isaac Eliot, quando entrava para a sege, perguntou ao velho escudeiro de Francisco Xavier:

— A senhora?

— Está no seu quarto.

— Diz-lhe que pode cear, que eu venho tarde.

CAPÍTULO XL

Frisch confidenciou ao frade trinitário os sucessos do anterior capítulo. Nem sequer os sofreados ímpetos de arrebatar Antónia escondera do austero frade.

— Se ela cedesse à tentação infernal — exprobrou André Guilherme — eu pediria a Deus que me fizesse esquecer a mulher perdida. Sr. Frisch, intenta remediar a desgraça de Antónia e a sua, com a desonra de ambos? Antónia é digna de compaixão e respeito: o senhor, segundo entendo, quer torná-la desprezível e odiosa. Feia ação! Abre-lhe um abismo como evasiva. E depois? Leva para a sua terra uma concubina, não é verdade? O seu pai e as suas irmãs, se as tem, desprezá-la-ão. E o Sr. Frisch, ao ver-se desprezado por causa dela, será um homem extraordinariamente generoso, se, por comiseração, lhe der um frio amparo.

— Sr. Fr. André Guilherme — replicou Josse — a sua alma não pode entender as paixões que nunca experimentou. A ciência não basta. Eu tenho de optar entre o meu suicídio ou a salvação de Antónia.

— Pois suicide-se, que só dará conta de si no tribunal de Deus! — respondeu, severizando o rosto, o inflexível frade. E, feita uma longa pausa porque a sua angústia lhe empecia a respiração, continuou: — A sua ida a casa de Antónia foi o mais acerbo feito que o Sr. Frisch podia cometer, querendo agravar a triste sorte desta senhora. Eu encarregara-me de lhe escrever hoje, a dar as explicações justificativas do seu proceder; o senhor aceitou a minha intervenção; e, apenas o deixei, praticou um arrojo que seria simples loucura, se não fosse crime que pode surtir terríveis resultados. Que foi lá fazer, senhor? Despertar a paixão entorpecida, rasgar úlceras cicatrizadas, insinuar à mulher infeliz que fugisse à infelicidade honrada pela porta do rapto adulterino!? Ora suponha que essa criada, que lhe abriu as portas, denuncia o procedimento da sua senhora... Se ela descobrir que Antónia e um homem desconhecido se fecharam num quarto, o marido e o mundo serão caluniadores inferindo desse acto clandestino a presunção do crime?

— Não me fale em crime, Sr. Frei André... — atalhou Josse — eu estava ao pé de uma irmã...

— As irmãs não suscitam ímpetos de arrebatá-las, Sr. Frisch! Pensava vossa mercê que a sociedade e os maridos aceitam esses fortuitos parentescos com que o crime se dissimula? O mundo tem menos poesia convencional do que os poetas se persuadem. Medite na hipótese de que Antónia é acusada pela vil criada que já uma vez deu prova da sua infâmia. Se Eliot, que, no dizer da francesa, matou duas esposas, assassinar a terceira, pois que tudo conspirou a inculcá-la adúltera, que remédio dará o Sr. Frisch a essa sobrecarga de desgraça e remorso que põe sobre a sua alma?

Frisch compenetrava-se da argumentação do frade, que foi longa, eloquente e às vezes comovedora pelas lágrimas.

Concederam-se reciprocamente cláusulas: não se repetiria a entrada do prussiano em casa de Eliot, e cartear-se-iam cautelosamente. O frade esperava que o prolongar-se a correspondência iria mitigando os ardores da paixão, e intermetendo delongas e distâncias que afinal seria um quase esquecerem-se. Não se arredava muito da generalização da verdade o trinitário; que o esquecimento é pelo comum o desenlace de muitos amores que descaem como foguetes apagados, logo que sobem às altíssimas regiões da quimera; mas semelhantes regras falham quando as esposas, na situação de Antónia, sentem o incessante espicaçar da tortura doméstica, e nenhuma voragem se lhes prefigura mais desastrosa que a presença de um marido detestado.

A correspondência, permitida por Frei André, uma vez por semana, correu regularmente, mediante o escravo.

Encerrada no seu quarto, Antónia Xavier, durante o dia, uma ou duas vezes via o marido, quando se juntavam à mesa. Eliot, muitos dias, ia jantar a casa de Tomás Darcet. O silêncio, a tristeza e até o desalinho da esposa alojavam-no. Se ele violentava um sorriso caricioso, ela reconhecia-lho sorrindo-lhe com igual esforço. Sentiam-se entranhadamente inimigos; mas nunca entre si, nas curtas ironias que se trocavam, proferiram palavra ou nome que revelasse ciúme. Isaac Eliot elaborava muito em segredo um projeto, qualquer que fosse. Não soltava palavra irada que pudesse traí-lo; mas esquivava-se também a mostrar-lhe agrados, porque se sentia humilhado diante da mulher.

Antónia respirava, quando ouvia rodar, afastando-se, a sege do marido. Voltava para o seu gabinete, fechava-se, relia as cartas de Frisch e as de Frei André Guilherme, cheias de santos conselhos, de invocações à sua coragem, de exemplos de esposas que se santificaram no seu martírio, de casos um tanto acondimentados das insulsarias de crónicas fradescas. Uma certa filosofia que levanta a alma às nebulosidades do seu destino, independentemente das contemplações religiosas, estava então nas faixas da infância; hoje, porém, que essa filosofia está adulta e pende à velhice, tanto monta nos resultados, que são os mesmos. O frade falava-lhe, com grande unção, de Deus remunerador, da bem-aventurança dos que choram; e, às vezes, para transigir com o mundanal, admoestava-a a sair da reclusão do seu quarto, a visitar as suas relações, a espairecer-se no campo.

Por este tempo, na primavera de 1730, Eliot deliberou passar a estação em Camarate. Antónia contrariou-o. Não podia voltar mais àquela casa de horríveis recordações. Ali, recobrando-se do desmaio na igreja, abrira os olhos sobre o cadáver do tio. Estas razões irritaram o marido, porque lhe avultavam à fantasia aquele Josse Frisch que tantas vezes perpassava por ele, com a cabeça alta, nas ruas de Lisboa. Eliot recalcitrou. Antónia disse pertinazmente que não ia para fora da terra. Ele estorcegou os dedos, e, com um trejeito labial que a mulher nunca lhe vira, resmoneou:

— O que não fazem razões, fá-lo-á a chibata.

Ficou empedernida. Era a primeira ameaça que ouvira na passagem dos seus dezasseis anos. Quando as lágrimas lhe vibraram as pálpebras, Antónia ergueu a cara, e disse com energia:

— Quero entrar num convento!

— A senhora não tem querer! — replicou ele, voltando-lhe as costas.

Passados dias, Eliot, no fim do almoço, repetiu secamente:

— Amanhã vamos para Camarate.

Ela não respondeu. Alegrava-a a esperança de que Frei André Guilherme, rogado com as mais instantes razões, lhe obtivesse entrada em qualquer recolhimento, onde livremente pudesse escrever, e receber cartas de Josse.

Isaac Eliot exercia o magistério de cirurgia no hospital real. Ia quotidianamente a Lisboa. Raras vezes pernoitava na quinta. Dava jantares estrondosos de brindes na rua do Outeiro à colónia folgazã dos franceses, e pela noite fora improvisavam-se bailes em que estralejavam as castanhetas das comediantes espanholas. As irmãs de Frei André contavam ao irmão estas orgias que alvoroçavam a vizinhança. O frade pedia-lhes que o não dissessem à pobre Antónia nas suas cartas.

Em Camarate, era-lhe mais serena e monótona a sua dor. O marido recolhia tarde, e partia cedo. Escrevia muito. Havia ali duas criaturas que a serviam nas suas correspondências com a pontualidade de servos que a lamentavam e adoravam: eram dois escravos antigos do finado Francisco Xavier, que Eliot verberara com um tagante, ao terceiro dia de casado... Entre eles fora pactuada a morte do francês; mas a consciência da escravidão algemava-lhes os pulsos.

O médico, estando à mesa, perguntou uma vez à criada Maria Miguel:

— Que faz essa senhora que não vem jantar?

— Está no seu gabinete.

— E que faz?

— Ora lê, ora escreve.

— A quem escreve? às freiras?

— Não sei, meu senhor.

— Vai chamá-la.

A criada voltou, dizendo:

— A senhora não tem vontade de jantar.

Eliot esmurraçou a mesa, ergueu-se arrebatado, e encaminhou-se para o gabinete. Um dos negros, antecipou-se-lhe por um corredor que comunicava para uma porta do gabinete enquanto o amo se dirigia para a outra porta, através das salas. O escravo colou os beiços à fechadura, e murmurou:

— Cautela, senhora!

Era tarde. Quando a porta se abriu de repentino repuxão, Antónia Xavier, espavorida, deixou cair a pena sobre um papel em que traçara estas linhas:

Meu bom irmão. Já me custa escrever-lhe. Sou tão infeliz que já me não alivia queixar-me. Esta casa só tem para mim uma atração: é a capela porque encerra a sepultura onde irei cedo vingar-me da sorte. Paz e esquecimento! é tudo quanto me é dado ambicionar! Vai-me faltando o amparo dos dois corações que amo. A desventura pode mais que eles. Até a luz que me dava a minha querida amiga de Odivelas se apagou de todo! Soror Paula pede-me que vá lá, e não posso, porque este homem diz: «não quero!» Que hei de eu fazer? Nada posso contra a violência. Receio ser morta num ímpeto de ferocidade. Tenho escrito ao...

— A quem escreve? — bradou o marido.

— A Frei André Guilherme — respondeu ela tremente de medo.

— Pediu-me a senhora Licença para se cartear com esse frade?

— Não... — balbuciou ela, recolhendo o papel.

— Mas escreve-lhe... Porque esconde a carta?

— Não a escondo... bem a vê...

— Quero lê-la...

— Aí tem — volveu Antónia contrafazendo valor.

Eliot leu.

Neste lance, Antónia viu o perfil do escravo por entre os resquícios das portas.

— Quem são estes dois corações? — interrogava o francês.

E leu: Vai-me faltando o amparo dos dois corações que amo. Depois:

— Que quer dizer isto? Um dos corações é o do padre; e o outro?

— O outro, o outro... — tartamudeou ela — é o da religiosa de Odivelas.

— E isto? — prosseguiu Eliot, deletreando pausadamente e ferindo as sílabas: Tenho escrito ao... a quem? que nome ficou no tinteiro? Diga!... quem é este ao!? Não responde?

— Tenho respondido... Já lhe disse que me quero recolher a um convento... — gaguejou Antónia amedrontada pela atitude ameaçadora do marido.

A cara do escravo mostrou-se de frente pela abertura das duas portadas. Eliot não o via, e Antónia ganhou ânimo.

— Olhe bem o que lhe digo!... não me escreva mais ao seu amigo frade; senão o seu amigo frade paga por ele e pela senhora, percebeu?

— Deixe-me!... — exclamou ela — senão salto por esta janela... ou saio por essa aldeia fora, gritando por socorro!...

A energia da desesperação esfriou as cóleras de Isaac Eliot. Aquelas fúrias dele eram pouco menos artificiais. Se ela se precipitasse da janela, naturalmente como a janela era baixa, fraturaria algum osso, quando muito: era um escândalo de péssimas consequências para ele. Se Antónia gritasse por socorro, as testemunhas desse acto ser-lhe-iam nocivas no futuro. Não lhe convinha a queda, nem a evasiva a gritos pela aldeia. Saiu do gabinete, e deu de face com o escravo.

— Que fazias aqui, negro? — bradou Eliot.

— Ia passando...

— E paraste? escutas às portas, patife? Vais ser azorragado!

Antónia saiu ao corredor, e bradou:

— Não bata nos meus escravos!

— Nos seus?! — refutou Eliot. — Eu lhe provarei que são meus...

— Francisco! — disse ela ao escravo — Vai chamar o teu companheiro!

— Aqui estou, senhora! — respondeu o outro, assomando como um manequim na envasadura de uma porta.

— Vocês ambos são livres... podem sair desta casa.

— Livres! — bradou Eliot — Com que direito os forra a senhora? Eu sou seu marido! sou o chefe da casa...

— Pode destruí-la! — recalcitrou Antónia — Desbarate tudo; que eu só quero salvar do meu património estes dois escravos que me criaram. São meus... Não os quero azorragados porque são meus amigos... Podeis ir livres à vossa vida!

— Eu não vou... — disse Francisco.

— Nem eu... Queremos ser escravos da senhora — disse o outro.

— Cá o senhor não nos bate... — volveu Francisco, mostrando a Eliot a dentadura alva, por entre um rebitar de beiços que semelhava o rosnar do rafeiro.

E entreolhavam-se de maneira os dois negros, que o francês temeu-os.

CAPÍTULO XLI

Desde Março a Setembro daquele ano de 1730, Antónia Xavier ganhou o hábito da tristeza em absoluta solidão.

Fr. André Guilherme, fiado no efeito das suas preces ao Altíssimo, alegrava-se inferindo do silêncio da sua amiga sinais de conformidade.

Josse Frisch alternava as contemplações amorosas com os pensamentos científicos. Dava-se muito com o naturalista Merveilleux, estipendiado pelo rei, e com os jesuítas italianos, professores de matemática, Francisco Musarra, Domingos Capacce e João Baptista Carboni. O estudo é a regeneração das almas desbaratadas. Todo o trabalho é uma redenção. Ainda assim, o jovem naturalista de Berlim, por hábito e por amor, escrevia cada dia uma página da sua vida, e achava sempre meio de enviar, cada semana, uma longa carta à enclausurada de Camarate. O feitor, que Lhe dera o aviso do casamento e o acolhera em casa da sua irmã, sustentara-se leal a ambos.

Todos os criados do defunto Xavier tinham sido despedidos. O abastado Rutier, que, nos lances urgentes, reassumia as funções de pajem, encarregou-se de vender os dois escravos para a tripulação de navios mercantis. Levados à traição a Lisboa, foram entregues ao comprador, e ameaçados com as gramalheiras do uso. As criadas e o escudeiro, já ancião, foram substituídos, salvante Maria Miguel. No governo da casa foi constituída Antónia do Sacramento, amásia do pajem; e no ministério da cozinha entrou uma Simoa dos Santos, mulata. O serviço externo era feito por negros de aluguer, exceto o das cavalariças, em que se conservavam os antigos lacaios de Eliot.

Deste teor, julgava ele cortadas as suas relações com o frade trino e com Josse Frisch.

Neste tempo, levantou-se brava tormenta no coração de Eliot. O amor à menina Caldeirão entranhara-se-lhe nas podridões profundas da alma como a víbora no chavascal. Acalcanhado pelo desprezo dela, sobrava-lhe infâmia para adorá-la em redobro. Se a encontrava na sala de Tomás Darcet, a menina esquivava-lhe as cortesias de mera urbanidade, e repelia-lhe enfurecida os requebros indiretos. Em dia dos seus anos, brindou-a com um colar de diamantes subtraído às joias da mulher. A medianeira no brinde fora a mana Teresa. Leonor lançou-o no pescoço da criada. As manas lançaram-se à criada, tiraram-lhe o colar, e guardaram-no para não ofender o dadivoso médico.

Tomás Darcet procurou um dia o seu benévolo amigo para lhe contar que a mana Leonor era requestada por um primo de Elvas, morgado e galhardo rapaz. Deplorava-se o patrício de não poder impedir este galanteio, como impedira outros, já porque o rapaz era abastado, já porque era fidalgo, já finalmente porque Leonor o amava doidamente.

Infernou-se-lhe o coração ao marido de Antónia. Para haver de tudo na caverna daquele peito, até lágrimas lhe apontaram nos olhos, quando a nova o fulminou.

— E eu que tinha sonhado fazê-la minha esposa, e enriquecer-te, meu amigo, e levantar a casa dos Caldeirões ao prestígio que já teve! — disse ele, ensopando o lenço nas lágrimas.

— Que sonho esse tão disparatado! — obviou Darcet — pois se estás casado com uma menina de dezasseis anos!...

— Não te disse eu já que ela herdou a lesão do padre...

— Ah! eu pensei que ela não fora herdeira tão universal! — motejou o francês.

— Antónia tem vida para pouco... acredita-me, Tomás...

— Sim, eu creio em ti que és o mestre nessas coisas; porém, quando mesmo enviuvasses, meu querido, quem nos assevera que Leonor te queira, depois de tão bruscamente a deixares pela outra que era rica? Eu não to disse tantas vezes? Não eras tu bastantemente remediado com os teus grossos lucros como médico? com os teus duzentos mil reis da tença de cavaleiro? Foi o diabo da ambição;... que a formosura decerto não foi. A respeito de beleza, tua mulher está tão longe da minha cunhada que não há compará-las... e quanto a nascimento, não falemos. Se casasses com Leonor, estavas agora aparentado com a primeira nobreza do reino; assim, casado com a sobrinha ou filha do padre Francisco, quem são os teus parentes? uns judeus obscuros. O dinheiro é bom; sim, eu hei de confessar que o dinheiro é bom, e tomara-o eu; mas que importa ser rico, se a fortuna nos vem de uma mulher que nos aborrece, que ama outro, que...

— Que ama outro? — atalhou Eliot — como sabes tu que a minha mulher ama outro?

— O homem! pois não sabe toda a gente que ela amava o alemão que por aí tens visto a passear com o Merveileux?

— Amá-lo-ia... mas não o vê... entendes?

— Isso é questão aparte. Se o não vê com os olhos da cara, vê-o com o coração, que faz o mesmo para a felicidade doméstica. E tu sabes lá se ela o vê com os olhos? Ela está na aldeia, tu estás em Lisboa, vais lá duas vezes por semana, e provavelmente nunca chegas na ocasião em que o outro lá pode estar. Isto não é dizer-te que o prussiano lá vai; mas convence-te de que os maridos como tu não costumam ser os donos absolutos da sua propriedade. Convence-te de que Lisboa nessa parte é uma segunda Sodoma, e até não sei se será uma primeira Sodovia... Mudemos de conversa... estás a mudar de cor, e a ruminar alguma tolice. Nada de cavalarias da idade média, homem! Tu não amas tua mulher: isso é público e notório. Que te importa o mais? Deixa-a divertir; não te queiras parecer com estes selvagens de Lisboa que as matam, quando não são elas que os matam a eles; escreve lá isto nos teus papéis...

— E Leonor vai casar... — disse abstraidamente Eliot — Ó Darcet! diz-lhe que não case... — exclamou ele com suplicantes Vozes — diz-lhe que espere o futuro... Pede-lhe que me ouça, que me deixe mostrar-lhe de joelhos a minha alma... Pede-me tudo... Que queres, meu amigo? Se eu chego a casar com Leonor, dou-te metade da nossa riqueza... Palavra de cavalheiro! metade da minha fortuna é tua...

— Não fales a linguagem do interesse; — obstou o outro — basta-me ouvir-te a da paixão, que bastante me comove, amigo Eliot! Eu vou referir a Maria Teresa o que passei contigo. A minha mulher foi sempre tua amiga, e deve-te grandes finezas de todo o género... Não somos ingratos... Persuado-me que ela conversará com Leonor; mas, meu caro amigo, não ouso agourar-te boa saída. Bem sabes o que é uma menina de nobre condição, como Leonor, não só despeitada contigo, mas também apaixonada por outro...

— Esse outro — exclamou a súbitas Eliot — esse outro... Olha que eu sou capaz de o mandar atravessar por um estoque! Podes dizer-lho...

— A ela? Deus te livre! Que asneiras te fervem nesses miolos, doutor! Matá-lo! Que diabo de culpa tem o homem!

Pois tu não mataste o alemão, e hás de matar o inofensivo galã da minha cunhada?

— É que eu não amava Antónia...

— Isso entende-se, homem; mas não o digas.

— Digo-te a ti que és o meu íntimo... e tu nunca o repetirás...

— Pela minha própria honra... Sou cavalheiro, creio que o sabes. Um De Arcet teria pejo de se ostentar amigo de outro capaz de um homicídio por ciúmes, tendo desdenhado a menina cujo amante quer matar...

— Estou doido, Tomás! estou doido! não faças caso desta cabeça que se perde... Vê-me só no pobre coração que estala de dor...

— Pois bem... sossega, doutor... que eu vou daqui falar a Teresa, e amanhã te informarei do que houver ocorrido.

Se eu não estivesse quase trasladando uma cadeia de sucessos documentados, repulsara a fantasia que me sugerisse Isaac Eliot a meditar no assassínio da sua esposa; mas a história violenta-me, e todas as suspeitas de inverosimilhança me desfaz. O homem, a época, as sevas paixões de todos os tempos, e mormente a devassidão e crueza dos costumes daquele século, não seria tudo bastante a compelir-me ao esboço da monstruosidade de Isaac Eliot, se debaixo dos meus olhos não estivessem as provas.

O protervo pensamento de matar a mulher com peçonha, ou a ferro, pretextando adultério, devia ocorrer-lhe naquele tempo de refinada corrupção.

A apojadura dos perversos instintos de Eliot supurava na fase mais depravada dos costumes portugueses. A primeira metade do século XVIII deixou em Portugal profundos vestígios de desmoralização, que o roçar do tempo foi safando. Os monumentos da piedade resistiram com os seus rijos mármores e granitos; mas quem tiver escassa luz com que entrar às grandes trevas do espírito nacional daquele ciclo, espanta-se do sacrilégio que pôs as santas coisas de Deus como desmentido póstero à vasta infâmia em que se tecia o viver do rei e dos grandes, na época em que o povo padeceu maiores vexames. Os homens de letras emudeceram, rebalsados na podridão comum, ou amordaçados pelo terror dos alcaides. Se algum escritor deixou traços da fisionomia do reinado de D. João V, não o procuremos na língua pátria nem dentro de Portugal. Dos que a Inquisição propeliu ao desterro, raros protestaram. Apenas um, Francisco Xavier de Oliveira, queimado em estátua num auto-de-fé, assinalou, sarcasticamente sereno, os crimes do país em que o homem dotado da liberdade da razão expiava a dádiva funesta na labareda das fogueiras.

Nenhum crime devera parecer arrojado a Isaac Eliot, robustecido pelo exemplo dos nacionais. Lisboa, a devassa, era apostrofada desde os púlpitos nos sermões de Bernardes, de Colares e de Rafael Bluteau. O rei escutava-os com calafrios de contrição, e penitenciava-se, forçando os vassalos a pagar-lhe no telónio dos cardeais as indulgências remissórias. O teatino Biuteau imputava às doutrinas dos estrangeiros protestantes a estragação dos costumes. «A Lisboa — pregava ele — (1723) trazem estrangeiros heterodoxos, com as suas mercancias os vícios das suas terras, juntamente com os erros das suas seitas, e, se os não ensinam, publicamente os professam... Em Lisboa a suavidade do clima afemina os ânimos e às delícias ilícitas os inclina. Em Lisboa, com ódios inveterados, ou com fúrias repentinas, muita gente se mata, e uma das razões das muitas mortes é que os ofendidos, supondo que a justiça não castigará aos que os agravaram, com as suas próprias mãos se fazem justiça. Em Lisboa, com uma folha de papel que se chama carta de seguro, o mais cruel homicídio se abafa. Em Lisboa qualquer sombra de infidelidade no tálamo conjugal afia o punhal para o desagravado, e o matar mulheres é ponto de honra. Em Lisboa, negros e vilões, quando não têm padrinhos, talvez se castiguem; para homens de bem, quando obram mal, raro é o castigo...»

O ilustre filólogo mal se desculpa de lisonjeiro com os portugueses assacando aos estrangeiros a peçonha que viciara os costumes. A lascívia do rei com fidalgas, atrizes, freiras e ciganas poderiam aferventar-lha os filtros franceses; mas com certeza não lha acenderam as doutrinas dos estrangeiros heterodoxos, que, por via de regra, se não eram castos, eram cautos, consoante o conselho do apóstolo. As devassidões espetaculosas do duque de Cadaval com a Paulina, e do conde de Tarouca com a francesa Pelles, que o seu capelão Domingos de Araújo Soares lhe furtou a ele e ao marido, são casos de peste esporádica — não os inoculou a Reforma. Do mesmo teor, eram estranhos a Lutero e Melanchton um certo Bernardino de Vasconcelos Castelo Branco que matou a mulher em 1684, e D. Guiomar Luísa que matou o marido em 1712. Degolou-os o algoz, (mico obreiro daquela civilização, estranho a religiões. Nunca lera Calvino o padre Luís Álvares de Aguiar, denunciado à Inquisição e aí convicto de prostituição das confessadas, que eram meninas da primeira nobreza. Este sacerdote era de ilustre origem e querido da sociedade mais seleta. A Inquisição queimava o hebreu sem fé; e, por caridade, desterrava simplesmente o presbítero que paxalizara com as louras filhas espirituais. Quanto a ciências que transviam o espírito e o perdem nas veredas da razão, o padre era ignorantíssimo. Sabia um dito de S. Jerónimo, e não queria outro evangelho: O amor é a observância e resumo de toda a lei, o que as escrituras santas chamam caridade é isso e mais nada. E lá se ia arranjando com a máxima, que não era de Hus, de João de Leide ou de Calvino.

Nem os heresiarcas (nem os pagãos — acrescenta o Cavalheiro de Oliveira) — poderiam referir passagens desta natureza: «Dei ao padre João de Carvalho, da congregação de S. Filipe Neri, meia moeda para missas pelas almas do purgatório. Respondeu-me que não podia aceitar a incumbência, porque tinha de dizer trinta missas a fio, em cumprimento de uma promessa que fizera às mesmas almas, a fim de que a sua amada que era freira não recaísse na armadilha de um seu antigo amante que deixara por amor dele. Sentimentos de igual piedade acrisolavam o franciscano que dizia missa quotidiana, andando em viagem, a fim de que as almas obstassem a que a sua querida voltasse para o marido».

Não são quanto parecem insignificantes estes traços, quando se debuxa o perfil da proverbial corrupção do século XVIII. A história despreza-os, porque as tradições épicas e o sestro das narrativas enfáticas têm impedido que o historiador se apouque e perfile ombro a ombro do povo. Edmond Scherer, pesando o quilate dessas miudezas na interpretação de uma época, aplaude que a história se enriqueça desses «nadas, despercebidos como o ar que respiramos, mas de valia na totalidade dos efeitos».

Se querem crimes de maior estrondo, oiçam os que a história moderna apurou nas tradições de D. Francisco de Bragança, o irmão de D. João V. Encovara-se a fera no antro de Queluz, cevava-se em toda a iguaria ensopada em sangue, matava para experimentar a pontaria, e completava a infâmia visitando oitavários, novenas e lausperenes. E porque da raça dos Braganças havia aí um infante brioso, esse expatriou-se voluntariamente, e dezoito anos errou ao longe deste esterquilínio.

Na literatura desse tempo, fora das graves posto que estéreis lucubrações do claustro, espelham-se como na superfície turva de um charco as feições da sociedade. O Camões do Rossio, o Lobo da Madragoa, o Pinto Brandão, Frei Simão de Santa Catarina abandalharam o talento para terem talher no convívio dos magnates. Esses esgotos não sujaram os prelos; mas os contemporâneos prezaram tanto os inéditos dos seus intérpretes que eu só por mim possuo mais de quarenta tornos que mãos afetuosas encaparam luxuosamente. Não se concebem refinações mais devassas na linguagem e na forma! As histórias versejadas são passagens da vida monástica, com os nomes dos personagens, ou alegorias lardeadas do glossário mais inventivo em obscenidades que ainda tivemos. Fr. Pedro de Sã educara o autor da Martinhada, perrixil afrodisíaco que D. João V, esfalfado no corpo e na alma, pagava com a corregedoria do bairro do Rossio e com a privança.

Num livro desta natureza, mais longa notícia da dissolução dos costumes portugueses viria deslocada e impertinente; é porem que farte o esboço. Espanta relaxação tamanha num pais onde o carrasco suava no exercício das suas obrigações, e o ferro e a brasa do Santo Ofício sarjavam fundo nos inchaços da sociedade apostemada!

CAPÍTULO XLII

Apesar de instada pelo marido, Maria Teresa Caldeirão recusou falar em Eliot à mana Leonor.

— E agora para além do mais — refletiu ela — que o primo Luís Mendes de Vasconcelos lhe escreve cartas recheadas do mais fino amor, e já lhe chama adorada esposa! Pois tu não vês — acrescentou a prevista dama — que de hoje para amanhã o Eliot nos pode tirar a mesada, e ficaremos miseráveis, se a mana Leonor não casar bem? Assim que ele perder de todo a esperança de a conquistar com o dinheiro da mulher, pensas que nos não manda...

— Bugiar? estou bem certo disso; porque afinal de contas este Eliot é um maroto de marca maior. Há de ter mau fim... tu veras...

— Diz-mo a mim! pois eu não sei o que os patrícios rezam dele?...

— Assim é; mas, a falar verdade, tem-nos obsequiado...

— Com a pontaria feita à mana Leonor!... Forte amigo!... Destes temos nós muitos de melhor casta, se os admitirmos a nossa casa... O vilão vai casar com a outra, depois de nos trazer enganados, e pensava que uma Caldeirão se vendia ao dinheiro dos judeus! Fora, patife!

— Tens razão — modificou o professor de esgrima — porém, se ele te falar, não o escorraces. Deixa ver o que faz Leonor com o primo. Enquanto ela precisar de nós, precisamos nós dele... bem vês, filha.

— Ai! meus avós! — apostrofou ela voltada para onze lonas roídas nos seus onze retratos apócrifos de Veigas e Caldeirões — se soubésseis a qual baixeza chegaram vossas netas!...

— Deixa lá os monos — interrompeu o marido — Fala comigo que também tenho na Picardia uns figurões estupidamente pensativos como estes teus avoengos, e nunca lhes apanhei um franco. Se o Eliot se entender contigo, dá-lhe uns longes de esperança...

— Eu!... tu injurias a minha dignidade, Tomás!

— Não que eu te conto, menina. O Jerónimo Fidié tem enriquecido com o negócio dos veludos e damascos; e, se eu me associar a ele com o capital de cinco mil cruzados, tiro lucros bastantes para vivermos com decência. Ora eu, se estes teus onze avós me não emprestarem a juro módico os cinco mil cruzados, tenciono pedi-los ao Eliot. Tens percebido, amor? é preciso mostrar-lhe a mana Leonor ao longe... por um óculo... percebes? O que tu hás de dizer à mana Leonor...

— Não lhe digo nada! — cortou Maria Teresa.

— Espera... Nada de bazófias... diz-lhe somente que o trate com menos carranca, e faça de conta que é um diabo que está para aí. Que lhe custa a ela isso? Supõe tu que o Luís Mendes, melhor avisado, norteia noutro rumo? Temos um fundo comercial de cinco mil cruzados; e, se Eliot nos retirar a mensalidade, já podemos viver desafogadamente.

— E se ele te pedir os cinco mil cruzados que te emprestou? onde os hás de ir buscar?

— Peço-os a estes onze avoengos... — e apontava para os retratos com dramática solenidade.

Ao outro dia, o zombeteiro Darcet respondeu desta arte à sôfrega expectativa de Eliot:

— Maria Teresa acha espinhos na comissão; mas é tamanha a vontade com que te serve e a amizade que te vota, que todos os recursos esgotará em demover a mana de casar-se com Luís Mendes.

— Ótimo! quanto vos devo, meus bons amigos! — clamou expansivo de risos o médico, abarcando-o pelo peito e costado.

— Maria Teresa é sagaz...

— Se é!...

— O plano gizado vem a ser pintar-lhe com as mais vivas cores a tua paixão e o teu remorso... Chorar até, se for possível!

— E não mentirá por mais que diga, meu Tomás...

— Depois, quando o patético houver coado ao coração da mana, dir-lhe-á que a tua mulher está doente, mortalmente doente de lesão no peito...

— Muito bem!

— Por fim, das duas uma: se a tua mulher falece, casas: sim, digo eu que casas; ponto é enviuvares... Se não falece já, vai-se paliando o negócio...

— Não há de ser preciso: minha mulher tem um aneurisma no último período.

— Coitada! morre muito nova... — lamentou Darcet — E a respeito da herança? já pensaste nisso? Olha que eu desconfio que, não havendo escritura nem testamento, o que tu herdas e nada é tudo o mesmo. Sempre será bom consultar... Como a maior parte dos bens são propriedades... Que eu creio que o padre tinha ainda negócio em Amesterdão...

— Pequeno...

— A propósito de negócio... sabes que o Fidié, nestes últimos seis anos tem enriquecido com as sedas e damascos de Leão?

— Sei, sim.

— Há dias me disse ele: entra com cinco mil cruzados em caixa, que eu associo-te numa quarta parte, e no fim do ano receberás 50 por cento. Fidié, se eu tivesse cinco mil cruzados, estou que me não convidava... que te parece?

— Diz-lhe hoje que aceitas, e amanhã vem receber os cinco mil cruzados.

— Ó Isaac, tu és o anjo da minha família! — clamou Darcet, abraçando-o pelos joelhos — Hoje mesmo a mana Leonor há de saber mais este rasgo da tua liberalidade! É assim, é assim que tu hás de chegar até ao âmago dos peitos mais de bronze, amigo, meu nobre amigo!

Desde aquela hora, Eliot, abalado pelas dúvidas de Darcet acerca da sucessão, consultou o mais famoso advogado da corte, João Miles de Macedo. Contrariado pela resposta, sondou se poderia vender uns trinta contos de ações chamadas de Boadita; mas ainda aí lhe tolheram os jurisconsultos o intento com a indispensabilidade da assinatura da consorte. Estas consultas começavam a rumorejar fora dos escritórios dos advogados. Perguntava-se se Antónia Xavier estava perigosamente enferma; e o desembargador Santa Marta Soares, ex-tutor dela, avisou-a por carta que não assinasse papel algum, sem o consultar a ele.

Malogrou-se o projeto de matar a esposa com veneno.

Invocou a sua segunda consciência na pessoa de Henrique Rutier. Este homem sentia-se disposto à regeneração da sua pessoa, porque começava a auferir boa ganância da sua mercadoria, criara relações, visitava-se com mercadores acreditados, pensava em se casar com uma cunhada do seu sócio Estêvão Gautier, enfim, tinha dez mil cruzados, e uma vez por outra dizia na Casa da Índia e na graderia da rua Nova dos Ferros aos seus colegas: «eu sou um negociante honrado».

Aventurava-se pois a dar bons conselhos ao amo, quando Isaac Eliot levantou a cabeça, franziu a testa, e perguntou:

— A quem vens tu cantar lérias, Henrique! Olha que eu só sirvo para amigo ou inimigo. Associei-te ao meu destino. A tábua em que eu naufragar há de ser o teu esquife. Quando eu subir ao galarim da felicidade, hás de estar ao meu lado! Escolhe: amigo até à morte, ou inimigo até ao inferno?

— Estou às suas ordens, Sr. doutor; mas cuidado para que não naufraguemos. O senhor quer matar sua mulher como adúltera; mas, atenda, se não provar o adultério, matando-a em flagrante delito, conte com a forca.

— Retira lá essa palavra forca. Os cavaleiros professos na Ordem de Cristo não podem ser enforcados.

— Bem sei, degolam-nos: a diferença não me parece a melhor das consolações... Mas como quer o Sr. doutor matar sua mulher por adultério, se não temos o adúltero? Olhe que eu por informações da sua criada Sacramento sei todos os passos da ama. A Maria Miguel, sua criada do quarto, diz tudo quanto sabe à outra. Sei que ela recebe cartas de Frei André Guilherme; mas ninguém se lembra de suspeitar que ela ame o frade.

— E porque não? — acudiu Eliot.

— Porque o frade, desde que vossa mercê casou, nunca mais viu D. Antónia. O Sr. doutor tem procedido de maneira que ela, se o quisesse obsequiar com um amante, não poderia arranjá-lo. Encarcerou-a em Camarate, cercou-a de espiões, tratou-a como se lhe tivesse um amor ferozmente cioso. Quem quer arranjar um adúltero para o apanhar com a mulher, expõe a mulher aos adúlteros, como se põe o visco aos pássaros. Para que a levou de Lisboa? Estava aí o prussiano tanto à mão para uma cena decisiva; e o senhor foge-lhe com o engodo, e corta-lhe todas as avenidas para além do mais, sua mulher, protegida das tentações do diabo pela cruz vermelha de Frei André, se não escorregou aos braços do Frisch, pode contar que já não escorrega de modo que vossa mercê a veja cair. Quer um conselho? tire-a da aldeia, finja-se mudado com ela, deixe-a aparecer na missa, nas ruas, nas festas das casas conhecidas, dê-lhe conhecimentos novos, deixe-a esvoaçar, e depois veremos o que faz a natureza. Esta é a minha opinião: agora ouvirei a sua.

— O meu plano era forjarem-se umas cartas — expendeu Eliot — cartas de amor, se entende.

— Escritas a quem?

— A alguém...

— Ao prior de Camarate talvez...

— Não gracejes, Henrique. Olha que eu tenho a alma abrasada pela paixão mais devastadora que ainda experimentei. Se eu não enviuvar, Leonor vai ser de outro homem. Dizias-me tu que a mercasse: dez mil cruzados já despendi: ainda ontem dei cinco mil a Tomás Darcet.

— Gastou-os mal. Eu, se me desse para aí, fazia-lhe isso com dez cruzados. Uma noite, quando Leonor estivesse ao em casa, atava-lhe uma mordaça, metia-a numa sege e levava-lha ao pinhal da Azambuja.

— Isso faz-se às mulheres que não se adoram, e eu adoro e respeito D. Leonor — encareceu o francês, dando ao rosto o enlevo amoroso de um madrigal.

Rutier arregaçou um sorriso de farsola, e Eliot abaixou os olhos com a gravidade de patrão que se quer respeitado.

Em todo caso, prevaleceu o alvitre do pajem, quanto a mudar Antónia Xavier de residência e de costumes, abrindo-se-lhe as avenidas às tentações. Voltou a esposa de Eliot para Lisboa. Concorreram famílias de franceses à rua do Outeiro a passar as noites com as sem-cerimónias usadas entre eles. Ao princípio, Antónia retraía-se estranha e acanhada em tal convivência; mas Eliot, vexando-a pela sua rudeza e ignorância da sociedade fina, dizia-lhe que apertasse as mãos aos franceses que lha ofereciam, e se desbastasse de umas grosserias de sabia que tornavam duvidosa a sua educação de senhora.

Volvido algum tempo, o médico, encontrando-se com Alberto Borges, cunhado de Frei André Guilherme, queixou-se que a sua mulher e irmãs não visitassem Antónia; e, a respeito do frade, acrescentou que o não convidava receoso de ser desfeiteado, visto que os santarrões de Lisboa consideravam a assembleia francesa uma bangalé de demónios; no entanto, rematou ele, a sua casa não se fechava ao mestre da sua esposa.

André Guilherme admoestou suas irmãs a não aceitarem o convite de Eliot em noites de sarau; mas que a visitassem de dia com a sua mãe e lhe oferecessem a sua casa. Trocaram-se as visitas. O frade nunca se encontrou com Antónia em casa do seu cunhado nem da sua mãe, nos primeiros meses.

Maria Miguel, industriada por Antónia do Sacramento, e de antemão galardoada com dádivas indiretas do amo, forcejou por captar a confiança da senhora. A amásia aposentada de Rutier operava sob a influência do pajem honorário. A conjuração dava-se pressa instigada por Eliot.

D. Antónia, que tinha o segredo de Frisch na suposta lealdade da criada, confiou-lhe as cartas escritas a Frei André, e enviadas com grandes intervalos. Perguntava-lhe Maria Miguel se aquele lindo jovem estrangeiro, que estivera com a senhora no escritório, já não estava em Lisboa. Antónia esquivava-se a encetar confidências neste melindroso ponto; mas o coração desejava-as, e afinal deixou-se ilaquear. A criada estudara as seduções da perfídia: era fácil embair uma mulher de dezasseis anos. Contou-lhe a sua história. O interesse da revelação elevara a confidente muito acima da sua baixa condição. Falava como se a escutasse uma experimentada amiga. São assim todas as senhoras que o erro e o desvio da linha reta do dever abaixaram ao nível das suas ignóbeis confidentes.

Incitou-a Maria Miguel a receber Josse Frisch, assegurando-lhe o nenhum risco da empresa. Encarregava-se de lhe entregar a carta. D. Antónia aceitou jovialmente o favor de lha levar; mas recusou-se a convidar Frisch a vir a sua casa, porque jurara, por alma do seu pai, a Frei André nunca mais repetir a temeridade de o receber. Maria Miguel, depois de várias reflexões tendentes a zombar do beatério do trino, mostrou-se suspeitosa de que o frade amasse a senhora, e imposturasse, no zelo da honra dela, uns biocos de religião com que mascarava o crime. D. Antónia indignou-se secretamente com a calúnia da criada; e, desde esta passagem, receou-a tanto que se arrependeu dolorosamente de lhe contar sua vida. Mas sendo o retrocesso impossível, e ardente o desejo de ter cartas de Josse, Antónia dissimulou o medo e confiou de Maria Miguel a entrega de duas, uma para Frei André, e outra para o estrangeiro.

Ambas as cartas, depois de cautelosamente abertas e lidas Por Eliot, chegaram ao seu destino. A substância do conteúdo na de Frisch eram expressões escritas temerosamente, e mais enigmáticas, de onde Josse depreendeu que Antónia se temia da interceção da carta. O remate era mais cordial e expansivo: Quando tornarei a ver-te, Josse? Talvez no céu, onde a presença do Senhor e a tua me hão de ser o prémio deste suplício.

Frisch não respondera, advertido pela sequidão de tal carta, depois do silêncio de dois meses. Receou traição, e um facto se dera que o justificava. Algumas vezes se encontrara face a face com Isaac Eliot. Repugnava-lhe fitá-lo; mas o ódio tem uns olhares provocativos a que maquinalmente obedecem os mais prudentes. A covardia é que finge não ver os inimigos. Portanto, o prussiano frechara de fito com a vista a cara do francês, e dizia a Frei André Guilherme que Eliot era um poltrão de tal espécie que, se a sorte o castigasse com outra casta de esposa, os amantes dela poderiam afoitamente conviver no mesmo domicílio.

— Acautele-se! — recomendava o frade.

Aconteceu passearem no Terreiro do Paço da Ribeira, Josse Frisch e Mr. Merveilleux, o naturalista Cesáreo. Concorreu Eliot na sua sege com Darcet. O amigo do médico foi cumprimentar o seu patrício, e Eliot quis ser-lhe apresentado.

— Não vês quem está com ele? — observou Darcet.

— Por isso mesmo...

Eliot foi apresentado ao naturalista; e, no mesmo lanço, Josse Frisch, apertando a mão do amigo, retirou-se. Entre franceses, havia matéria para desafio, no dizer do marido da Caldeirão. Isaac Eliot sorriu à reflexão briosa do seu patrício e disse:

— O desafio há de ser sem testemunhas.

E, no dia seguinte, Eliot, concorrendo ao mesmo passeio ao perpassar por Merveilleux e Josse Frisch, cortejou os dois, e voltando-se para o prussiano, disse com ênfase:

— Eu zelo tanto a minha honra de marido e o nome sem mácula da minha mulher que, abafando despeitos e melindres venho declarar ao Sr. Frisch que o não considero meu rival; e não quero que a sociedade de Lisboa o considere tal. É preciso que todo o mundo me veja falar com o Sr. Frisch, porque vai nisso a ressalva da minha dignidade. Ainda mais, estimarei que frequente a casa onde já esteve com o seu pai. Já não vive o sábio doutor Xavier que os recebia e entretinha; mas, se Mr. Merveilleux quiser honrar as salas de um seu patrício, já eu terei um douto hóspede que possa entreter o outro.

Frisch fez um leve meneio de cabeça; o naturalista agradeceu o convite, e Eliot recolheu-se à carruagem.

— É um excêntrico! — disse o francês — mas há não sei que de cavalheiresco neste passo!... Eu, no teu caso, Frisch, ter-lhe-ia apertado a mão...

— À francesa... — murmurou o alemão. — O que eu já uma vez apertei para lhe mostrar o meu afeto foi a coronha de uma pistola.

Frisch relatou estes sucessos a Frei André Guilherme.

— Acautele-se! — repetiu o trinitário.

E, respondendo à carta de Antónia, escrevera estas poucas linhas:

Vamos ao que muito importa. Eu ia hoje falar com a minha irmã para lhe entregar um bilhete, minha santa amiga. Previna-se, receie, acautele-se das liberdades que lhe dá esse homem abandonado de Deus. Acabo de saber que ele convidou Frisch para sua casa, alegando razões que nenhum homem de bem alega. Desconfio que ele forja a mais execranda das traições. Quer facilitar a ocasião de adultério para poder justificar a morte de um ou de ambos. António, minha, querida irmã olhe que está à beira de um abismo. No dia em que vir Frisch na sua casa, fuja para casa da minha mãe, que eu depois a defenderei, fazendo-a recolher a um mosteiro. Reze muito à Virgem Maria, que a proteja. Eu não cesso de pedir pela minha pobre António. Do seu irmão em Jesus Cristo, o padre Frei André Guilherme.

Eliot leu esta carta: e, na vertigem da raiva, fê-la em pedaços; mas, momentos depois, olhando para os fragmentos dizia:

CAPÍTULO XLIII

Mortificada com o silêncio de ambos, Antónia queixou-se à mulher de Alberto Borges do desafeto e esquecimento do seu querido mestre.

O frade, perplexo por tão injusta acusação, pactuou com a irmã que o avisasse quando Antónia voltasse a sua casa.

Eliot afetava-se insensível às saídas da sua mulher; todavia, as visitas a casa de Alberto Borges, cunhado do trino, eram-lhe sempre motivo de satisfação, que se exprimia na ferocidade do sorriso. Recrudescera o rancor ao frade: tê-lo-ia feito assassinar, se à sua vingança bastasse um golfo de sangue lancetado pelo punhal de Henrique Rutier.

Depois de um ano de separação, Antónia, quando viu o padre André Guilherme, rompeu em choro desfeito; e ele, suspenso, e atónito da mudança da sua formosa discípula, mantinha-se mudo diante daquelas lágrimas, tão carecidas de consolação.

— Não recebeu a minha carta, Antoninha?! — perguntou o frade angustiado pela incerteza.

— Há dois meses que não tive carta sua.

— Jesus! — exclamou ele. — Eu respondi logo à sua que me enviou, faz amanhã oito dias, por uma mulata. Enviou ou não?

— Enviei por uma das minhas criadas.

— E eu respondi contando-lhe que o seu marido convidara Josse Frisch a ir a sua casa.

— Não recebi tal carta... O meu Deus!

— Está atraiçoada!... Confiou naquela mulher que abriu a porta a...

Sim...

— Não lho disse eu, infeliz? E agora!... O seu marido sabe que eu lhe fiz um aviso que lhe transtorna um atrocíssimo plano...

— Quem sabe se a mulata perdeu a resposta?... — reflexionou Antónia, abraçando a ilusão inverosímil. — Isaac tem-me tratado do mesmo modo; nem pior nem melhor. Há dias levou de casa toda a baixela de ouro e prata. Disse que era para emprestar ao ministro de França que dava um jantar. Hoje também levou a mobília nova de uma sala, e mais os espelhos antigos que estavam em Camarate Quase tudo que era da minha avó, e até o faqueiro que tinha a firma de Angela Nobre, tudo tem ido não sei para onde...

— Eu digo-lhe. A minha senhora — interveio Alberto Borges — a mobília da sala entrou para casa de Rutier, e a baixela de ouro e o faqueiro com a firma da sua bisavó sei eu que está em casa do aventureiro Tomás Darcet. Disse-mo pessoa que lá se banqueteou antes de ontem, e me asseverou que todos os seus haveres em menos de três anos seriam absorvidos pela voragem das Caldeironas.

— Que importa? — volveu Antónia — o que eu queria era um cantinho em qualquer Recolhimento! Sr. Frei André, faça-me esta esmola que tantas vezes lhe tenho pedido!... Pois teme que eu seja assassinada, e não me salva? Será pecado o fugir eu de um marido que me abomina?

— Vou tratar sem demora de a salvar, Sra. D. Antónia. É tempo. Tenho de ouvir o Sr. patriarca a tal respeito e também consultar o Sr. desembargador Santa Marta Soares a respeito dos bens. Entretanto, senhora, nem uma palavra por onde seu marido possa suspeitar o meu intento... Olhe que no segredo está talvez a sua vida, e... pode ser que a minha... Deus me é testemunha que me não aflige a perspetiva da morte. Morra eu sem crimes, e o Altíssimo se haja misericordiosamente com os meus erros. Mas eu não quisera que a minha morte viesse a ser mais uma dor em tantas que a despedaçam.

minha querida amiga!

E nas faces pálidas e gentis do jovem frade derivaram duas lágrimas profundamente misteriosas, duas lágrimas que Deus receberia na urna dos seus incensos; porque o coração que as chorava purificara todo o seu sangue nelas, todo o seu amor, primeiro e único, sufocado, recalcado, e oferecido ao Senhor nas séjanas da Barbaria, quando, no resgate de cativos, lhe pedia de mãos postas que o resgatasse da saudade de... Antónia.

E a divina providência escutara-o; porque, na volta de África, ouvindo a nova do casamento dela, ajoelhara perante o oratório da sua mãe, e murmurara:

— Dai-lhe a felicidade, Senhor!

Antónia contemplava-o. A sua vida de criança espelhou-se-lhe na memória com todo o colorido luminoso das alegrias infantis. Via aquele jovem de dezoito anos a educá-la com amorosa paciência, a desculpá-la das impertinências da mestra, a inventar-lhe brinquedos em que o raciocínio pudesse ter parte, e a fomentar-lhe vaidades inocentes que lhe sortissem aproveitamento no estudo. Nada mais via, até à idade dos quinze anos; porque os lábios do mestre extremoso tinham sido como um selo de bronze do coração.

Na contemplação de Antónia, pois, cifrava-se tudo numa saudade; e as duas lágrimas de Frei André Guilherme compendiavam a história de uma vida inteira, que todas as angústias devorara na escuridade, exceto as duas lágrimas únicas que Antónia vira, à hora em que já não podia compreendê-las. Raro e santo heroísmo o daquele homem!

CAPÍTULO XLIV

Porque se julgara atraiçoada pela aia, D. Antónia repeliu-a da sua presença, e dispensou-se de criada do quarto. Pensou em despedi-la; mas sentiu-se desautorizada. Se a despedisse, Eliot impor-lha-ia, sobrepondo à perfídia a humilhação, na presença dos servos.

Maria Miguel guardava ainda o segredo da entrada de Frisch, porque era cúmplice; assanhada, porém, pelo desprezo da ama, revelou o caso a Antónia do Sacramento.

Rutier avisou Eliot, e disse-lhe:

— Que excelente ocasião lhe fugiu, Sr. doutor! e quantas se perderam com a ida de D. Antónia para a quinta!...

Pouco depois da denúncia, Eliot entrou inesperadamente na alcova da sua mulher. Surpreendeu-a orando, de joelhos, aos pés do leito, amparando a face nas mãos erguidas em súplica.

Antónia ergueu-se sobressaltada.

— Menos orações e mais virtudes — disse o protervo Cínico.

Ela, não replicou à injúria. Sentou-se, porque sentia desfalecer-se em terrores da morte. Transia-lhe a alma o medo de ser assassinada.

— Diga-me cá, senhora — prosseguiu ele, sentando-se no leito, e bamboando as pernas cruzadas. — Estava pedindo aos seus indulgentes deuses que lhe perdoassem o adultério?

— O adultério! — exclamou Antónia, erguendo-se ereta, majestosa de ira, e espanto.

— Comédia! — resmoneou Eliot sarcasticamente. Eu não represento, ouviu? Que veio fazer a esta casa. Josse Frisch? veio rezar consigo? Diga lá... Veio ou não veio aqui o seu amante Frisch?

— Veio — respondeu ela com a voz estrangulada.

— Rezar consigo?

— Chorar...

Eliot cascalhou uma risada estridente.

Depois, desceu-se da cama, carranqueou o aspeito, e disse:

— Que me atraiçoasse, explica-se; mas que faça de mim parvo, é original! Com que então, uma dama casada fecha-se com um amante, ao fim da tarde, num quarto, e... choram ambos, às escuras! A senhora é tão devassa como tola!...

— Ó Virgem Santíssima! — murmurou Antónia, relançando os olhos a um retábulo pendente sobre o leito.

— Veja se interessa a Virgem nas suas virginais choradeiras com o versista loiro... Vamos ao ponto essencial. Frisch esteve com a senhora fechado num quarto desta casa, sendo a senhora minha esposa?

— Esteve.

— Basta!

E, abrindo de par em par a porta da alcova, disse para fora:

— Entrem.

Entraram Henrique Rutier, Antónia do Sacramento, Maria Miguel e Simoa dos Santos.

— Ouviram o que esta senhora acaba de confessar?

— Ouvimos — disse Rutier.

— Que recebera nesta casa o seu amante fosse Frisch repetiu Eliot.

— Isso mesmo — confirmou o pajem.

— Podem sair — voltou o médico. — Se um dia forem interrogados a tal respeito, respondam o que ouviram. Quanto à senhora, fique entendendo que as minhas criadas... são minhas criadas. Aqui governo eu.

Uma das criadas saiu chorando. Era Simoa dos Santos, a cozinheira.

Eliot desceu ao escritório com Rutier, o qual, cruzando os braços, perguntou:

— Isto de que serve? não me dirá, Sr. doutor?

— De que serve?!

— Sim, pergunto: que lucrou o Sr. Eliot com o espalhafato das testemunhas? Provavelmente, vai matar o prussiano; depois, mata sua mulher. Feito isto, declara que matou os adúlteros, e prova-o com o depoimento dos seus servos. Está bem aviado!

— Não percebes nada, Rutier. A vida mercantil bestificou-te.

— Desconfio que sim... Queira iluminar a minha bestidade.

— Há de haver um segundo adúltero e o primeiro será a confirmação do segundo.

— Estou cada vez mais bronco, Sr. doutor.

— Fecha bem aquela porta, e vem cá.

— Eis-me.

— O adúltero há de ser o frade...

— André?

— Sim.

— E ele aceita o papel... real ou fantástico? Vossa mercê tem a cabeça opiada pelo marguillé de Constantinopla, perdoe as demasias da minha amizade, ou explique-se.

— Não me deixas explicar, diabo! Eu hei de encontrar nesta casa o frade com Antónia em flagrante delito.

— Ah! pois o frade também... Há de encontrá-los em flagrante delito?

— Supõe...

— Sim, suponho; mas é ou supõe-se...

— Faz de conta que é... e, colhidos no crime, estão mortos.

— Por quem?

— Por mim.

— Ah! isso, pode ser... Pensei que me ia dizer que seria eu o executor da alta justiça...

— E não eras?

— Não, senhor.

— Como estás mudado, Henrique!

— Não é mudado: é cansado...

— Estás rico: é o que queres dizer... Esqueceu-te a proveniência dos teus doze mil cruzados...

— Não me esqueceu, Sr. doutor; mas vossa mercê dispõe de mim por maneira que eu receio esquecer na escada da forca os favores que lhe devo — respondeu gravemente o pajem.

— Palavra de cavalheiro! o senhor está perdido! Aquela D. Leonor é a perdição de nós todos... Deixe-a, com dez milhões de diabos. Deixe o frade, que é tão amante da sua mulher como eu. Se não quer viver com ela, meta-a num convento, e alegue que ela o atraiçoou com o prussiano...

— Não te peço conselhos, Henrique... Lembra-te do que eu já te disse: a minha tábua de naufrágio há de ser o teu esquife.

— Bem me lembro...

— Enquanto eu subir, subirás tu... — rugiu desentoadamente Eliot — Dá-me Leonor que eu dou-te tudo... Tê-la, ou morrer, entendes? mas antes de me matar, hão de cair, a ferro e fogo, todos os obstáculos. Não sabes o que é uma paixão sem lágrimas? É uma congestão de sangue... É a fome do tigre... Estou perdido!

— Fale baixo! — admoestou Rutier — Olhe que o pode ouvir na rua alguém que saiba francês... Deixa-me dar-lhe um parecer? Venha comigo... Saia desta casa por algum tempo... Tem a minha casa. Pensaremos, meditaremos, resolveremos, lá, e...

— Resolvi... — interrompeu Eliot.

— Que resolveu?...

— Quebrar estas correntes, seja como for.

— Mas, se premedita aproximar o frade da sua mulher, o passo que hoje deu, com toda a certeza, produz o efeito contrário. Pois pensa que ela se atreve a receber aqui um segundo homem, depois que o senhor convidou testemunhas contra o primeiro? Está cego, Sr. Eliot! O que o senhor devia fazer, se refletisse ou me consultasse, era pôr-se à cacha com o segredo do Frisch, e ajeitar-lhe modo de ele cá tornar. E que fez o senhor? Espantou a caça! Agora, espere-o ca...

— Tens razão... — acedeu Isaac Eliot — Leonor fez de mim um sandeu! Era isso o que eu devia fazer... Porque mo não aconselhaste?

— Quando? o Sr. Doutor tem a notícia; sai da loja de bebidas onde lha dei, manda-me chamar a sua casa, leva-me com as criadas para a saleta, entra na alcova da sua mulher, e faz o destampatório que se viu!... Quando nos mandou entrar, que remédio havia? Ora agora, sua mulher está aqui está, em casa do desembargador Santa Marta ou da irmã do frade. E depois? Bem sabe que ela, rodeada de criadas que detesta, há de estar sempre a recear que a envenenem; vê-se só, sem ninguém que a proteja, e safa-se. E depois, pergunto eu? Divórcio. E a fortuna? a quem é que a dá a lei? já consultou?... Aí vai um conselho, quer?

— Diz lá — aceitou o amo bastante abalado pelas ideias jurisperitas do pajem.

— Vá ter-se com Alberto Borges, e com a irmã do frade. Conte-lhes o acontecido. Diga que o ciúme foi a causa do seu destempero. Peça à mulher do Alberto que venha aqui fazer companhia a D. Antónia, ou a leve para sua casa por algum tempo. Mostre-se ofendido do adultério; mas diga que está disposto a desculpá-la, atendendo à maneira como se fez o casamento. O senhor tem palavreado quando quer. O grande caso é evitar que a sua mulher fuja, e vá pôr em alarme os amigos do pai e os inimigos do doutor, que são muitíssimos, bem o sabe. Deixe passar algum tempo. Não venha a casa, vá fazer uma viagem a França.

— É impossível! — refutou Eliot — Não posso viver longe de Leonor...

Pois se quer estar bem perto dela, vá ser hóspede do Tomás Darcet, que ele há de estimar muito, como bom explorador que é.

— Não ofendas o meu amigo!

— Pelo contrário, gabo-lhe a esperteza. Não me disse vossa mercê que já lá vão dez mil cruzados, afora a baixela de Prata e ouro? E o mais que há de ir... Enfim, já agora é aguentar-se meu bom amigo. Convém-lhe o conselho?

— Não vejo outra saída... Tens razão... O divórcio não me convém. Esmagava-me a justiça, que é portuguesa, e para além do mais esta no desembargo o tutor, e o frade é todo do patriarca, e o Frisch é hóspede do Bluteau que o rei respeita...

— Tudo isso, e uma coisa de que vossa mercê se esqueceu; e é que o testemunho dos seus criados não prova nada contra sua mulher... Ande-me, doutor! Vá falar à mana do frade.

Entretanto, Antónia escrevia à irmã de Frei André pedindo-lhe que sem demora instasse com o irmão no recolher-se a um convento; porque se via na maior afronta, e no extremo apuro de morrer ou matar-se.

— Mas quem me levará esta carta? — dizia ela, suspendendo a escrita.

E, descaindo a face sobre o papel, chorou em crebros soluços. Ouviu então um bater surdo e pressuroso na porta. Foi abrir, e viu a criada Simoa dos Santos, que lhe disse muito baixinho, guinando os olhos a todos os lados:

— Minha senhora, olhe que eu fui obrigada a escutar o que a vossa senhoria disse. Perdoe-me pelo amor de Deus... Venho saber se quer jantar, que ainda está em jejum, coitadinha...

— Não quero nada... mas... fazes-me tu um favor, Simoa?...

— Sim, minha senhora...

— Levas-me esta carta à rua da Oliveira, a casa do Sr. Alberto Borges?

— Mas as outras vêem-me ir... e depois...

— Não importa... vai... eu vou entrar num convento, e levo-te comigo...

A cozinheira aceitou a mensagem; e com o pretexto de ir ver sua mãe, foi à rua da Oliveira.

CAPÍTULO XLV

Quando Antónia esperava em ânsias a resposta do bilhete, chegou a irmã do trinitário com o seu marido.

— Bem hajam que me acudiram! — exclamou ela, abraçando-se na amiga. — Eu já temia que te não dessem o meu escrito...

— Estava lá teu marido quando o recebi.

— Meu marido!... ah! foi contar-te que eu... O filha! eu estou inocente... O teu irmão sabe que eu estou inocente...

— Sabemo-lo nós também — afirmou Alberto Borges — aliás não estaríamos aqui, Sra. D. Antónia. O Sr. Eliot pareceu-me atribulado; mas, contra o que era de esperar, ia arrependido do feio espetáculo que deu aos seus domésticos. A minha mulher, convencida da virtude da Sra. D. Antónia, disse a Eliot: «sua esposa está pura e inocente como os anjos». Ele quis saber em que bases assentava a nossa convicção. Disse eu que o meu cunhado Frei André Guilherme possuía os segredos das duas consciências suspeitas a Eliot. Ele então mais consternado se mostrou, e pediu-nos que no seu nome viéssemos rogar a sua esposa que lhe perdoasse. Diz mais ele que, envergonhado do seu péssimo proceder, não ousa aparecer à sua vítima, e talvez vã passar alguma temporada em França.

— E eu então — acrescentou a irmã do trino — pedi-lhe que te deixasse ir para a nossa companhia...

— Muito agradecida, minha querida amiga... — atalhou Antónia — eu quisera antes ir para um convento.

— O meu irmão André já deu alguns passos nesse sentido; mas encontrou embaraços; é preciso justificar a separação, ou obter consentimento do teu esposo.

— Porque não lho pede, Sr. Alberto? — rogou Antónia.

— Pedir-lho-ei. Entretanto, venha a menina para nossa casa; e mais devagar meditaremos, de harmonia com o meu cunhado.

Nessa mesma hora, Antónia saiu da sua casa, com uma pequena arca da roupa de uso. Deixou todas as preciosidades em joias, já muito desfalcadas por ignominiosas subtrações do marido. As Caldeironas, excetuada Leonor, e as madrilenas da companhia de António Rodrigues, enfeitavam os pulsos e as orelhas com as manilhas e pingentes de Maria Isabel Traga-malhas, e de Angela Mendes Nobre, filha do regicida.

Quanto a Leonor, essa, de todo alheia aos conluios do seu cunhado, continuava a requestar o primo Luís. Ouvira dizer muitas vezes à mana Maria Teresa que Antónia tinha lesão mortal, e que Eliot ficaria viúvo muito cedo com cento e cinquenta mil cruzados.

— Pobre Antoninha! — dizia Leonor compadecida — ma estrela lhe deu a sorte! Eu folguei que alguma mulher me livrasse deste homem odioso; mas não queria que fosse ela, tão meiga, tão galantinha! Adivinhava o seu destino aquela tristeza que a dominava sempre!...

— Deixe-o enviuvar. — observou Darcet — e verá a mana quantas formosas de Lisboa o disputam.

— Pode ser; mas eu, se fosse uma dessas formosas de Lisboa, e tivesse lacaio, mandava-o baldear à rua, se ele me subisse a escada para me oferecer a sua mão e o saco dos cento e cinquenta mil cruzados; e, não tendo lacaio, como não tenho, fazia-lhe assim...

E tirando do avental de seda azul um lenço branco, salivou nele com uma visagem de nojo.

Estas palestras em família eram às vezes interrompidas por Isaac Eliot.

Uma vez, logo que ele arrastou cadeira para junto do canapé em que as senhoras recebiam, perguntou-lhe Leonor:

— Como está Antoninha?

Era a primeira vez que o interrogava a tal respeito.

— Penso que está melhor — disse ele.

— Pensa! Está ou não está?

— Eu não a vejo há um mês, minha senhora.

— Essa é boa! que marido é o Sr. Eliot que está um mês sem ver sua esposa?!

— Folgo muito que a Sr. D. Leonor seja bastante inocente para ignorar os motivos.

— Agradeço-lhe então que mos não diga...-E, decorridos alguns minutos, juntou voltando-se para as irmãs: — é triste coisa que haja nos casamentos estas más e misteriosas razões que obrigam dois esposos a não se verem um mês!... O Sr. doutor Eliot, decerto sem querer, obriga-me a passar esta noite em claro; como tenciono brevemente ser casada, quero antecipadamente calcular onde estão ocultos os baixios de tais naufrágios.

Desta linguagem transparecia o malicioso propósito de se fazer riscar do número das formosas que o seu cunhado imaginara a competirem na conquista do viúvo.

Eliot gaguejou uns dizeres tão entalados nos gorgomilos, que tresandavam a parvoíces de namorista bisonho.

A menina retirou-se para uma janela da sala de espera quando soaram onze horas. Maria Teresa foi repicar nas teclas do cravo uns sarambotes sevilhanos. D. Joana, a mais velha, foi para outra sacada com um prebendado da real basílica, seu primo em quarto grau, e, ao mesmo tempo, pai de uns rapazolas que estudavam em Évora, e vinham através deste contorcido parentesco a ser filhos também daquela Sra. D. Joana Caldeirão, Eliot acercou-se de Darcet, que parecia dormitar, afofado numa poltrona que fora do uso do Dr. Francisco Xavier.

— Ouviste? — perguntou Isaac.

— O quê?

— O que a tua cunhada agora disse?

— Não; que disse ela?

— Que ia casar.

— É tola minha cunhada... Não faças caso... O Luís Mendes já anda a namorar a Maria Inácia, cunhada do general Pedro de Sousa, senhor do Guardão. O negócio está pela minha conta. Quando for tempo, aparece; por enquanto, estás casado, homem.

Eliot aproximou-se do parapeito de uma janela, e viu que Leonor conversava com um encapotado. Deteve-se indelicadamente na janela; e a menina, irritada pela espionagem, inclinou-se para o vulto, e disse:

— Porque não sobes, primo Luís?

— É tarde, prima Leonor.

— Então até amanhã, que está muito fresca a viração do mar. Eu amanhã respondo à tua carta.

Eliot recolheu-se, pegou do chapéu e despediu-se desabridamente.

Darcet acompanhou-o até à sege.

Quando desciam para o pátio, disse-lhe o mercador de veludos e damascos:

— Que tens?

— Tenho a convicção de que me tens logrado, Tomás...

— Que se passa?

— A tua cunhada mata-me; mas... a tua condenação há de ser pública.

E meteu-se à sege, mandando largar a trote.

O seu único amigo nas aflições enormes era Henrique Rutier. Foi aldravar-lhe à porta na rua de S. José. Fê-lo erguer. Relatou-lhe o sucedido em casa do ladrão Darcet, e da ladra da mulher. Adjetivando-os deste feitio, fora justiceiro pela primeira vez na sua vida.

Rutier ouviu-o, bebeu algumas taças de uma aguardente que Eliot deglutia com frenesi, como se estivesse bebendo o sangue do tredo patrício, e disse:

— Amigo meu Sr. doutor se vossa mercê hoje fosse livre e rico, a sua vingança havia de ser redonda, perfeita, digna de um filho das Gálias. Sabe o que eu faria? eu? este homem que aqui vê? Raptava-lhe aquela mulher como o boi raptou Europa; entregava-lha nas fronteiras, e dizia-lhe: «leve-a para a Franca ou para o inferno; e, quando se enfastiar dessa boneca de cera, mande-a de presente ao primo Luís Mendes ou ao diabo».

— Falas sério, Rutier? — exclamou Eliot, empunhando um copo de aguardente.

— Tão sério como quando espreitei o defunto boticário por detrás da vidraça...

— À tua saúde, meu único, meu adorado amigo! — bradou Isaac emborcando a taça, e quebrando-a na mesa. — Tu és o meu cérebro, és o meu braço, és o meu coração que adora e que se vinga, és a garra poderosa do meu rancor, és o homem que eu desejara ser, quando tivesse outro que me estimasse quanto eu te quero.

E, embriagado de ódio, de lascívia e aguardente, beijava-o nas faces e nos olhos, abarcando-o pela cintura.

CAPÍTULO XLVI

Dois meses depois, em Outubro de 1731, Isaac Eliot parecia reconciliado com a esposa, que voltara para a rua do Outeiro, e achara nas duas criadas, Antónia e Maria, cortesias, submissões e respeitos desacostumados. Não obstante, Simoa dos Santos, muito a ocultas, segredava-lhe:

— Olhe que elas murmuram muito da senhora. Eu desconfio de alguma tramoia. O Henrique, antes da senhora vir para casa, fechava-se com elas lá em baixo, e o Sr. doutor sei eu que as tem presenteado com coisas de oiro, e a mim não me deu o valor de um chavo galego. Tenha cuidado, senhora...

Antónia via a miúdo Frei André Guilherme, e pedia-lhe sempre que, pelas chagas de Cristo, lhe alcançasse a licença para entrar no convento. Ia a Odivelas e pedia a mesma proteção a Paula Perestrelo. A freira, posto que desamada do rei, correspondia-se com alguns ministros. D. João V, o lúbrico beato, viu a carta que solicitava a licença, e respondeu:

— Não permita Deus que o império intervenha incompetentemente nas atribuições da igreja. Não nos compete a nós, rei fidelíssimo, entender com os direitos outorgados aos maridos pelo sacramento do matrimónio.

Dizia-o ele, o amante de D. Luísa Clara de Portugal, esposa de D. Jorge de Meneses, e mãe dos Meninos da Palhavã!

Neste mês de Novembro fazia anos D. Antónia. Eliot convidou algumas famílias. Concorreram, entre as mais distintas da colónia francesa, algumas nacionais: as duas senhoras Caldeirões, sem a mana Leonor, que estava constipada; as irmãs e a mãe de Frei André Guilherme; Alberto Borges com a sua mulher e irmãs; alguns professores de cirurgia do hospital real com as suas esposas.

Durou o sarau até ao dia. A vizinhança ouvia as músicas maravilhada: era a primeira festa que se presenciava naquela opulenta casa!

Antónia, na florescência dos dezasseis anos, parecera triste, desmerecida de cores e brilhantismo de olhos. Não dançara nem fizera parte dos jogos. Cumpria primorosamente os deveres de senhora festejada pelos seus hóspedes; e, assim que a dispensavam, acantoava-se com a sua amiga, irmã de Frei André.

— Nem sequer podes fingir-te alegre, Antónia! — disse-lhe a outra.

— Fazes-me lembrar umas palavras que o meu tio Francisco dizia muitas vezes: Triste é minha alma até à morte... É a primeira vez que os meus anos se festejam, e adivinho que é a última. De hoje a um ano, lembra-te desta hora e desta profecia.

— Que ideias, santo nome de Jesus!

— Vai lá dentro, ao meu quarto, e lê esta carta. Recebi-a hoje já de noite. Olha que prenda de anos! Depois, guarda-a, e amanhã manda-a ao teu mano, sim?

— De quem é?

— Da Leonor Caldeirão.

A carta continha isto:

Minha boa e infeliz Antoninha. Não a vi há ano e meio mas todos os dias me lembro da sua desventura. Bem queria eu escrever-lhe muitas folhas de papel; mas falta-me tempo, e a Possibilidade de o fazer em segredo. Resumo em poucas linhas o que só em muitas poderia explicar. Fuja da companhia do seu marido o mais breve que possa. Ele é capaz de a matara como diz meu cunhado que já o fez a outras. Há uma senhora que o despreza, e ele persegue com vilíssima impertinência. Esta senhora acaba de receber uma carta dele em que lhe pede que seja sua esposa quando ele enviuvar. A respeito do casamento com Antoninha dá infames desculpas. Se Eliot não fosse um malvado sem igual, eu pensaria que ele estava embriagado quando escreveu tal carta a uma criatura que o abomina e desfeiteia sempre que o pode fazer como senhora. Quisera eu enganar-me, — permitisse-o Deus! — mas receio muito que Antoninha seja assassinada com veneno, se não foge desse algoz.

Sua do coração
Leonor da Veiga Cabral.

Frei André Guilherme, lendo esta carta, comunicada pela irmã, considerou-a documento valioso para mover o patriarca a favor da enclausuração de Antónia.

Apresentou-a a D. Tomás de Almeida, e obteve do prelado a promessa de deferir ao requerimento da esposa de Eliot. Retirou-se contente o trinitário, e facilmente transmitiu a Antónia a boa-nova. Todavia o patriarca, por saber que el-rei estimava o médico francês, quis esgotar os recursos conciliadores, mandando chamar Eliot. Expôs-lhe as reiteradas solicitações que se lhe faziam para dar refúgio a sua mulher em convento; deplorou que ele desse motivos a isso; insinuou que tinha no seu poder provas de um plano tão singularmente odioso que tinha pejo de o referir. Disse, finalmente, contestando as redarguições do francês, que o procurador de Antónia Xavier era um frade de exemplares virtudes que não podia mentir, e muito honrava a sua cliente.

— Fr. André Guilherme? — atalhou Eliot.

— Sim, senhor.

— E quem disse a vossa eminência que esse frade não é amante...

— Amante?... de quem?...

— Da minha mulher.

D. Tomás levantou-se colericamente majestoso, e bradou:

— Saia desta casa! Esconda-se de mim, caluniador monstruoso! Eu podia esmagá-lo com uma carta, que tenho aqui, em que o Sr. Eliot é exatamente retratado por quem lhe conhece de perto a alma aleijada pelos vícios! Eu já sabia da voz da fama as proezas da sua vida. Agora as acredito, e me pejo de o receber nesta sala.

Eliot saíra às recuadas como se cada frase do trovejante prelado lhe fosse um pé arremessado ao estômago.

Como de costume foi apear-se em casa de Rutier; e, em curto diálogo, discutiu-se e fixou-se o último e decisivo plano: matar Fr. André Guilherme em flagrante adultério com D. Antónia Xavier!

Henrique, fiel ao seu propósito de reformação em matéria de homicídio, ratificou energicamente que não matava ninguém.

Eliot dispensou-o; mas exigiu-lhe que escrevesse cartas amorosas da sua mulher ao frade, e as respetivas respostas.

Pediu Rutier a letra do trinitário para exame e ensaio. Eliot ofereceu-lhe uma carta de quitação redigida e escrita por André, quando ainda era estudante, em que a sua tia se dava por paga e satisfeita das mensalidades que ajustara com o doutor Francisco Xavier pela educação da sua sobrinha. Não havia outro modelo. Rutier desdenhou-o como safado e ruim de imitar.

— Estas cartas hão de ser examinadas por peritos? — perguntou Rutier.

— Veremos, quando o frade estiver no inferno à espera do patriarca...

A irmã de Fr. André costumava festejar os anos do seu esposo em 18 de Novembro com uma merenda à portuguesa antiga. Reunia Alberto Borges a mais seleta porção de comerciantes, e muita parentela da classe média. Depois de um lauto banquete, dançavam-se danças honestas, minuetes graves sem o desnalgado das sarandas e sarambeques. Concorriam ali religiosos de boa conta, e alguns da Santíssima Trindade, convidados pelo cunhado do respeitável Borges.

Eliot foi convidado com a sua esposa. Aceitou muito agraciado o convite, e recomendou a Antónia que comprasse vestido novo e se enfeitasse a primor.

— Dizem por aí, menina — disse ele — que andas muito desmazelada no teu vestir, porque vives desgostosa. Quisera eu que desmentisses esta gentalha. Aí estás tu vestida sujamente. Essa saia de cetim branco matizada conheço-ta há quatro anos: está surrada que faz nojo! esse mantéu de baetilha seria insuportável nos ombros de uma tua criada. Há mulheres que por dentro e por fora afugentam os maridos. E esse penteado? quem te penteia?

— É a cozinheira.

— Bem se vê... O penteado é como as iguarias que ela faz... Caiu-te no goto esta Simoa! Até a improvisaste cabeleireira!...

Era este o estilo de Eliot quando mais forcejava por embair a esposa com jeitos carinhosos.

Ela escutava-o silenciosa, e ouvia o arquejar alvoroçado do seu coração. Tinha-lhe medo. Pedia a Simoa que estivesse perto dela, quando o marido entrasse, e não comia sem Eliot lhe dar o exemplo.

— Tem cuidado que me não deitem peçonha na comida... — dizia Antónia à cozinheira, que nunca saia da beira do fogão.

No dia 18 de Novembro, estiveram na festa natalícia de Alberto Borges. Eliot cumprimentou Fr. André Guilherme, com expressões de respeitosa e antiga consideração. O frade respondeu cortesmente, sem lhas retribuir. E evitava encontrá-lo na sala.

Ao fim da tarde despediu-se de Antónia, a quem singelamente cumprimentara. No acto de se despedir, ela apertou-lhe a mão, e murmurou:

— Ainda não?

— No dia 1 do mês que vem, recolhe-se ao convento de Santa Ana — disse o frade.

— Graças, meu Deus! — exclamou ela radiando alegria dos olhos, e apertou-lhe, segunda vez, a mão convulsamente.

Neste acto, caiu-lhe uma luva. Fr. André abaixou-se a erguer a luva, que beijou e restituiu com a polida graça e cortesãos requintes daquele tempo.

Desde este dia até 26 de Novembro o médico jantou sempre com a sua mulher. Uma ou outra vez, perguntava-lhe:

— Que dizias tu a Fr. André, quando lhe apertavas a mão sacudindo-lha à inglesa?

— Nem me lembro, Isaac...

— Que esquecida!...

E desandava logo para o gracejo.

Na manhã daquele dia 26, Eliot madrugou em casa de Rutier, e disse-lhe:

— Há de ser hoje.

— Seja — condescendeu o outro mal-humorado.

— Deixa ver o bilhete...

— Não está perfeito; mas remediará. Aí o tem.

Eliot leu:

Meu caro amigo. Estou sozinha hoje às 4 horas e meia. Ele vai para fora da terra às 3. Só vem depois de amanhã. Temos duas tardes livres. Se hoje lhe não falo, se me não acode, dou um passo desesperado. Venha infalivelmente.

Sua infeliz Antónia.

— Está bom, perfeitamente bom — aplaudiu Eliot — E as cartas do frade? e as dela?

— Seis de cada um. As dele não me agradam. Tem péssima letra, muito engaratujada... Isto é muito difícil...

Eliot confrontou a carta de quitação com as cartas falsificadas; alongou os beiços, e desdenhou:

— A falar verdade, não foste feliz... mas servem... Mau será se isto vai aos tribunais...

— Oh! se vai! — emendou Rutier — O senhor que pensa? Tudo nos há de ser preciso para nos salvarmos... se nos salvarmos...

E o flagrante delito?... — replicou o médico — Pois não entendes, homem? Estas cartas são a prova do crime que eu vou punir...

— Doutor! — contraveio Rutier pensativo — doutor, este mundo é governado por Deus ou pelo diabo...

— Sim? Tens medo?

— Tenho, palavra!

— Que se tem importado Deus ou o diabo com as tuas ações?...

— Ainda não é tarde... — murmurou o celerado forçando um sorriso de incredulidade.

CAPÍTULO XLVII

Às dez horas da manhã, deste dia, Antónia do Sacramento subiu esbaforida a encosta do castelo, e entrou na portaria do convento da SS. Trindade. O irmão porteiro, a quem perguntou pelo padre Fr. André, respondeu-lhe que estava no altar dizendo missa.

— Pois eu não me posso demorar. Entregue-lhe vossa paternidade esta carta que vem da casa da irmã.

Fr. André erguera-se naquele dia com o propósito de escrever a Antónia, a fim de sossegar de uns sustos que lhe desvelaram a noite. Josse Frisch havia-lhe dito, no dia anterior, que estava de véspera de viagem para Berlim, não tendo mais nada que fazer nem que esperar em Lisboa. Estas palavras, ponderadas pelo frade, figuraram-se-lhe misteriosas. Tempestuou-lhe na alma a conjetura de que Antónia se evadia com Josse, não lhe restando, pois, a ele mais nada que fazer nem que esperar em Lisboa.

Abriu a carta que lhe entregou o porteiro da parte da sua irmã. Quando chegou à terceira linha, e leu: «Se hoje lhe não falo, se me não acode, dou um passo desgraçado» pensou consigo aflitamente:

— Não me enganei! Josse Frisch quer arrebatá-la!

Entrou na cela e escreveu uma longa carta ao prussiano, cheia de queixumes, de censuras, de máximas divinas e humanas; e afinal, depois de muito discursar no vago da sua conjetura, pedia-lhe em nome de Deus que não infamasse Antónia usurpando-a ao santuário onde ia asilar-se, depois de tantos estorvos, aflições e sustos da morte.

Josse tinha partido para Sintra com o naturalista Merveilleux, a colher exemplares da Flora da Serra. O padre Rafael Bluteau recebeu a carta, e disse ao portador que seria entregue no dia seguinte.

Frei André, ainda assim não sossegou, supondo que o padre hospedeiro de Frisch era também enganado.

Por volta das quatro horas e meia entrou na rua do Outeiro; e, como nunca tivesse frequentado a casa do doutor Francisco Xavier desde que ele se estabelecera, ignorava a residência de Antónia. Entrou numa loja de mercearia perguntando onde morava o doutor Eliot.

— É acolá — apontou o merceeiro — mas, se o vai procurar, não o encontra, que saiu de sege às 3 horas.

O frade agradeceu; e, quando se avizinhava da casa indicada, viu por entre uma cortina de janela de peitoril a cabeça de Antónia, olhando para ele e logo debruçando-se muito agitada no peitoril.

Aproximou-se da porta, e tirou pela campainha.

Antónia pensara que ele ia passando; mas, ao vê-lo parar e bater, exclamou:

— Que será?...

E correu ao seu quarto para se vestir com menos desalinho, porque sucedera estar tão negligentemente trajada que baixara as cortinas para não ser vista da vizinhança fronteira.

Antónia do Sacramento levou-lhe recado de que estava ali o Sr. Fr. André Guilherme, e que lhe abrira a porta da cozinha porque não encontrara a chave da porta principal.

Traspassou-se-lhe de terror a alma; a custo se tinha em pé; saiu como estava à porta da cozinha, e exclamou:

— Que motivo o traz aqui, Sr. Fr. André Guilherme?

E, sem dar tino do que fazia, encaminhou-se com ele para a sala de visitas.

— Que motivo me traz aqui? pergunta a Sra. D. Antónia! pois não me escreveu a chamar-me?

— Eu!... Ó Virgem! socorrei-me! Não lhe escrevi! é uma traição que lhe fizeram... Estamos perdidos!

E caiu quase esvaída de alento sobre uma preguiceira. E então o frade, sentando-se ao lado dela, com a serenidade dos legendários mártires, pegou-lhe da mão e disse-lhe:

— Se é uma traição, vou ser... ou vamos ser assassinados... Deus se compadeça de nós, e não permita que a nossa memória seja caluniada!

E, erguendo-se, ajoelhou diante dela, e prosseguiu com muita unção de lágrimas:

— Antónia, levantemos as nossas almas ao Altíssimo, que vê a nossa inocência, roguemos-lhe que nos deixe ainda encontrar na sua divina presença....

— Se pudesse fugir!... fuja, Sr. Fr. André!... — balbuciou ela emergindo da atrofia com desesperado ímpeto.

— Os inocentes não fogem! — disse ele — e, quando a porta da sala se abria de repelão, acrescentou: — Adeus!

Era Isaac Eliot, empunhando duas pistolas. Entrou e rodou a chave da porta. No patamar, da parte de fora, ficara Henrique Rutier.

— Apanhei-vos! — bradou o francês.

E desfechou uma pistola ao peito de Fr. André, que, após uma breve tremura, caiu sobre o dorso. Desfechou a outra ao peito da esposa; mas errou o tiro. Antónia fugiu, gritando, para o interior da casa. O marido arrancou do bolso uma faca de amputações e cravou-a no peito do padre, até que a lâmina do instrumento, esgarçando pelos ossos, se dobrou e partiu. Depois, correu em busca de Antónia, que quisera salvar-se pela porta da cozinha, que encontrou fechada. Eliot ferrou dela pelas madeixas desprendidas, levou-a de rojo à sala de jantar, e aí, quando ela pedia a brados e de mãos postas que a não matasse inocente, a voz ia-lhe esmorecendo, e soltou o derradeiro gemido ao vigésimo sétimo golpe de espadim.

Em respeito à sensibilidade de quem lê esta página, escrita com a rapidez de uma angústia que me oprime, abstenho-me de particularizar o martírio de Antónia. Há aí barbaridade que atinge o inverosímil! Quem tiver ânimo frio e curiosidade das supremas perversidades que se passam à face de Deus, leia o DOCUMENTO 1°.

Quem leu o Auto de exame de corpo de delito prescinde de saber como Eliot, voltando da carniçaria da esposa, acabou de matar Fr. André Guilherme. Do processo e depoimento de testemunhas consta, como o leitor há de coligir dos subsequentes documentos, que o dilacerado trino, ao receber os últimos golpes, murmurava:

— Eu não o ofendi na sua honra, Sr. Eliot!

Henrique Rutier instava pela fuga, puxando pelo amo, quando ele ainda amolgava a cabeça do cadáver com a coronha da pistola já desaparafusada.

Simoa dos Santos era então retida pelas duas criadas e levada a rastos para um recinto interior, com ameaças de a matarem, se gritasse. Os vizinhos, atraídos pelos tiros, enchiam as janelas, e desciam às testadas da sua casa. O povo apinhava-se à porta de Eliot, quando ele, com Rutier, a passo rápido, ganharam a Cordoaria Velha, e se embarcaram na sege, mandando a toda a brida para a portaria de S. Domingos.

A relé seguia de longe a sege, vozeando gritos sem significação.

À portaria de S. Domingos, Eliot, apeando com o pajem, pediu ao padre porteiro que lhe desse guarida porque era perseguido por haver matado sua mulher adulterando com um calvinista. O prior dominicano, conquanto fosse sincero inimigo de calvinistas e adúlteros, respondeu que não dava asilo a fugitivos qualquer que fosse o motivo.

O povo estacara em volta da sege. A agressão era só de longe e a gritos. Eliot e Rutier passaram incólumes através da multidão que lhes abriu passagem, quando o francês bradou:

— Arredar, canalha!

— Para Santo Antão! — bradou Rutier ao muxila.

O portão da casa jesuítica estava fechado, porque já tinham soado as Ave-marias.

— Para a igreja de S. Luís — ordenou o médico.

Aquele templo dos franceses, privilegiado com grandes foros, demorava a curta distância de Santo Antão. Estava ainda aberto, porque os padres iam ali rezar vésperas em comunidade.

Entrou Eliot e disse que pedia asilo para dali poder, ao abrigo da gentalha, avisar o cônsul francês. Receberam-no; e, atentas as razões que dava do seu desforço, os circunstantes tiveram piedade do seu infortúnio.

E ali pernoitou.

A multidão rarefez-se, tirante dois pretos que velaram a noite sentados na escada da igreja: eram os dois escravos de Antónia, que Henrique Rutier vendera e entregara traiçoeiramente ao comprador navegante. Tinham saltado em terra naquela tarde. Iam vê-la, com licença do senhor, quando o povo clamorosamente gritava que o francês matara a mulher. Nortearam-se pelo alarido da turba, e chegaram a S. Luís, quando a porta da igreja era trancada. Mantiveram-se ali apostados a matarem Eliot.

Ao outro dia, o cônsul francês foi a S. Luís. Ouviu a exposição do seu patrício, viu as cartas atribuídas ao frade, achou brioso o desforço, e mandou arvorar a sua bandeira na fachada do templo. O povo ia e vinha; mas os negros permaneciam.

Ao anoitecer do dia 27, o corpo de Fr. André foi conduzido à claustra do seu convento, e o de Antónia Xavier à igreja dos Mártires. Afora alguns padres que responsaram o cadáver da adúltera, o coveiro que desterroava uma sepultura, e alguns transeuntes curiosos que desejavam ver a cara da morta, apenas havia uma pessoa que chorava: era Josse Frisch.

Despejado o templo e apagados os círios, o estrangeiro estava ainda de joelhos ao pé do esquife. E, quando o coveiro chamou o ajudante para transportar a tumba de sobre o catafalco raso, Josse Frisch pegou de um lado do caixão, e disse:

— Eu ajudo-o.

O coveiro contemplou-o, e disse entre si: «Era talvez irmão da pobre criatura!»

Ao erguerem o esquife, o sangue escorria das junturas. Frisch embebia no lenço as gotas que estilavam do seu lado. Quando o ataúde bateu em cheio no fundo da cova, o jovem, hirtos os cabelos e as faces lívidas, curvou-se à ourela da sepultura, e disse na voz inaudível da sua alma:

— Ó mártir! perdoa-me! Resgata deste mundo o desgraçado que te matou!

>CAPÍTULO XLVIII

Ao cabo de cinco dias, no primeiro de Dezembro, ainda os criminosos estavam na igreja, protegidos pelas águias francesas.

Eliot havia enviado dezenas de cartas, relatando a fidalgos, eclesiásticos de alta jerarquia e a desembargadores o adultério da sua mulher, colhida em flagrante com o frade trino. Às pessoas mais valiosas enviava cartas de Antónia e de Fr. André, e pedia que lhas devolvessem para provas da sua defesa. Vozes autorizadas divulgaram que Eliot desafrontara a sua honra. O ministro de França pedia às justiças portuguesas carta de seguro para os dois asilados se defenderem nos tribunais.

Quando o reviramento quase geral da opinião pública chegou aos ouvidos de Rafael Bluteau contado por Frisch em dilacerante angústia, o ancião pediu ao jovem as cartas que tinha de Fr. André Guilherme e as de Antónia. Saiu do leito, onde quase entrevecera, e, levado por uma sege de mão, foi falar a D. João V, e disse:

— O nonagenário padre Bluteau, antes de sair desta vida, vem dar pregão da inocência de dois assassinados perante vossa majestade. Antónia Xavier e o padre André Guilherme morreram inocentes. Os matadores estão a ponto de ser libertados para se defenderem. Que se defendam, real senhor, mas que o façam desde a masmorra dos grandes facinorosos! Que se defendam; mas que não o ousem diante d’el-rei, meu senhor, depois que a vossa majestade se dignar ver estas cartas!

— Cartas... de quem, padre Rafael? — perguntou el-rei.

— Do virtuoso frade que defendia a desgraçada menina de uma paixão... santa, quanto elas o são na inocência dos catorze anos.

D. João V leu parte das cartas de Fr. André, e disse com alegre rosto:

— Veio levantar-me de sobre a alma um peso imenso, padre Rafael! Eu chorava a religião afrontada por um frade adúltero, a quem pouco há abracei pelos apostólicos serviços que nos fez na redenção dos cativos de Argel. Vá muito confiado em mim, padre. A inocência dos infelizes será proclamada e vingada.

Nesta mesma hora el-rei mandou perguntar ao ministro de França com que direito asilava dois criminosos de tal vulto. O ministro respondeu com as imunidades da igreja francesa e com a justiça do marido desafrontado.

O corregedor, segundo as ordens recebidas, não se deteve a refutar as razões do ministro. Endireitou com alguns soldados e esbirros para a igreja de S. Luís, e mandou arrombar as portas.

Apenas o machado rompeu brecha, a multidão viu coarem dois negros para dentro da igreja; e, ao abrirem-se de par em par as portas por ordem do próprio ministro francês, saiu Eliot amarrado por enleias com os braços para as costas, e cada um dos negros tinha mão da corda por uma das pontas.

O povo urrou aplausos aos dois escravos. O corregedor quis tirar-lhes o preso para dar mais seriedade ao acto; mas a arraia-miúda não consentiu. Quanto a Rutier, esse, com os braços livres, foi levado na onda do povo de encontro aos soldados.

O leitor logo verá como os poetas coevos contaram os pormenores da prisão de Eliot.

Entraram no Limoeiro de tropel. A espaços, algumas mulheres de Alfama davam-lhes saltos de hienas com as unhas aduncadas em garras. Os negros jogavam com o médico, repuxando-o pelas cordas a fim de o defenderem das arremetidas do povo, mantendo-o em equilíbrio. Os escravos de Antónia tinham compreendido e prelibado o espetáculo do carrasco: do contrário, matá-lo-iam com louvor da multidão.

Ao mesmo tempo, entravam no Limoeiro as três criadas de Eliot. Antónia e Maria iam gritando no meio dos quadrilheiros. Simoa dos Santos, chorando, mas sem exaspero, apenas dizia ao meirinho:

— Eu estou inocente... A alma da minha ama bem o sabe... Ela me defenderá.

O primeiro alvitre da justiça, estimulada pelo monarca, respeitador integérrimo do Santo Padre, foi pedir a Clemente XII, a requerimento do Fiscal das Ordens, que permitisse à Mesa da Consciência e Ordens relaxar o réu à justiça secular, sujeitando-o ao julgamento de uma só instância, e não à de três, como era de uso com os cavaleiros professos. O Pontífice, quatro meses depois assinava o Breve impetrado: e el-rei decretava que a devassa baixasse ao corregedor do crime e casa.

A Mesa da Consciência e Ordens fez os autos sumários ao réu, mandando que respondesse de facto e direito dentro de cinco dias.

O advogado de Eliot escreveu uns miseráveis embargos contra a nulidade do Breve. A Mesa da Consciência, mandando despir o hábito ao cavaleiro professo, relaxou-o à cúria secular.

Abstenho-me de repetir minudências que constam das peças transcritas do processo.

O escrivão dos cavaleiros notificou a sentença ao réu. Embargou-a Isaac Eliot; e, tendo já confessado na tortura a inocência, da esposa, recrudesceu na infamação de uns Memoriais escritos do seu próprio punho e enviados aos deputados da Mesa.

Voltou com segundos e terceiros embargos, sempre desprezados.

O advogado negou-se a escrever no processo, e disse-lhe:

— Recorra ao rei, e depois a Deus.

Escreveu a D. João V uma petição lardeada de figuras retóricas e cláusulas latinas, com um estilo retorcido em antíteses, e velhos artifícios de péssimo género desta ordem de súplicas. Não há aí relevo de frase comovente, nem vislumbre de remorso que fira a corda da compaixão! A carta, copiada do traslado do processo dizia assim:

Senhor! Implorando a soberana proteção e Augusta Clemência de V. Real Majestade, prostrado aos seus reais pés, se representa Isaac Eliot, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, preso no cárcere do Limoeiro desta corte, pelos enormes, calúnias e sacrílegos crimes que cometeu, por impulso do seu iníquo e mal intencionado ânimo, executando na maior inocência os efeitos da sua cruel tirania, confessa a gravidade do seu delito, e reconhece a exímia e magnífica benevolência de V. M com que, sem deslustre da sua justiça, tem por débito a comiseração dos seus vassalos, principalmente para aqueles que, para remédio da sua própria vida, recorrem ao real patrocínio e augustíssima piedade de V. M.

Graves são, invictíssimo e poderosíssimo Senhor, os delitos porque em este tenebroso cárcere me acho preso, e a sua própria graveza é o motivo porque imploro a vossa augustíssima piedade; pois o régio perdão da Majestade não se emprega nos beneméritos, senão nos indignos. E assim V. M deve ostentar sua real demência com os facinorosos mais execrandos; pois do perdão dos seus mais abomináveis delitos resulta o maior lustre da Majestade, pois esta tanto mais brilha quanto mais benigna com aqueles a favor de quem se ostenta, e quanto maiores são os crimes tanto mais cresce o motivo da comiseração, e quanto mais um homem se faz indigno com o labéu da sua culpa tanto mais o Soberano Monarca o avalia por mais capaz do emprego da sua piedade.

Pediu David a Deus que lhe perdoasse uma grave culpa, que tinha cometido contra a sua divina bondade, e fez-lhe a sua petição nesta forma: propter nomen tuum, Domine propitiaberis peccato meo, multum est enim. «Senhor! — diz David — heis perdoar-me o pecado que cometi contra vós, porque é pecado enorme!» Pois esta é a razão que David alega, esta a causa que aponta? Aponta e alega David a enormidade da culpa para alcançar a absolvição? Não é evidente que as pecados quanto são mais enormes tanto se fazem mais indignos? Pois porque se empenha David em lhe encarecer as indignidades quando trata de lhe pedir misericórdias? A razão não é outra mais que querer David experimentar a Deus muito misericordioso (propitiaberis peccato meo) porque sabia que tinha Deus por brasão da sua majestade olhar muito para o encarecimento da indignidade da culpa, mostrando-se-lhe muito indigno (multum est enim). Quer Deus ter neste mundo um grande nome (propter nomen tuum, Domine); e o logro dos nomes grandes não se granjeia com o perdão de delitos pequenos, que quanto maior é o delito de quem peca quanto maior é o nome de quem perdoa: por isso David não fez mais que encarecer a Deus a graveza do seu pecado para do mesmo Deus segurar o perdão e encarecer-lhe a grande dignidade que tinha para conseguir a grande misericórdia que esperava.

Da mesma maneira, Sereníssimo Senhor, suplico e imploro a vossa real piedade pelo mesmo método com que o real profeta soube facilitar de Deus as misericórdias, e assim lhe sirva a V. M de exemplo o mesmo Deus para me perdoar.

Alegou David a Deus que era enorme a sua culpa multum est enim, para assim ter melhor despacho a sua súplica, e assim eu, invictíssima Senhor, confesso e reconheço a gravidade do meu delito, porque da sua própria graveza tiro eu o motivo de o perdão da Vossa real piedade; e, coma Deus pôs os Príncipes na terra para imagem do seu poder, e para sombras da sua soberania, parece e mostra dever ser a majestade uma na imitação da divina, e como esta para no mundo ter grande nome, como suplica David: Propter nomen tuum, Domine! deve granjear com o perdão dos delitos graves a majestade humana, e não deve engrandecer seu nome com os pequenos.

Nasceu Cristo Rei, e no seu nascimento se lhe chamou SOL: orietur vobis sol: e por nenhuma outra razão senão porque vinha para perdoar e remir o género humano da gravíssima culpa em que tinha incorrido nosso primeiro pai. Intitulou-se sol, porque nele tudo havia, de ser piedades: tudo nele havia de ser clemências, e tudo nele havia, de ser misericórdias: porque um rei com todas estas propriedades é um resplandecente sol: orietur vobis sol.

Sol racional é Vossa Real Majestade; e assim, debaixo da sua real proteção, se devem amparar as vidas dos seus vassalos; para crédito dos seus luzimentos é que costumam acumular-se esplendores dos raios da sua real piedade. Grande é, Senhor, o delito que cometi, e tão grande que parecerá irracional a minha súplica a quem lhe faltar o conhecimento da real demência de V. Majestade, pois toda a culpa, ainda que grave, está na esfera do seu real poder, e tanto maior quanto mais digno se faz do perdão de um tal soberano monarca: pois é todo o delito pequeno a respeito de uma tão grande majestade.

Esta é, invictíssimo Senhor, augusto Rei e soberano Monarca, a súplica com que humildemente me ofereço aos pés de V. M. Não alego para a minha defesa mais que a mesma gravidade do meu delito para assim ter mais lugar a Vossa real piedade, e a generoso ânimo com que se ostenta vossa augustíssima demência! A minha vida está nas contingências do seu último fim, e só na vossa proteção poderá encontrar o melhor remédio, pois o perdoar delitos graves é a maior glória, assim humana como divina. Esta guarde a V. M por dilatados anos porque a nação portuguesa se jactancie em ter um Soberano Monarca, e na sua coroa cada vez mais se acumulem maiores aumentos e felicidades.

Isaac Eliot

CAPÍTULO XLIX

Numa quarta-feira, 26 de Novembro de 1732, pontualmente no primeiro aniversário da morte de Antónia Xavier, a sala livre do Limoeiro foi decorada com os cortinados da Relação, e o altar, onde os condenados ouviam missa, ornamentado. Dispuseram-se três mesas: uma com a cadeira de espaldar e duas cadeiras rasas; outra, com duas cadeiras de espalda, às ilhargas da mesa; e a terceira com assentos rasos. Na primeira, sentava-se o prior do convento da nossa Senhora da Luz, com o seu secretário e outro clérigo. Na segunda, abancavam o desembargador João Marques Bacalhau, juiz dos cavaleiros, e relator da sentença da Mesa, com o desembargador José Vaz de Carvalho, corregedor do crime. Na, última, estavam o escrivão dos cavaleiros Caetano da Costa Loureiro, e o solicitador da justiça Francisco da Costa Ferreira.

Às três horas da tarde, o cavaleiro Pedro de Castro Correia, vestido com o manto da ordem, desceu à enxovia, e fez revestir Isaac Eliot com o manto, a espada, o bentinho e a cruz. O condenado entrou na sala acompanhado de dois padres da Companhia e do padre Xofreu de Rilhafoles, famoso pelas conversões maravilhosas de alguns justiçados a quem assistira.

Eliot e os padres ajoelharam no taburno do altar. O assassino circunvagava os olhos espavoridos, e pelo hábito da quase escuridade da masmorra cerrava as pálpebras contra a luz forte do sol que se espelhava nas superfícies polidas das mesas.

O cavaleiro Pedro de Castro conduziu Eliot à mesa do prior da Luz, para ouvir ler a sentença pelo escrivão dos cavaleiros.

— Ajoelhe — disse o cavaleiro ao réu.

Ajoelhado Eliot, o prior proferiu uma oração, e despiu-o do bentinho, hábito e manto pela cabeça, depondo as insígnias sobre a mesa, ao mesmo tempo que o cavaleiro lhe desafivelava a espada. Seguiu-se outra oração latina pronunciada em toada plangente pelo prior. O cavaleiro fez ao réu um gesto que se retirasse. Os três padres seguiram-no até ao alçapão da enxovia. Os da Companhia de Jesus retrocederam, e o padre de Rilhafoles desceu com Eliot.

Três dias depois, nos cunhais das praças mais concorridas, lia-se uma pastoral do vigário geral do patriarcado em que o réu Isaac Eliot era proclamado sacrílego e público excomungado, reservada a absolvição a sua Santidade.

A substância deste edital, quando a notificaram ao preso, devia de ser-lhe medianamente aflitiva, salvo se o padre Xofreu vingara amolecer-lhe as sevas entranhas.

Interpuseram-se alguns dias concedidos a requerimento de Noutel de Carvalho, nomeado curador da menor Simoa dos Santos, que era inocente e pedia que a soltassem, chorando às grades da enxovia.

Em 8 de Janeiro de 1733 reuniu-se a Relação. Às 8 da manhã, o corregedor José Vaz de Carvalho começou a propor o processo, e às 6 e meia da tarde foi lavrada a seguinte sentença :

O que tudo visto, gravidade do caso, disposições do direito e Ordenações; e, estando Isaac Eliot confesso nas mortes de que é arguido, não provou de sorte alguma o adultério com que se defende, e que neste injusto facto associou o seu criado Henrique Rutier, os condenam ambos a que com baraço e pregão pelas ruas públicas sejam levados à do Outeiro, aonde numa forca que se levantará na frente das casas, em que cometeu o delito, padecerão morte natural, e depois se lhe porão as cabeças no mesmo lugar em dois postes levantados aonde se conservarão até o tempo as consumir e os condenam outrossim a que pelos bens dos ditos RR se pague ao convento da Santíssima Trindade por cada um deles a quantia de dois contos de réis, e outra tanta importância para as despesas da Relação; e o restante dos mais bens pertencentes ao R. Isaac Eliot aplicam na forma da lei aos herdeiros abintestados da sua defunta mulher, e no caso que não tenha descendentes que segundo a mesma lei lhe possam suceder, mandam que tendo-os lhe paguem vinte contos de reis em que em tal caso o condenam para os ditos herdeiros, e aos mesmos passará também a fazenda do R. Henrique Rutier. E as RR Antónia do Sacramento e Maria Miguel condenam outrossim a que com baraço e pregão pelas ruas públicas costumadas sejam açoitadas e degredadas por tempo de sete anos para o reino de Angola, e por não se considerar igual culpa na R. Simoa dos Santos a condenam somente que com baraço e pregão seja degredada para o mesmo reino por cinco anos, e pagarão as primeiras duas RR as custas dos autos. Lisboa oriental 8 de Janeiro de 1733. Vaz de Carvalho — Costa — Almeida — Silva — Dr. Pereira e Pinto.

Nesta sentença ressalta uma atroz injustiça. Simoa dos Santos é condenada a cinco anos de degredo, porque, tendo dito que vira sua ama encostar a cabeça do religioso, declarou depois que fora em ação de chorar.

Lavrada e notificada a sentença, requereu Isaac Eliot que em atenção ao seu grau de médico e às honras que fruiu de cavaleiro da nobilíssima ordem de Cristo, lhe fosse demudada a pena da forca em decapitação. Devia de lembrar-se de uma ironia de Rutier, quando o pajem teve certas previsões da forca.

— Retira lá essa palavra forca! — exprobrara o amo — Os cavaleiros professos na ordem de Cristo não podem ser enforcados.

— Bem sei — replicara Rutier — degolam-nos: a diferença não me parece a melhor das consolações.

No dia 8 de Janeiro, o alcaide da prisão com o padre Xofreu e o padre Luís Baptista da Companhia de Jesus conduziram o condenado ao Oratório.

Rutier, acompanhado de outro jesuíta, foi levado a oratório diverso.

Era extremo o abatimento de Isaac Eliot. Reclinara a cabeça na espádua do virtuoso ancião de Rilhafoles, e sentira no rosto o gotejar das lágrimas alheias, as únicas que olhos humanos lhe deram. Quanto a Henrique Rutier, dispensou-se de amparo, de lágrimas e de catequeses religiosas. Engolia aguardente a tragos vertiginosos, e, alquebrado no sopor da embriaguez, desencovava a espaços os olhos esgazeados, e fitava estupidamente o padre e a imagem de Jesus Cristo crucificado.

Isaac Eliot, no oratório, pedira papel e tinteiro. Escreveu de alto a baixo duas meias folhas de papel, e deu cada metade a um dos padres, dizendo:

— Publiquem vossas reverendíssimas depois da minha morte o que aí escrevi, se eu o não disser na forca; receio que lá não possa ou mo não deixem dizer.

O padre Xofreu e o jesuíta leram os papéis, e abraçaram Eliot. O ancião exclamou lavado em lágrimas:

— Desça sobre nós a unção das santas palavras, e sobre ti a divina misericórdia!

Às duas horas da tarde de dez de Janeiro de 1733, saíram do Limoeiro os padecentes, acompanhados de cento e cinquenta irmãos da misericórdia. Ladeavam Eliot os padres da Companhia, e o padre Xofreu mais à beira dele. Chegados ao Largo do Espírito Santo, Eliot desmaiou, e foi preciso transportá-lo tão devagar, que soavam as Ave-marias quando se defrontaram com o patíbulo. O primeiro justiçado foi Henrique Rutier. Subiu a escada da forca desgarradamente, repelindo com a mão os clamores do sacerdote.

Eliot não erguera a face do seio do padre Xofreu, senão quando ele disse:

— Filho! esperam-te! ânimo! invoca o nome de Jesus, até que a tua alma suba aos pés da sua justiça misericordiosa!

Isaac foi amparado até à escada da forca; fez menção de falar, e falou sonoramente nos seguintes temos:

Senhores! pela hora em que me acho, declaro que desde o dia em que pela misericórdia divina detestei os erros da heresia em que vivera, e passei à religião católica, sempre cri e creio tudo o que ensina a santa Madre Igreja Católica romana, em cuja fé morro com grande consolação, e desejara que a morte que padeço pelas minhas culpas a merecesse padecer em protestação de qualquer das verdades que a nossa Santa Igreja nos ensina; pois morro conhecendo que ninguém se pode salvar sem crer tudo o que crê e ensina a santa Madre Igreja Católica romana. E, porquanto eu correspondi tão mal a este singularíssimo favor que Deus me fez de me tirar da heresia, caindo em tal cegueira como foi matar injustamente a minha própria mulher e a um religioso da SS. Trindade, ofendendo com isto a Deus, a sagrada religião, a minha própria mulher e os seus parentes, escandalizando toda esta corte e toda a Europa onde tiver chegado a notícia deste meu pecado, e o mundo todo; pelo que, agora arrependido e ajoelhado com as lágrimas nos olhos, peço de novo perdão a Deus Nosso Senhor desta e de todas as minhas culpas. Peço também perdão à sagrada Religião, e aos parentes da minha mulher, e a todos geralmente, pois a todos ofendi, com tão grave escândalo e mau exemplo, esperando da piedade de todos quererão perdoar este meu pecado, para merecer de Deus o perdão de todas as minhas culpas e eterna salvação, como espero pelos merecimentos de Cristo Senhor nosso, mediante a poderosa intercessão de Maria Santíssima Senhora nossa e de todos os santos. Peço também e espero da piedade de todos me favoreçam depois de morto, aplicando-me alguns sufrágios pela minha alma, para que Deus seja servido levá-la ao eterno descanso pela sua infinita misericórdia.

As cabeças dos justiçados, arvoradas nos postes, ai estiveram doze dias; e, quando o fedor incomodava os moradores da rua do Outeiro, o almotacé requereu que as descessem. Assim se fez às 9 horas da noite de 19, e as levaram ao cemitério de Santa Ana, onde estavam sepultados os corpos.

No dia 30 de Março saíram Antónia do Sacramento, Maria Miguel e Simoa dos Santos a percorrerem as principais ruas de Lisboa. As duas, condenadas a açoutes, levavam as costas rajadas de sangue. A outra, a compadecida amiga de Antónia Xavier, ia morrer em Angola e esperava que a sua ama lhe alcançasse de Deus a bem-aventurança dos que padecem sem culpa. É o que ela dizia, chorando; mas ninguém lhe dava mais crédito que os juízes que a condenaram.

Pelo que respeita aos benefícios que resultam da forca, já como espetáculo, já como terror aos instintos perversos, o que apurei dos costumes ulteriores ao suplício de Isaac Eliot nada prova em favor da pena de morte. No ano seguinte de 1734, foi degolado o fidalgo Luís Álvares de Andrade e Cunha porque fez assassinar a sua mulher por um mulato; e, no mês seguinte, para variar de sexo assassino, era degolada Catarina Gonçalves porque matara o marido. O século da religiosidade, da magnificência, da patriarcal, de Mafra, da Capela de S. Roque com o seu altar estreado pelo Papa, da Inquisição, e finalmente da forca! O que seria Lisboa, no século XVIII, sem aqueles corretivos!

CONCLUSÃO

À herança de D. Antónia, Joaquina Xavier concorreram três famílias de Lisboa, Évora e Tavira que se apelidavam Nobres. Para honrarem a sua parente reabilitada pela sentença, os herdeiros requereram a exumação e trasladação do cadáver para o jazigo de Camarate, e lhe mandaram fazer solenes sufrágios na igreja paroquial dos Mártires.

A quinta de Camarate coube aos Nobres de Évora, que a deixaram entregue ao antigo feitor do padre Francisco Xavier.

Na espaçosa casa hospedava-se alguns meses dos anos, decorridos até 1739, aquele estrangeiro loiro que as mulheres se lembravam de ter visto atravessar o adro, quando os sinos festejavam o casamento da fidalga. Achavam-no envelhecido, quando acertavam de o ver perpassar como um espectro nos arredores da quinta.

Naquele ano de 1739, Josse Frisch, com o auxílio do feitor, abriu o sarcófago dos Mendes Nobres, e extraiu o crânio sobreposto a outro, deslocando-o facilmente das vértebras cervicais.

Depois, abraçou o feitor, repartindo com ele das lágrimas que derramava sobre a caveira da mártir.

O restante, releiam-no os leitores esquecidos no prefácio deste livro.

Nesta história de Antónia Xavier, última representante de Domingos Leite Pereira e Maria Isabel Traga-malhas, a menos desgraçada foi Catarina de Castro; porque, enlouquecendo, morrera, digamo-lo assim, antes da filha; e, acabando de morrer, na filha do Faial em 1740, nos braços de Paula Perestrelo, não levou desta vida a mínima recordação.

FIM
CC BY-SA 4.0

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Ulrike Henny-Krahmer

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TextGrid Repository (2024). Collection of 19th Century Portuguese Novels (1840-1910). A Caveira da Mártir. A Caveira da Mártir. The CLiGS textbox. Ulrike Henny-Krahmer. https://hdl.handle.net/21.11113/0000-0012-2355-5